Loraine Luz, especial para o JC*
A designação "lugar de veraneio" parece incompleta para o papel que os municípios do Litoral Norte vêm assumindo nos últimos anos. Dirigentes e agentes públicos que lidaram diretamente com as vítimas da enchente histórica de maio acolhidas na região afirmam que muitas delas não pretendem mais voltar para as cidades de origem. O fenômeno lembra a época da pandemia, quando o Litoral serviu de refúgio. O crescimento exato do número de moradores nas praias - em caráter definitivo ou ao menos pelos próximos meses - ainda não é possível afirmar. Boa parte do contingente de necessitados já foi pulverizada, buscando meios de se manter por conta própria, mas há expectativa de que as demandas nas áreas de saúde e educação extrapolem a capacidade local. Por outro lado, a presença de mais gente aquece o setor de serviços e pode incrementar a oferta de mão de obra qualificada.
Decisão de não voltar a cidades impactadas por desastre se espalha pelo Litoral
Neusa Zynich, 66 anos, está em Balneário Pinhal, na casa da filha, Gabriela dos Santos Zynich, depois de perder a residência em Canoas para a enchente
loraine luz/especial/jcNeusa Zynich, 66 anos, está em Balneário Pinhal, na casa da filha, Gabriela dos Santos Zynich, depois de perder a residência em Canoas para a enchente. Myllena Moreira, 24 anos, está na casa do pai, em Tramandaí, com o filho Micael, de oito anos, depois de ter sido resgatada pelos bombeiros do apartamento onde morava, também em Canoas. Tiago Bopsin, 36 anos, está abrigado em Capão da Canoa. Sua casa recém-construída nos fundos de um terreno no bairro Humaitá, em Porto Alegre, foi levada pelas águas. Valníria Ribeiro, 46 anos, reveza residências de conhecidos, em Magistério e em Cidreira, sem ter como voltar para a Ilha da Pintada, na Capital, onde passou toda a vida. Vinicius Grings da Silva, 33 anos, está com a família em Osório, depois que a residência em Rolante foi inundada, destruindo móveis, eletrodomésticos e itens pessoais.
Em comum entre eles não apenas o maior desastre socioambiental da história do Rio Grande do Sul, mas uma decisão: a de permanecer no Litoral.
"Avaliamos que entre 5% e 10% do total que foi para o Litoral parece desejar ficar. Vamos dizer que 5% é um percentual mais adequado. Isso pode ser percebido pelo pedido de vagas em creches e cadastros de SUS", afirma o presidente da Associação dos Municípios do Litoral Norte (Amlinorte) e também prefeito de Maquiné, João Marcos Bassani dos Santos. Para ele, a decisão de ficar é um desejo de recomeçar.
Ique Vedovato, prefeito de Imbé, vê semelhanças entre o momento atual e o período da pandemia, quando o Litoral também recebeu mais gente por um longo período. "É muito parecido. Muitas pessoas que deverão recomeçar sua vida o farão por aqui. Teremos um incremento populacional grande", aposta. Para o secretário de Assistência Social de Balneário Pinhal, Rômulo Ingracio, é evidente pelas ruas que muita gente continua na praia mais de 40 dias depois do desastre. "Entre 50% e 60% ainda permanecem", estima ele.
Em outras localidades na faixa leste gaúcha, a percepção é parecida. "Ainda tem muita gente aqui, a cidade está aquecida, mais ou menos como um dia de semana de veraneio", atesta o prefeito de Capão da Canoa, Amauri Magnus Germano, durante entrevista em meados de junho. Segundo ele, houve picos de 150 mil e até 180 mil pessoas que passaram pela praia durante os dias mais críticos da enchente em Porto Alegre e Região Metropolitana. "Ainda não dá para ter certeza do número, mas em conversas com técnicos e secretários que tiveram mais contato com as pessoas que precisaram de atendimento, sabe-se que muitas não pretendem voltar", garante.
