As enchentes no Rio Grande do Sul que ocorreram no final de abril deixaram um rastro de destruição que vai além dos danos materiais, impactando profundamente a vida de milhares de trabalhadores em todo o estado. E para a maioria, o retorno ao trabalho após uma catástrofe coletiva representa um desafio ainda maior.
Estudos realizados pela UFMG dois anos após a tragédia em Mariana (MG) revelaram que quase 30% da população afetada pelo desastre em Brumadinho apresentava sintomas associados à depressão, um índice quase cinco vezes maior do que o observado no restante da população do país. Para Simone Nascimento, médica com especialização em saúde mental e bem-estar corporativo, nesse processo delicado de retomada, as empresas desempenham um papel fundamental no apoio e na reintegração desses trabalhadores.
Segundo a médica, a volta ao trabalho apresenta desafios significativos para os colaboradores. Além das perdas materiais e de entes queridos, há uma quebra abrupta da rotina conhecida, sobreposta a outras perdas como a financeira, da liberdade, do convívio social, e a interrupção de planos e projetos. Situações como essa também podem desencadear sentimentos de perda, culpa, raiva e medo. Se não forem adequadamente gerenciados, esses sentimentos podem afetar significativamente o bem-estar e o desempenho no trabalho, podendo levar a transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), ansiedade, depressão e alterações do sono.
"Muitos que sofrem com a insegurança alimentar e de moradia, dificuldade de acesso a suporte médico e psicológico para a gestão do estresse pós-traumático, também lidam com a sensação de isolamento, alterações do sono, levando a fadiga crônica, dificuldades de concentração, além do medo da recorrência dos eventos traumáticos. Sendo assim, a reintegração ao cotidiano de trabalho demanda uma adaptação que respeite os diferentes ritmos de recuperação de cada indivíduo e as organizações precisam entender isso."
Para apoiar os funcionários, é fundamental que as lideranças compreendam e validem a gravidade da situação. Evitar pressioná-los a "superar rapidamente" suas emoções, ou a minimizar suas experiências, é crucial. As empresas devem evitar a comunicação genérica e a positividade forçada, além de garantir ações concretas de suporte.
Sobrecarregar os colaboradores com exigências de produtividade imediatas também deve ser evitado, respeitando o processo de recuperação individual. Essas práticas criam um ambiente seguro e contribuem para restabelecer a normalidade de forma mais rápida, ao contrário de ações que podem causar mais danos.
Simone também sugere que as empresas ofereçam flexibilidade de horário e a possibilidade de trabalho remoto, mesmo que temporariamente, para acomodar as diferentes necessidades dos funcionários. É importante considerar, porém, que muitos colaboradores que estavam em home office perderam seus equipamentos de trabalho e estão impossibilitados de retornar às suas casas.
Outra estratégia eficaz é a antecipação de férias coletivas, especialmente nos casos em que a própria empresa foi afetada pela tragédia. Isso permite que os funcionários tenham um período para se recuperar emocionalmente e lidar com as consequências do desastre.
"Programas de apoio à saúde mental, com sessões regulares com psicólogos e espaços de descompressão no local de trabalho, podem ajudar os colaboradores a enfrentar o estresse pós-traumático e a sensação de isolamento. Implementar um sistema de mentoria ou grupos de apoio também pode ser benéfico, permitindo que os funcionários se sintam mais amparados durante o processo de reintegração. Esse sistema de apoio pode ser criado em ambiente virtual, envolvendo pessoas de outras regiões que se voluntariam para atender a essas demandas", indica a médica, que complementa dizendo que é essencial que a liderança da empresa esteja verdadeiramente comprometida com as iniciativas de apoio e criar um ambiente seguro é crucial para evitar perdas ainda maiores, tanto para os colaboradores quanto para a produtividade.
Simone diz que é preciso ter empatia e comunicação não violenta
Simone Nascimento/arquivo pessoal/jc
Treinamentos sobre empatia e comunicação não violenta podem ajudar gestores e líderes a lidarem melhor com essas situações, diz Simone
"Treinamentos sobre empatia e comunicação não violenta podem ajudar gestores e líderes a lidarem melhor com essas situações. Readequar projeções e expectativas é fundamental para a sustentabilidade do negócio. Recomenda-se também a criação de um plano de continuidade de trabalho que incorpore estratégias de gestão de crises e saúde mental, preparando a empresa para responder de maneira eficaz e sensível a futuras adversidades, podendo servir de exemplo para outras regiões não afetadas".