Durante um longo tempo, os livros ignoraram personagens femininas relevantes na história do Estado. Alguns podem saber quem foi Anita Garibaldi, ícone da Revolução Farroupilha, ou Luciana de Abreu, primeira mulher a subir numa tribuna para discursar em Porto Alegre. Mas será que sabem quem foi Vó Nair, Isabel Cristina Genelício ou Ella Einsfeld? Essa falta de registro é mais um sintoma do machismo retido nas bases da nossa sociedade. E quando falamos da história de mulheres importantes de regiões do interior do Rio Grande do Sul, esses registros são ainda mais escassos.
O Projeto Protagonistas do Vale, desenvolvido pela Produtora Cultural Simples Assim, surge para resgatar e valorizar as contribuições femininas na história do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. Sob a liderança de Camila Borniger, diretora da produtora, o Protagonistas conta a trajetória de mulheres que marcaram a região em diversas áreas de atuação. "Ao longo dos anos, a história do Vale dos Sinos foi predominantemente contada sob a perspectiva masculina, enquanto as contribuições femininas permaneceram à margem", explica Camila.
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Foi em 2019 que nasceu a ideia de criar uma iniciativa que destacasse as mulheres que, com suas histórias e feitos, ajudaram a moldar a identidade da região. Depois de um período de pesquisa e planejamento, o Protagonistas do Vale foi aprovado em 2012, via Lei de Incentivo à Cultura, e a sua primeira edição foi lançada em novembro de 2024.
As vidas das mulheres protagonistas estão contadas num box com 10 livros em formato de quadrinhos (HQs), cada um ilustrando a vida de uma mulher que deixou sua marca na Região dos Sinos. O material é destinado a estudantes do 6º ao 9º ano, acompanhado de um guia pedagógico elaborado por uma especialista. Esse guia é alinhado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e oferece atividades que dialogam com diferentes disciplinas escolares. A distribuição do material é gratuita e as organizadoras preveem a entrega de três mil boxes, totalizando 30 mil exemplares de histórias.
Para Camila, o principal objetivo é levar as histórias das mulheres para escolas, tornando o conteúdo acessível desde a base educacional e promovendo reflexões sobre o papel feminino na história local. A iniciativa também contempla versões digitais das HQs, disponíveis no Instagram oficial (@protagonistasdovale), e um formato ePub acessível para pessoas com deficiência visual, que será distribuído a instituições especializadas. Para saber mais sobre a distribuição do material, é possível entrar em contato com a produtora através do e-mail [email protected].
Além de contar a história de mulheres, 95% das pessoas que trabalharam na realização da iniciativa são mulheres, envolvendo escritoras, ilustradoras, pesquisadoras, editoras e produtoras. As HQs foram criadas em duplas formadas por 10 escritoras e 10 ilustradoras, orientadas pela quadrinista Fabiane Langona, consultora do projeto, e a historiadora Priscilla Almaleh, curadora da iniciativa.
Segundo a diretora da Simples Assim, o processo de trabalho incluiu desde a pesquisa histórica até a revisão de roteiros e ilustrações, tudo para garantir a representatividade e a qualidade do conteúdo. "Buscamos diversidade tanto na equipe quanto nos traços e narrativas das HQs. Cada história traz uma perspectiva única, algumas mais fantasiosas, outras mais próximas da realidade, mas todas com o objetivo comum de inspirar e educar", conta. O processo de produção foi predominantemente online, com liberdade criativa para as participantes desenvolverem estilos e abordagens.
Almaleh conta que a curadoria das histórias foi feita de diversas maneiras. Algumas mulheres já contavam com algum tipo de registro de suas histórias, outras eram apenas pela narrativa oral. "Foi um trabalho bem de formiguinha. Conversei com pessoas, bati na porta de espaços de memória e cultura, questionando quem eram as mulheres protagonistas da região. Infelizmente, muitos desses espaços estão abandonados ou simplesmente não têm registro dessas pessoas", explica a historiadora.
Além da distribuição dos materiais educativos, o Projeto planeja promover bate-papos com autores nas escolas, criando um diálogo direto com os estudantes. "Agora essas histórias estão escritas e todas as pessoas que forem estudar a região do Vale dos Sinos de alguma forma vão ter que passar pelo nome dessas mulheres e entender um pouco mais da vida delas e da história da região", finaliza Almaleh.
Para 2025, a Simples Assim planeja uma segunda edição do projeto e outras iniciativas, como um novo trabalho que abordará a presença indígena no Vale dos Sinos.
Dez mulheres, dez livros e muita história
A vida de cada mulher histórica registrada nos dez livros do Projeto Protagonistas do Vale vai auxiliar professores de escolas da região ao proporcionar um ensino integrado à história local, dando visibilidade e representatividade. A estudante de pedagogia e uma das escritoras do Projeto, Daniela da Rosa, acredita que a literatura, além de entreter, serve como ferramenta de transformação.
"Como professora, sempre senti que a educação tem um papel fundamental na construção de identidades. Quando a gente fala de literatura, fala também de dar voz a essas identidades, de formar leitores críticos", explica a escritora do livro que conta a história de Ella Einsfeld, primeira mulher a ser mecânica industrial no Vale dos Sinos.
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Daniela conta que seu processo de escrita foi influenciado pelas suas referências, como Conceição Evaristo. "Acho que pela influência da Conceição na minha vida, com a escrevivência, de mesclar um pouco da vivência com ficção e no fim foi um artesanato fazer essa escrita. A Ella foi uma engenheira mecânica em 1922 que assumiu a mecânica do pai com 14 anos. Eu achava que ela merecia estar num ambiente mais agradável, pensei como seria importante a Ella ter a oportunidade de receber esse colo", finaliza a escritora de Um colo para Ella.
Além de Ella Einsfeld, os livros contam as histórias de Alaídes Haubert, Dalva Theisen, Edith Kieling, Eva Johann, Isabel Genelício, Jacobina Maurer, Maria Emília de Paula e Marlise Saueressig. Benzedeira, quilombola, costureira e política, essas são algumas das outras histórias abordadas pelo Projeto que, por muito tempo, ficaram desconhecidas e agora são eternizadas para o conhecimento das novas gerações.