A prefeitura de Cidreira projeta que o número de habitantes aumentou em cerca de 8 mil desde as inundações, entre desabrigados acolhidos por moradores e veranistas não necessariamente atingidos, mas que buscaram o Litoral para fugir do caos. Segundo nota à reportagem, há forte expectativa de que muitos não retornem às cidades de origem, dada a maior demanda nas unidades de saúde da família, em postos e na transferência de registros SUS. Na agência Sine/FGTAS dentro do centro administrativo da prefeitura, um detalhe chama a atenção dos recrutadores: currículos com maior experiência, o que faz Zeno Andrade, secretário da Indústria e Comércio de Cidreira, pasta responsável pelo Sine, relacionar à presença na praia de pessoas vindas de outras localidades por causa da enchente. "Por isso estamos falando com os empresários locais, fazendo uma campanha para que divulguem suas vagas", afirma Zeno. No entendimento dele, com mais gente circulando, o setor de serviços deve precisar reforçar o quadro de funcionários para se adequar à demanda.
A possibilidade de currículos mais incrementados também chamou a atenção do coordenador do Sine de Capão da Canoa, Cristian Machado, que teve a iniciativa de visitar abrigos e oferecer o cadastro a pessoas acolhidas, caso tivessem interesse em emprego local. Segundo ele, trabalhadores com experiência em cidades maiores têm outra cultura. Em conversa com coordenadores de outras agências no Litoral, durante reunião de praxe no final de maio, Machado afirma que todos perceberam, no movimento por procura de vaga, a presença de pessoas que fugiram das cheias - na ordem de 10% do total de atendimentos em algumas delas.
"Tivemos um movimento de procura por vaga entre os desabrigados", confirma Dione dos Santos, coordenadora do Sine/FGTAS em Torres. Preocupada com a questão da empregabilidade, ela conta que se reuniu com representantes públicos e do empresariado local logo nas primeiras semanas. "Por sorte, está se instalando uma Stok Center na cidade, abriram cerca de 200 vagas e estamos encaminhando as pessoas. Ainda estão em fase de entrevistas e seleção", avisa ela.
Em nota à reportagem, a prefeitura de Torres afirma que pelo menos 20 famílias daquelas recebidas durante o caos permanecem na cidade, fato percebido devido a novas matrículas na rede municipal de ensino.
Na primeira semana de junho, o número de atendimentos entre alojados em casas de moradores de Osório chegava a mais de 850 pessoas, aproximadamente, conforme dados do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). Para além da presença de novas pessoas na cidade, o município pode viver um outro efeito das enchentes. Conforme Lucas Gehlen, presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Osório (ACIO), empresas da Região Metropolitana de Porto Alegre atingidas pelas cheias consideram a possibilidade de se mudarem para a cidade. Gehlen foi convidado a participar de um comitê para recepcioná-las e está otimista de que Osório seja escolhido por elas (nomes não ainda podem ser divulgados). "São indústrias do setor alimentício, do moveleiro, da construção civil e de commodities", afirma.
Representante do Secovi-RS para o Litoral Norte, Marcelo Callegaro acredita que as consequências definitivas dessa migração causada pelo evento climático só ficarão mais claras nos próximos meses. "A gente ainda não detectou a força dessa migração. Acreditamos que deve haver uma tendência de aquisição de imóveis. Mas temos de aguardar. O que sabemos é que muitas regiões do Estado vão demorar para se recompor", observa.
Depoimentos
Vinicius com a esposa Thalita Luana e a filha Chloe mudaram para Osório
Vinicius Grings da Silva/ARQUIVO PESSOAL/JC"A gente limpou a casa em Rolante, mas não vamos voltar. A cada chuva que dá, ficamos com medo."
Vinicius Grings da Silva, que, com a esposa, Thalita Luana Faccio, e a filha, Chloe, está morando em Osório, em sua segunda casa, desde o início de maio. A enchente acelerou os planos do casal de se fixar no Litoral. Com a mudança, os empresários que trabalham em home office à frente de um açougue on-line (pedramoura.com), incrementaram o negócio, que agora passa a atender os municípios do Litoral o ano todo, não somente no verão.
"Eu teria perdido a minha casa também, se não tivesse me mudado para cá há alguns meses."
Gabriela dos Santos Zynich, 49 anos, que mora em Balneário Pinhal desde outubro do ano passado e agora sua casa é também a dos pais, Ramon e Neusa, após o casal perder tudo com a enchente em Canoas. "Minha mãe estranhou um pouco, aqui é mais tranquilo que na cidade grande, né? Mas ela já está fazendo amizade com as vizinhas", comenta a funcionária pública concursada.
