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Publicada em 11 de Agosto de 2024 às 16:00

Enchentes agravam situação do produtor de leite

Jorge Dienstmann/Arquivo pessoal/JC
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Ana Esteves, especial para o JC*
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A literatura sagrada diz que depois da tempestade vem a bonança, só que não para o setor leiteiro gaúcho. Depois de amargar perdas gigantescas: ter rebanhos inteiros dizimados, equipamentos, galpões, tambos e as próprias casas destruídos pela tragédia climática de maio, produtores padecem agora com a falta de alimento para as vacas, pois grande parte da silagem e do pré-secado que tinham estocado se foi com as águas. Falta também auxílio dos governos, estadual e federal que, até agora, não liberaram recursos para recuperação do setor. E qual tem sido a saída para muitos? Justamente sair, abandonar a atividade. 

Conforme dados colhidos pela Emater/RS-Ascar, entre 30 abril e 24 de maio, foram contabilizadas 2,45 mil cabeças de bovinos leiteiros mortos, a produção total não coletada chegou a 9,62 milhões de litros

Conforme dados colhidos pela Emater/RS-Ascar, entre 30 abril e 24 de maio, foram contabilizadas 2,45 mil cabeças de bovinos leiteiros mortos, a produção total não coletada chegou a 9,62 milhões de litros

Emater-RS/Divulgação/JC
Um misto de choque com desespero tomou conta do agricultor e bovinocultor de leite Jorge Dienstmann, do município de Estrela, ao se deparar com o cenário de devastação que a enchente, provocada pelas fortes chuvas que marcaram o mês de maio no Estado, causou à propriedade dele: salas de ordenha e galpões completamente destruídos, máquinas e implementos cobertos de lama, estoque de alimentos para as vacas totalmente perdido e a sensação de que tudo estava acabado. E, de fato, estava: depois de amargar a enxurrada de setembro e novembro de 2023 que destruíram bens e meios de produção, mataram mais de 30% do rebanho de vacas leiteiras, que de 105 caiu para 70 cabeças, veio a catástrofe de maio com nova leva de destruição. Com prejuízos calculados em R$ 3,5 milhões, o agricultor não viu saída senão abandonar a atividade leiteira. "Como seguir se não tinha comida para as vacas? O solo destruído, sem condições de plantio? Além disso, perdi outra fonte de renda que eram os frangos alojados: todos morreram. Fizemos as contas e o melhor era mudar de ramo, seguir plantando soja", afirma.
Dienstmann foi um dos 7,45 mil produtores de leite gaúchos que foram atingidos pelas enchentes, distribuídos em diversos municípios. Conforme dados colhidos pela Emater/RS-Ascar, entre 30 abril a 24 de maio, foram contabilizados 2,45 mil cabeças de bovinos leiteiros mortos, a produção total não coletada no Estado chegou a 9,62 milhões de litros, já a produção média diária não coletada foi de 1,46 milhões de litros de leite.
Segundo o presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando), Marcos Tang, no auge da enchente, deixou-se de recolher 3 milhões de litros ao dia e essa queda de produção ficou mais ou menos em 10%. "Agora, está um pouco abaixo de 10%, mas o produtor está com muita dificuldade. A produção total do Estado reduziu muito pouco, pois muitos dos atingidos não estão em bacias leiteiras tão pronunciadas, embora importantes", disse o dirigente.
O produtor de Estrela engrossa a lista de famílias que abandonaram a atividade leiteira, nos últimos anos, tendência que teve incremento após as enxurradas de maio. Conforme dados do Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite 2023 produzido pela Emater/Ascar-RS, o número de produtores de leite vinculados à indústria passou de 40,1 mil em 2021, para 33 mil em 2023, uma redução de cerca de 18%. O número é ainda mais alarmante se comparado ao primeiro ano de realização do documento, que indicava a existência de 84,1 mil estabelecimentos, o que corresponde a uma redução de 60,78%, em nove anos. A tragédia climática de maio será incluída na lista de motivos para a desistência da atividade, justificada hoje por questões como preço pago pelo litro do leite, apontado por 49,89%, a mão-de-obra (45,96%), o custo de produção (42,11%) e a dificuldade na sucessão familiar (41,91%). "Já vinha caindo muito a participação dos produtores na atividade leiteira e a tendência é de que aumente agora com essa tragédia toda. Houve uma redução de produtores, mas aumento da produção de 14% em média, se comparados os anos de 2021 e 2023, por ganho em produtividade, diz o gerente regional da Emater/RS-Ascar, Cristiano Laste. Em 2023 foram produzidos 317,17 litros/dia/estabelecimento, enquanto em 2021 o volume registrado foi de 278,15 litros/dia/estabelecimento.
Para os produtores que decidiram ficar, o momento agora é de retomada, aos trancos e barrancos, na busca por ajuda para, nesse primeiro momento, ter insumos para alimentar o rebanho, recuperação de salas de ordenha, galpões, maquinário, lavouras e a estrutura da propriedade. "A situação ainda é muito difícil pela dificuldade de formação de pastagens, o milho safrinha que nem conseguimos colher por causa do solo encharcado e da umidade. Houve perda de até 30% de produção', afirma a presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Teutônia, Liane Brackmann.

