Quando pequenas, meninas são ensinadas a serem delicadas e a dominarem atividades domésticas, assim atendendo às expectativas sociais. Na família de Bia Kern, fundadora do Instituto Mulher em Construção, o protocolo foi diferente. Desde jovem, Bia e seus irmãos auxiliavam a mãe a fazer consertos em casa, cena que despertava estranheza nos vizinhos, uma vez que lhes parecia impossível que mulheres conseguissem executar trabalhos braçais.
Décadas depois, a ideia de que a construção civil combinava com o trabalho feminino seguia com Bia, que acreditava que "as mulheres tinham mais potencial do que as oficinas que lhes eram ofertadas". Com o desejo de deixar um legado para as gerações futuras, a empreendedora social passou a oferecer cursos gratuitos de pintura predial.
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O sucesso das oficinas motivou a criação do Instituto Mulher em Construção, que buscava reformar bairros de Canoas, cidade onde o projeto nasceu, para que as alunas pudessem transformar paisagens já conhecidas. A falta de apoio público motivou Bia a levar o projeto para outras cidades, atraindo o interesse de empresas do setor, que enxergaram na iniciativa uma oportunidade de marketing. Com o apoio dessas marcas, as oficinas viajaram por 40 municípios do Rio Grande do Sul, atendendo especialmente mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Com o passar dos anos, o formato e as temáticas dos cursos foram se modificando. Além de pintura predial, o instituto também passou a oferecer formações nas áreas de elétrica e de hidráulica, com carga horária total de 80 horas por curso. Em turmas de 25 alunas, cada mulher pode escolher duas oficinas para participar de maneira gratuita. Todas as aulas são ministradas por técnicas, engenheiras e arquitetas que compõem a equipe do instituto. Segundo Fátima Wilhelm, ex-aluna do projeto e instrutora das turmas de pintura predial, o contato com a iniciativa mudou a sua vida profissional e pessoal. Após concluir a oficina feita na organização, em 2008, ela ingressou no mercado da construção civil. Seis anos depois, Fátima passou a fazer parte da equipe do instituto. Essa parceria trouxe a ela, que nunca havia saído do Estado, a oportunidade de conhecer outros países e de representar o projeto em eventos que reconhecem e premiam iniciativas sociais.
Em 2020, com dúvidas sobre como seguir o projeto durante a pandemia de Covid-19, o instituto foi convidado pela Comgás a levar as oficinas "Cimento e Batom" para São Paulo, porque a empresa buscava formar mulheres gasistas. O projeto seguiu e expandiu-se para outras áreas de trabalho dentro do campo da construção e do abastecimento de gás. Em uma de suas viagens à capital paulista, para a formatura de mais uma turma do projeto, Bia recebeu a notícia das enchentes no Rio Grande do Sul. Sabendo que não poderia auxiliar as vítimas das águas em um primeiro momento, ela focou-se na reconstrução. Contatando marcas parceiras e arrecadando doações, Bia pensava em direcionar os esforços do instituto para capacitação de mulheres atingidas pelas enchentes, para que elas mesmas consertassem as suas casas depois que as águas baixassem. Assim, criou-se o projeto Regenera RS.
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Inicialmente, o programa abriu vagas para homens e mulheres, situação que se alterou pouco tempo depois. Hoje, o projeto aceita apenas alunas, que são recebidas para as aulas no campus da Universidade La Salle. A parceria entre o instituto e a faculdade surgiu a partir de uma ligação em meio à enchente, quando Bia convidou a instituição a participar do projeto. Com o convite prontamente aceito, como explica Eucledes Casagrande, vice-reitor da universidade, a organização passou a ceder seu espaço para a condução dos cursos e disponibilizou psicólogos e assistentes sociais para atenderem às demandas das estudantes das oficinas. Segundo Casagrande, a ideia é dar continuidade à parceria com o instituto e desenvolver outros projetos, pensando especialmente em como incluir essas alunas nos cursos de graduação da instituição.
Dentre as 300 pessoas que já concluíram as formações oferecidas pelo projeto, está Aida da Silva, de 70 anos. A senhora, que passou 105 dias longe de sua casa no bairro Rio Branco (Canoas), foi aluna da oficina de pintura predial por duas semanas e afirma que, para além do conhecimento, suas colegas e professoras proporcionaram o que mais lhe faltava: acolhimento. "Eu perdi tudo (na enchente), não tem mais nada na minha casa. Eu estou muito desmotivada, o que mais preciso é de um abraço", conta ela. Hoje, dona Aida vive em uma casa vazia, ainda sem janelas e sem portas, mas com planos de mudar essa realidade com as próprias mãos. Motivada, a senhora deseja retornar ao instituto, para participar dos cursos de hidráulica e de elétrica, e assim ingressar no mercado da construção civil, vontade que surgiu a partir do curso, que, segundo ela, mudou a sua vida. "Eu já perdi minha casa três vezes, não vai ser agora que eu vou desistir", afirma.
O Instituto Mulher em Construção já formou mais de 7 mil mulheres, contando especialmente com o apoio da iniciativa privada.
Cenário da construção civil apresenta oportunidades para mulheres
Ainda que permaneça um campo majoritariamente masculino, a construção civil tem apresentado possibilidades de carreira para mulheres que desejam ingressar no setor. Essa abertura se dá devido a falta de mão de obra que o setor enfrenta no momento. Segundo o vice-presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Rio Grande do Sul (Sinduscon-RS), Rafael Lonzetti, a demanda alta que se apresenta é semelhante a vista em 2013, quando políticas de incentivo à inserção feminina na área foram postas em prática para suprir ausências no setor.
Mesmo com um panorama de possibilidades, a presença de mulheres na parte da produção ainda é mínima. Lutando contra essa realidade, o trabalho executado pelo Instituto Mulher em Construção se estendeu às empresas do setor, buscando assim promover oportunidades para as mulheres que concluíam as formações da organização. "Era necessário preparar o mercado para receber elas", conta Bia Kern. Atualmente, companhias da área entram em contato com o instituto para solicitar a formação de profissionais específicos, para preencherem as lacunas das empresas. Dessa forma, depois de formadas, as alunas já são encaminhadas para o mercado de trabalho.
Para Bia, o preconceito na área persiste, mas é preciso romper com essa prática, como já foi feito em outros campos profissionais. Segundo Lonzetti, a pauta é nova no campo de discussões do Sinduscon-RS, que agora planeja fomentar o ingresso de mulheres nesse mercado em conjunto ao setor de recursos humanos das empresas.