"Quero continuar por aqui, vou procurar trabalho na área de mercado e farmácia. Pretendo recomeçar."
Myllena Moreira, 24 anos, se sente mais segura e acolhida no Litoral, onde tem muitos familiares, de parte de mãe e pai e também de parte do marido, que ficou em Canoas por causa do emprego. O casal morava no bairro Fátima há pouco menos de três meses e, agora, se forem voltar para Canoas, buscarão outra região. "Minha ideia é ficar em Tramandaí pelo menos até fevereiro", afirma ela, ao lado do filho, Micael, de oito anos.
"O pessoal aqui (do abrigo) está vendo possibilidades de trabalho para mim. Minha ideia é ficar, gosto do Litoral."
Tiago Bopsin, 36 anos, que trabalhava em obras em Porto Alegre, onde, usando todas as economias, tinha construído uma pequena moradia no bairro Humaitá, um dos mais castigados pela enchente. Ele acabou acolhido em um abrigo em Capão da Canoa depois de chegar à praia apenas com a roupa do corpo. "Penso em fazer brigadeiros gourmet para vender na rua, sou comunicativo e disposto", planeja.
"Por enquanto não tenho para onde voltar. (...) Aqui no Litoral está muito bom, eu quero ficar."
Valníria Ribeiro, 46 anos, que até abril trabalhava na cozinha, como funcionária terceirizada, da Escola Maria José Mabilde, destruída pela enchente na Ilha da Pintada. As águas subiram até a sacada de sua residência, de dois andares. Ela calcula que vai ser longa a espera pelo que vai acontecer com a escola e com o bairro como um todo agora. Enquanto um grande ponto de interrogação ocupa seu cotidiano, ela pretende ficar em Cidreira e, assim que tudo ficar melhor definido, procurar trabalho.
Alta temporada fora de época
Torres, conhecida mundialmente pelo Festival de Balonismo, está entre os destinos procurados como refúgio
FÁBIO VIVALDINO LOPES/DIVULGAÇÃO/JCNão teve o tradicional veranico de maio este ano, mas o mês reservou ao Litoral Norte um movimento de alta temporada inesperado. Diferentes setores da economia local experimentaram uma demanda atípica - principalmente nos primeiros 15 ou 20 dias, quando o maior desastre socioambiental da história gaúcha instaurou o caos na Capital e na Região Metropolitana. A sugestão de desafogar Porto Alegre e arredores partiu do próprio prefeito, Sebastião Melo.
O papel de abrigo e refúgio assumido pelo Litoral, tal qual aconteceu durante a pandemia, aqueceu o setor de serviços - como supermercados, restaurantes, farmácias, postos de combustível e imobiliárias - mas também exigiu esforços de gestores públicos e da comunidade em geral, que se voluntariou para acolher os mais necessitados.
"Nos primeiros 10 dias tivemos um aumento em torno de 90% em relação ao mesmo período do ano passado", comenta Cesion Pereira, diretor AGAS (Associação Gaúcha de Supermercados Gaúchos) em Capão da Canoa e diretor da Rede Super da Praia. Para se adequar à demanda, ele remanejou 25 funcionários de outras lojas para a de Capão. "Depois, caiu para 30% nos outros dias e no final de maio para em torno de 15%, o que deve se manter em junho", projeta. Segundo o dirigente, supermercadistas de Xangri-lá e Imbé tiveram a mesma percepção.
Em nota para a reportagem, a rede de farmácias São João, com 50 lojas espalhadas pelo Litoral, confirmou um "considerável aumento" de clientes no mês de maio, demanda associada à migração pelas enchentes. Já o grupo Panvel registrou pelo menos 20 dias de movimento extra, chegando a 65% superior se comparado ao mesmo período do ano passado e exigindo ajustes para dar conta dos atendimentos. "Foram contratados cerca de 38 funcionários temporários em 23 lojas do Litoral Norte. Parte destes profissionais já havia atuado conosco na temporada de verão, o que agilizou o processo de integração", relata Roberto Coimbra, diretor executivo da Panvel. Segundo informações da Sulpetro, postos da região de Capão registraram um aumento de cerca de 30% na demanda por combustível até por volta do dia 17 do mês de maio.