 

Produtor calcula perdas de R$ 3,5 mi e decide abandonar atividade leiteira

Dienstmann contabiliza a perda de mais de 90% do rebanho devido às cheias

Dienstmann contabiliza a perda de mais de 90% do rebanho devido às cheias

Jorge Dienstmann/Arquivo pessoal/JC
"Pai, eu não quero morrer aqui". A fala desesperada da filha do bovinocultor de leite, Jorge Dienstmann, junto ao cenário de destruição da propriedade da família, cujas perdas ultrapassam os R$ 3,5 milhões foram determinantes para que o produtor tomasse uma das decisões mais difíceis da vida dele: abandonar a produção leiteira e se dedicar apenas à agricultura. "Quando houve a notícia do rompimento da barragem de Cotiporã, já estávamos fora de casa, numa situação terrível, correndo riscos, quando minha filha me disse que tinha medo de morrer ali. Foi quando decidi: não tem como seguir e nem ficar e fomos para outra casa que eu havia construído mais longe do rio", diz.
Segundo ele, veio tudo a baixo nessa cheia de maio: dos três galpões que ele tinha dois foram ao chão, completamente inutilizados. O galpão de alimentação das vacas e a sala de ordenha destruídos. O resfriador de leite ficou grudado em um fio, boiando três dias na água. Essas duas estruturas me demandariam investimento de mais de R$ 100 mil. Só em silagem seriam mais R$ 120 mil, em quatro meses. "Teria ainda os custos de recuperação da lavoura, replantio da silagem e vai somando. Não tem como continuar".
O produtor conseguiu salvar todas as vacas, mas falta alimento, pois o estoque disponível dá apenas até agosto e, até conseguir fazer nova silagem, seria dezembro. Como surgiu a oportunidade de negociar as vacas, Dienstmann não pensou duas vezes, pois pelas contas dele, se fosse continuar teria que patinar uns seis anos sem ganhar dinheiro. "vou partir para o grão, pois eu tenho o maquinário e as áreas e o investimento é menor". O produtor conta que a casa da família, que fica a 60 metros do leito do rio Taquari foi severamente afetada pela enchente de maio, mas com alguns reparos daria para morar. "Mas dá uma trovoada e a gente pensa: vai dar enchente".
Mas não foi só o cenário de terra arrasada que desmotivou os produtores, especialmente de municípios do Vale do Taquari, a desistirem da atividade leiteira. A necessidade de sair dos lugares onde moram, buscando terras mais altas que permitam reiniciar a criação dos animais, inviabilizou a permanência de muitos: "não vamos repor os animais na mesma propriedade, pois daqui a pouco vem nova enchente e sempre a tendência de vir cada vez maior, como ocorreu em maio. Não tem como ficar dentro do risco, investir, construir tudo do zero, galpão, sala de ordenha e perder o rebanho e tudo de novo. Nossas perdas chegam a R$ 3,7 milhões e não consigo reaproveitar nem 10% do que sobrou. E para mudar não tem como, os preços dos terrenos estão impraticáveis e onde a gente mora desvalorizou. Por isso, vamos ficar só na produção de soja", afirma o produtor Samuel Wermann, do município de Estrela.
No caso dele, a tragédia afetou a propriedade em diversos sentidos, mas o pior deles foi a perda de mais de 90% do rebanho. "Eram 147 animais e só sobraram doze. Dez na propriedade e dois pegamos a seis quilômetros abaixo da nossa casa, apareceram vivos lá. O resto morreu, umas 40 presas no galpão, outras foram nadando embora e desapareceram, morreram em outros lugares", lamenta.
Além disso, ele teve danos em boa parte do maquinário, cinco tratores todos debaixo d'água, implementos molharam todos, alguns com seguro, mas todos vão dar manutenção, algumas máquinas que são eletrônicas e dão muita despesa. As lavouras também foram destruídas: dos 160 hectares de soja, havia 75 hectares ainda para colher e foram perdidos. Quase toda a alimentação estocada para as vacas leiteiras também foi perdida: 900 toneladas de silagem pronta para os animais e umas 250 bolas de pré-secado que Wermann produzia, tudo foi embora. Segundo ele, a intenção é vender os animais que sobreviveram e seguir plantando soja.
 

Falta de alimento para as vacas preocupa indústria e entidades ligadas aos produtores

Depois de amargar perdas severas com a enchente de maio: animais mortos ou perdidos, galpões e salas de ordenha destruídos, máquinas e equipamentos cobertos de lodo, muitos com perda total, os produtores enfrentam agora o problema da falta de alimento para as vacas. A situação preocupa a indústria, pois os volumes de leite coletados estão em queda, justamente num período que deveriam estar em alta. O presidente liquidante da cooperativa Languiru, Paulo Birck, diz que o período de maio é de aumento da produção, pois tem temperaturas mais amenas, principalmente o gado Holandês, pois se passar de 25°C ele começa a ter perda de produtividade.
"Num maio normal, coletávamos na faixa de 6,5 milhões de litros ao mês. Caiu para cinco 5,6 milhões de litros. Em junho, recuperamos um pouco, chegando a 6 milhões de litros, mas se fosse num ano sem enchente, com pastagens de inverno a pleno seriam 8 milhões de litros. E esse impacto é sentido na Languiru e outras indústrias também", disse Birck.
A grande preocupação é quando o produtor terá alimento disponível de novo. Tem propriedades que estão vendendo rebanhos, porque vai faltar alimentação. "Uma lavoura de milho precisa de, no mínimo, cinco meses para estar pronta. E antes de plantar os produtores terão que recuperar as áreas para implantar uma cultura, pois tem mais de 50 cm de sedimentos em cima dessa terra, trazidos pela água", acrescenta Birck.
Um dos momentos mais críticos da enchente foi quando os produtores precisaram colocar leite fora, pois esgotavam as vacas e não tinham nem como resfriar o alimento, pois os resfriadores estavam debaixo d'água. Os que conseguiam resfriar, não tinham como mandar via caminhão para a indústria, pois não tinha estrada para que os leiteiros chegassem nas propriedades. "A perda de produção foi enorme e, agora, esse impasse da falta de comida", complementa Birck.
O coordenador da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag) no Vale do Taquari, Marcos Hinrichse ressalta que tem muito inverno pela frente, com pouca pastagem disponível a campo, sem silagem, o produtor depende de apoio de fora. "A Fetag está dando esse apoio, mas não sabemos até que ponto vai ser suficiente".
Para o secretário-executivo do Sindilat, Darlan Palharini, seria importante esse aporte do Fundoleite justamente para subsidiar as propriedades que estão com dificuldade de alimentar o rebanho. "O clima não tem ajudado, tem tipo pouco sol, o que prejudica a questão das pastagens e agrava ainda mais o problema da falta de alimento para os animais", diz Palharini.
 