A migração anormal alterou a rotina do mercado imobiliário. Representante Secovi-RS para a região, Marcelo Callegaro confirma a maior procura por locações no período. "Aqui em Tramandaí e Imbé, muita gente veio de Canoas. Soubemos de imóveis com 25, 30 pessoas", destaca. Danubia Almeida, proprietária da imobiliária ViaMar, em Tramandaí, compara o mês de maio ao movimento na semana de ano-novo. "Nunca existiu uma procura assim em meses de maio, por locações de uma semana, 15 dias… e tem cliente que alugou por 30 dias e estão renovando por mais 30", afirma ela. A imobiliária Noêmia - Central de Aluguéis, que atua exclusivamente com locações em Capão da Canoa, verificou um aumento de 20% nos negócios, em comparação a maio do ano passado. "Agora tem gente procurando por anual. Porque se gosta, se adapta à cidade, aí compra", avalia a diretora, Noêmia Reckziegel. O que chamou a atenção de Cristian Novascki, proprietário da Imobiliária Home, de compra e venda, foi o crescimento do movimento no site da empresa. E ele se espanta como morador da praia também: "A (avenida) Paraguassu não tinha lugar para estacionar. Supermercados, salão de beleza e restaurantes praticamente lotados".
Pouco mais de 60km dali, em Torres, a migração inesperada rendeu ao Cantinho do Pescador, tradicional restaurante de frutos do mar às margens do Mampituba, um faturamento 30% superior durante os primeiros 15 dias de maio (se comparado ao mesmo período de 2023). "Na terceira semana, caiu mas ainda se manteve superior ao mesmo mês do ano passado", comenta Douglas Mesquita, proprietário. A demanda não o pegou desprevenido: "Como nos preparamos para o Festival de Balonismo (cancelado justamente pelo estado de calamidade pública no Estado), tínhamos estoque e conseguimos atender bem o movimento".
O aquecimento do setor foi percebido em outras praias também."Tanto a hotelaria quanto a gastronomia sentiram a movimentação fora de época, cerca de 40% superior", afirma Ivone Ferraz, presidente do Sindicato dos Hotéis e Restaurantes do Litoral Norte. Segundo ela, no final de maio, a movimentação atípica já havia caído pela metade, mas se mantinha fora do comum.
Esforço voluntário foi fundamental para atender milhares de necessitados
Capão da Canoa está entre as cidades mais procuradas por quem precisou deixar a casa em busca de refúgio
CLAUDIO MEDAGLIA/ESPECIAL/JCA Amlinorte estima que, no auge da catástrofe, tenham se deslocado para o Litoral Norte entre 400 mil e 500 mil pessoas. Em um primeiro momento, os destinos mais impactados foram Cidreira, Balneário Pinhal, Tramandaí e Capão da Canoa - os dois primeiros pela proximidade com a Capital e porque o acesso é feito pela ERS-040, uma das únicas estradas com condições de trânsito na ocasião.
Os setores mais impactados nos municípios foram saúde e assistência social. As doações e a pró-atividade de voluntários, entre cidadãos e empresas, tiveram uma importância fundamental para que as cidades pudessem absorver essas demandas. Entre aquelas pessoas desabrigadas, foram necessários atendimento médico e medicações, além de itens básicos, como roupas e cestas básicas.
Vale lembrar que a região também registrou transtornos no atípico mês de maio. Levantamento da Amlinorte aponta que, dos 23 municípios, apenas dois não registraram problemas. Nas praias, os transtornos foram essencialmente alagamentos de ruas.
Diante da permanência de migrantes, os municípios que mais receberam desabrigados e desalojados estão na expectativa do impacto desse do aumento de demandas na Secretaria de Saúde, cujo orçamento já é apertado. Além disso, as ajudas voluntárias costumam se reduzir.
Destinos solidários
Ginasio Torrense concentra recebimento de doações em Torres
PREFEITURA DE TORRES/DIVULGAÇÃO/JCTorres
Segundo relato da assessoria de imprensa de Torres, a cidade experimentou um repentino e grande movimento no comércio local e a presença de "um número incalculável de veranistas" no período mais crítico enfrentado pela Capital. No dia 11 de maio, havia pelo menos cinco abrigos organizados por voluntários - 3 deles da igreja evangélica Jesus's House. Recebidos por entidades religiosas ou parentes, 600 desabrigados, aproximadamente, impactaram na procura por serviços da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos e da Secretaria de Saúde, como distribuição de cestas básicas e aplicação de vacinas contra a gripe. No final de maio, o movimento na praia estava normalizado.