Abastecimento de leite deve se manter estável no Estado

Palharini diz que tendência é a situação se agravar ainda mais

Palharini diz que tendência é a situação se agravar ainda mais

TÂNIA MEINERZ/JC
A redução na produção de leite no Estado, provocada pela destruição de propriedades em várias regiões do Rio Grande do Sul, não deve levar a um cenário de desabastecimento do alimento. Quem garante é o secretário executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat), Darlan Palharini. Segundo ele, nas regiões mais atingidas estão apenas 10% dos produtores de leite gaúchos.
"Nas grandes regiões produtoras de leite, Norte e Noroeste houve menos danos e pouco atraso na questão de alimentação dos animais e a produção vem vindo", completa. E mesmo que tivéssemos o pior cenário, com mais áreas produtoras atingidas é só "estalar os dedos" que vem leite da Argentina e do Uruguai para atender o mercado.
Segundo Palharini, entra muito leite em pó e queijo dos países vizinhos pela condição de preço desses produtos, mais competitivos no mercado internacional. "Se comparar o mês passado de preço médio de Conseleite, o produtor gaúcho recebeu US$ 0,55 pelo litro do leite, enquanto na Argentina e Uruguai eles recebem US$ 0,36, pois é uma diferença enorme em termos de custos de produção e valor de matéria-prima", avalia Palharini.
A questão dos preços ao consumidor não deve ter grandes alterações, diferente do que a gente vê nessa época de inverno, que é, normalmente, uma época em que reduz oferta de leite e acaba aumentando o curso de produção.
A produção de leite foi impactada no Estado por uma série de fatores: falta de alimento para as vacas, problemas com o transporte do produto causados pelas enchentes que destruíram estradas, que também refletiram nos preços da logística. Muitas estradas ainda seguem sem condições de trafegabilidade, fazendo aumentar a rota de coleta do leite. "Esse custo acaba sendo dividido entre o produtor e a indústria, pois o consumidor não vai pagar mais caro pelo leite", afirma.
Sobre os danos sofridos pela indústria, Palharini diz que foram pouco significativos, especialmente por falta de energia elétrica, mas nada perto do que ocorreu nas propriedades rurais. "Os parques industriais não chegaram a ter grandes abalos, sendo quase todas preservadas", informa Palharini.
Sobre a saída de produtores da atividade, ele diz que a tendência é agravar a situação, pois muitos produtores foram atingidos pela terceira vez. "Não tem lucratividade que possa sustentar isso e se ele já tinha uma produção pequena, tem toda a questão psicológica de continuar na atividade ou não. Estamos vivendo um período de achatamento do número de produtores. Mas, por outro lado, a produção estadual não caiu e tem muitos tambos produzindo mais de 1000 litros de leite por dia, ou até mais, com uma lucratividade muito boa.
 

Setor segue sem respostas sobre valor e data para liberação do Fundoleite

Mesmo diante da maior catástrofe climática já vivenciada pelos gaúchos, produtores e indústria do setor leiteiro seguem sem respostas do governo do Estado sobre quando e quanto será liberado de recursos do Fundo de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Leite do Rio Grande do Sul (Fundoleite).
"Estamos no aguardo para que seja feito o anúncio da liberação dessa verba, para que esse recurso seja aplicado a fundo perdido para os produtores, para reposição de vacas leiteiras, implantação de pastagens, preparação de solo", afirma o secretário executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat), Darlan Palharini. Sobre o saldo do fundo, o dirigente diz ter sido feita uma consulta junto à secretaria da Agricultura e secretaria da Fazenda, mas ainda não recebeu resposta.
"Deve estar próximo dos R$ 40 milhões, mas não temos esse dado oficial. Não é muita coisa, mas para atividade inteira, é um valor bem considerável, que pode melhorar a competitividade", completa. Lideranças do setor também solicitaram aumento do crédito presumido do PIS e Cofins, através do programa Mais Leite Saudável do Governo Federal, passando de 50% para 100% para as empresas quadruplicarem os investimentos voltados ao restabelecimento dos produtores afetados.
"No Fundoleite, está um dinheiro escondido atrás de dez cofres de burocracia, este é o problema", protesta o presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês (Gadolando), Marcos Tang. Ele diz que, se o recurso do fundo não puder ser usado agora para socorrer o produtor, num momento de extrema dificuldade "não entendemos mais para que serve esse fundo", completa o dirigente.
Em nota, a Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação afirmou que "o governo está trabalhando para a liberação dos recursos do Fundoleite, na ordem de cerca de R$ 10 milhões, mas há questões administrativas e jurídicas que precisam ser superadas para manifestações futuras". A Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), lançou um projeto de fomento à cadeia produtiva do leite na ordem de R$ 30 milhões. Haverá bônus financeiro para produtores de leite com projetos vinculados à cadeia produtiva do alimento. O bônus será concedido diretamente na contratação das linhas de crédito disponibilizadas para agricultores familiares no Plano Safra 24/25. A partir da segunda quinzena de agosto, os produtores poderão acessar o programa diretamente nas agências do Banrisul.
 

Mesmo com perdas sucessivas, produtora segue na pecuária leiteira

Louvani diz que prejuízo mais expressivo foi na destruição das pastagens

Louvani diz que prejuízo mais expressivo foi na destruição das pastagens

Louvani Buhl/Arquivo pessoal/JC
O amor pela terra e a falta de um lugar para ir e recomeçar a vida longe do risco de uma nova enchente fez com que a produtora rural, Louvani Buhl, decidisse ficar na propriedade localizada no município de Estrela e seguir com o trabalho na pecuária leiteira. "A gente não tem para onde ir, e nem quero sair. Aqui é o lugar da gente. Até porque tudo na volta aqui foi afetado, teria que ir para outra região do Estado e não quero", diz a produtora.
Ela conta que os prejuízos maiores com a enchente de maio foram com a perda das pastagens de azevém e aveia semeadas pouco tempo antes da inundação. "A semente estava caríssima e muito escassa e infelizmente perdemos tudo de uma área de quatro hectares que agora está coberta por lodo", conta. O milho que estava plantado também foi perdido e por isso eles precisaram de ajuda para arrecadar alimento para os animais.
A boa notícia é que o plantel de 37 vacas leiteiras se salvou todo, pois com a ajuda dos vizinhos, Louvani conseguiu retirar os animais antes da subida violenta da água. "Dizia-se que a água não ia chegar, pois houve outras duas enchentes e não chegou. Mas agora foi diferente, muito mais forte. Precisamos levar as vacas para longe da casa, pois elas queriam voltar para perto da água. Precisamos botar elas num lugar mais alto". Pelo estresse, os animais não conseguiram produzir muito, precisaram ser esgotadas só duas vezes, o que reduziu a quantidade de leite que a produtora precisou colocar fora.
"O caminhão não conseguia coletar, pois não tinha estrada. O leite precisou ir todo fora. O resfriador também estragou, mas agora já estamos recuperando as perdas aos pouquinhos com os animais voltando a produzir". A estrutura do galpão e os equipamentos também foram preservados e ela conseguiu retirar boa parte dos móveis da casa, que teve assoalho e portas danificados.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Estrela, Rogério Heemann, disse que, nos municípios mais atingidos, a tendência é de que só uma minoria permaneça nas suas terras, pois a possibilidade de acontecer nova enchente é grande. "A maioria vai arrendar, pois vender não vale a pena. Uma área que antes valia R$ 100 mil, hoje não vale nem R$ 10 mil. A terra desvalorizou terrivelmente". Heemann defende linhas de crédito especiais e anistia das dívidas passadas para "os produtores que bravamente vão ficar", pois perderam casa, máquina, animais, alimento.
 

Nos últimos 10 anos, 50% dos produtores abandonaram a atividade leiteira, diz Marcos Tang