Imbé
A repentina fuga de gaúchos para a cidade precisando de assistência chegou a provocar, no dia 8, um decreto de calamidade pública pelo prefeito, que acabou revogado no dia seguinte. Àquela altura, a cidade já havia recebido cerca de 5 mil pessoas necessitadas. O movimento na cidade foi ainda maior, dada a presença de moradores também, como nos dias de verão. O CTG Querência do Imbé foi ponto de recebimento e distribuição de doações. Nos primeiros dias de ação, cerca de 40 voluntários assumiram as atividades no local.
Tramandaí
Na primeira quinzena de maio, estima-se que cerca de 50 mil pessoas tenham migrado para a cidade. Nos primeiros dias, o cenário se assemelhava ao de um dia de veraneio. A prefeitura montou uma estrutura no Centro Municipal de Eventos para auxílios, recebimento e distribuição de doações. Até 15 de maio, mais de 9 mil pessoas já tinham sido atendidas. Dali também saíram doações para outras cidades. O trabalho foi possível com o apoio de inúmeros voluntários. A enchente histórica cancelou a 33ª edição da Festa Nacional do Peixe, um evento importantíssimo para a economia local.
Cidreira
Conforme o gabinete da prefeitura, foram realizados mais de 20 mil atendimentos, porém muitos reincidentes. A gestão municipal não disponibilizou abrigos próprios, mas montou um "QG" para recebimento e distribuição de doações, contando com um grupo de voluntários. As atividades foram encerradas em 7 de junho no local.
Balneário Pinhal
Conforme o secretário de Assistência Social, Rômulo Ingracio, cerca de 10 mil pessoas passaram pelo ponto de apoio do município, buscando atendimento em maio. A própria sede da prefeitura foi ponto de coleta de doações, assim como o Salão Paroquial da Capela São Pedro, em Magistério. Pinhal chegou a decretar situação de Emergência por causa de alagamentos.
Capão da Canoa
Conforme a prefeitura, cerca de 4 mil pessoas se estabeleceram na cidade, em casas alugadas, compartilhando endereços ou mesmo acolhidas por parentes. Para atender quem chegou sem nada, foram criadas estruturas temporárias, para arrecadar e distribuir doações, além de dar atendimento médico e psicológico. Por iniciativa de grupos de voluntários, os necessitados puderam contar com abrigos. O envolvimento da comunidade e de empresários foi fundamental para suprir as necessidades das vítimas.
Título de moradia 'eventual' não reflete a realidade das praias
Beira Mar em Capão da Canoa
TÂNIA MEINERZ/JCO crescimento populacional de municípios litorâneos ganhou destaque durante a pandemia de covid-19 e, agora, a catástrofe das inundações de maio se torna outro marco no desenvolvimento recente da região. Ainda que não se possa radiografar exatamente os efeitos permanentes dela em cada cidade, a migração forçada pelas enchentes, momentânea ou definitiva, reforça uma reivindicação de gestores públicos locais: as praias já não poderiam mais ser tratadas como moradia eventual. A classificação de segundo domicílio pelo IBGE impacta na destinação de recursos financeiros provenientes de fontes públicas.
“Cada vez mais o próprio veranista permanece mais tempo no Litoral. Em muitos casos, é praticamente meio a meio com a cidade de origem. Só que todas as políticas públicas são voltadas para os locais identificados como primeiro domicílio, e as cidades do Litoral seguem tratadas como domicílio eventual. É o eventual que não é mais tão eventual”, destaca João Marcos Bassani dos Santos, presidente da Associação dos Municípios do Litoral Norte (Amlinorte) e também prefeito de Maquiné.