Tang critica importações de leite como mecanismo para reduzir preços

Tang critica importações de leite como mecanismo para reduzir preços

MJ Alvarenga/Divulgação/JC
O presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês (Gadolando), Marcos Tang, faz um panorama da atividade leiteira gaúcha que amarga prejuízos há anos, agravados pelas enchentes de maio, que acarretaram um movimento ainda maior de produtores que optaram por deixar a atividade leiteira.
Empresas & Negócios - Quais os principais motivos pelos quais os produtores de leite têm abandonado a atividade?
Marcos Tang - Nos últimos 10 anos, 50% dos produtores que estavam na atividade leiteira largaram a atividade. Tiveram que abandonar pelo alto custo na produção do leite e baixa remuneração que não paga os custos. Inicialmente, as pessoas diziam assim: são produtores que não se adaptaram, não investiram, não se adequaram. Isto é uma verdade parcial, talvez lá no início, pois vieram as normativas, tanque de expansão e foram necessários enormes investimentos nas propriedades leiteiras.
E&N - Mas essas medidas foram importantes para a qualidade do leite gaúcho, certo?
Tang - Claro, concordamos com todas elas, pois hoje temos leite de qualidade no Rio Grande do Sul e isso queremos deixar muito claro ao consumidor: leite com qualidade, tanto que não tem sido a pauta, o nosso leite tem qualidade e ponto. Mas esses produtores fizeram essas adaptações, esses investimentos, e a remuneração muitas vezes não cobriu esse investimento para pagar os empréstimos que tiveram que ser feitos. Aí você pega o Rio Grande do Sul, incluímos agora então as nossas condições climáticas desfavoráveis, não só a enchente, nós tivemos três anos de estiagem, seguidos agora por dois anos, 2023, 2024, de enchentes. Não foi só uma enchente, a de maio, que foi a grande impactante, mas tivemos setembro com chuvas fortes, 100 mm em dois dias e, em outros momentos, atrapalhando enormemente a nossa produção de alimentos. Agora, nós estamos com dificuldade de produzir alimento para nossas vacas leiteiras.
E&N - É possível dizer que a tragédia climática fez crescer ainda mais a curva de abandono da atividade?
Tang - A enchente entra neste contexto, para alguns uma dificuldade a mais a ser superada, e vão superar, e estão pegando empréstimo, estão pedindo ajuda, e estão conseguindo doação de alimentos para os animais e crédito para comprar. E assim por diante. Mas, para muitos, foi a pá de cal para encerrar com a atividade. Eu sempre lembro, quando eu fui presidente a primeira vez da Gadolando, dizia-se que nós tínhamos 60 mil, 80 mil produtores de leite, tínhamos praticamente 80 mil notas fiscais no fim do mês de produção de leite. Hoje nós estamos na casa dos 30, 32 mil, e agora após enchente provavelmente mais uma queda. Então, mais de 50% dos produtores pararam. É certo que quem ficou na atividade aumentou sua escala produtiva, mas, se hoje estão reclamando, se hoje estão com dificuldades, são os produtores que se adequaram, investiram e produzem o leite com qualidade, mesmo enfrentando enormes dificuldades.
E&N - E como tem sido equacionada essa questão da falta de alimento para os animais?
Tang - Se você não consegue produzir o seu próprio alimento, você tem que comprá-lo e, às vezes, pagando muito porque tem que vir de longe, às vezes tem frete, encarecendo enormemente. A enchente entrou nesse contexto, com produtores que já estavam com dificuldades pelos três anos de seca, alto custo de produção, baixa a remuneração, aí entra a importação também, competindo deslealmente conosco, e a enchente foi, como se diz aqui no Rio Grande do Sul, muitas vezes a pá de cal para alguém que estava na dúvida e remando com dificuldade, encerrar suas atividades. A questão do alimento é uma grande dificuldade, pois a atividade leiteira tem médio e longo prazo: uma terneira que nasce hoje, em julho de 2024, só produzirá leite em julho de 2026. São 24 meses tratada como bom alimento, carinho, cuidado, sanidade para ter uma boa vaca leiteira depois desse período. E ainda acho que na primeira lactação ela paga a sua criação, para depois na segunda lactação dar algum retorno ao produtor. Então, como vamos ter alimento se tivermos três anos de estiagem e ninguém conseguiu fazer uma boa reserva de alimentos? Aí, quando plantaram pastagem, veio a enchente. Não é o produtor de leite que está sempre chorando, as coisas estão difíceis mesmo.
E&N - A dieta das vacas inclui alimentos volumosos (forragens) e concentrados (grãos). A dificuldade está em conseguir os dois?
Tang - A ração, os grãos, você vai na agropecuária e compra. A grande dificuldade está em ter o volumoso, como feno, pré-secado, pastagem. Mesmo tendo dinheiro, está difícil de achar, muitas vezes tendo que vir de outras regiões. E o produtor sabe que ele mesmo tem que produzir o seu volumoso para diminuir o custo de produção e poder ter algum lucro. Tudo o que estamos falando aqui é custo de produção alto, porque não está sendo possível, nos últimos anos, no Rio Grande do Sul, você produzir o alimento para o seu gado.
E&N - E qual a situação agora, no pós-enchente?
Tang - O grande problema de quem foi enormemente atingido pela enchente, além da perda de animais, construção, produção de alimento, alojamento principalmente no Vale do Taquari, em Santa Cruz, Rio Pardo, Vale dos Sinos, Serra, também se perdeu muita pastagem que agora está fazendo falta. Nessa época, as vacas deviam estar pastando, ou este pasto ser servido no cocho, cortado e levado ao cocho. Isso devia ter acontecido em maio, junho, mas estamos em agosto e até agora ainda não temos esse pasto. Nossas pastagens estão muito atrasadas e não vamos conseguir usufruir delas, porque a maioria dos produtores tem pouca área de terra, então a mesma área é utilizada com duas, três safras: tira ali em março, abril, o milho, faz silagem, e semeia o pasto. Aí, em maio, junho, julho, agosto, setembro, usa esse pasto. Em outubro, planta o milho de novo, e assim por diante. Mas este ciclo se atrasou todo, porque em maio as pastagens foram lavadas, escorridas e riscadas do mapa. Então teve que ser ressemeada onde o solo permitiu, pois em muitas áreas tem que haver uma recuperação de solo, e recuperação de solo não é rápido, vai anos, ou seja, a próxima safra também está comprometida. Nas áreas menos atingidas, tivemos 60 dias de atraso nas pastagens, as áreas que tiveram o solo arrasado não têm como instituir uma pastagem.
 

*Ana Esteves é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou como repórter setorista de agronegócios no Jornal do Comércio, Correio do Povo e Revista A Granja. Hoje, atua como assessora de imprensa e repórter freelancer. Também é graduada em Medicina Veterinária pela UFRGS.

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