Segundo ele, isso acentua as dificuldades em garantir as condições ideais de saúde, educação e saneamento básico, áreas ainda frágeis em muitos pontos da região. Outra carência, que dependeria de maior atenção do governo federal, é o pouco incentivo à promoção de cursos profissionalizantes e de aprimoramento - a falta de mão-de-obra qualificada é um problema crônico para o desenvolvimento dos municípios. O dirigente entende que a forma de classificação deveria ser revista pelos levantamentos do IBGE. Prefeito de Capão da Canoa, Amauri Magnus Germano se junta a ele na reivindicação:
“As pessoas com duas residências acabam ficando aqui o dobro do tempo, mas não são contadas nos índices que nos permitem receber mais recursos dos governos estadual e federal. É uma divergência que se vê aí”, aponta. “Às vezes, a pessoa fica na praia seis meses, 10 meses e o endereço principal dela é em outra cidade. Os técnicos do IBGE deveriam estudar regiões como a nossa. Nós aqui muitas vezes crescemos mensalmente”, afirma.
Em Imbé, a percepção do poder público caminha na mesma direção:
“O Litoral já é, por si só, um local com apelo de migração de pessoas, pela qualidade de vida, e a prova é que somos a região que mais cresceu no Estado. Agora com esse evento catastrófico, no momento do recomeço, as pessoas vão pensar em fazer isso em um local que se sintam mais seguras. É claro que vai haver migração. Muitos já declaram que vão ficar aqui”, relata o prefeito, Ique Vedovato. “Aqui, foram acolhidos, tiveram o que não tem lá, as crianças vão para a escola e já saem com uniforme, com material escolar. As famílias se cadastram e podem pegar cestas básicos”, relata.
A sobrecarga nas áreas de saúde e educação é uma das maiores preocupações dos dirigentes municipais nesse momento pós-enchente. “São crescimentos populacionais que deveriam acontecer aos poucos, porque aí vai se projetando o orçamento da cidade. De modo repentino, gera preocupação”, ilustra o representante de Capão. Segundo Amauri Magnus Germano, várias providências foram tomadas em sua cidade para se adequar ao cenário de possível maior demanda. A inauguração de uma escola de educação infantil, por exemplo, foi antecipada e 22 escolas remanejaram estruturas para abrir mais salas. “A falta de vagas já era um problema anterior à presença dessas pessoas agora, porque a cada veraneio mais gente fica por aqui”, justifica.
Ciente do problema, a Famurs (Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul) pretende abrir um diálogo com os governos estadual e federal depois de radiografar mais precisamente a situação de cada região pós-enchentes. A entidade prepara um congresso para julho, provavelmente na segunda semana. A migração climática deverá estar na pauta.
“No debate com os municípios, durante o congresso, vamos detalhar as ações que temos de tomar em conjunto, não isoladamente, analisando impactos e quais os grandes gargalos de cada região”, promete Marcelo Arruda, presidente da entidade. Para ele, a grande reivindicação do Litoral deverá ser a de mais recursos. “Crescer de repente é um desafio, como aconteceu na pandemia, pois exige recursos para saúde e educação, grandes preocupações de prefeitos e prefeitas dessas regiões”, explica. Para ele, a decisão de se fixar na praia vai depender muito da estrutura que cada município tem a oferecer.
O dirigente entende, ainda, que a chegada de um contingente de pessoas vindo de outras cidades também é uma oportunidade para o desenvolvimento da região litorânea. “Todos os municípios têm carência de mão-de-obra”, aponta. Então, a migração pode proporcionar a negócios e empresas locais a contratação de colaboradores com currículos melhores.
Como entidade que representa todas as cidades gaúchas, a Famurs não perderá de vista o esforço de garantir às regiões destruídas pelas inundações os recursos prometidos, para se reestruturarem de forma ágil e adequada. Para Marcelo Arruda, a maioria das pessoas não quer sair de sua cidade de origem, onde estão familiares e amigos. Quer permanecer. “Desde que com segurança”.
“Acaba que o IBGE não identifica essas migrações que acontecem para o Litoral, e os municípios seguem recebendo recursos proporcionalmente à população oficial. Mas as prefeituras vão absorvendo, os prefeitos querem resolver a situação do cidadão que bate ali na porta, porque conhecem um a um.”
Marcelo Arruda, presidente da Famurs e prefeito de Barra do Rio Azul
“Acaba que o IBGE não identifica essas migrações que acontecem para o Litoral, e os municípios seguem recebendo recursos proporcionalmente à população oficial. Mas as prefeituras vão absorvendo, os prefeitos querem resolver a situação do cidadão que bate ali na porta, porque conhecem um a um.”
Marcelo Arruda, presidente da Famurs e prefeito de Barra do Rio Azul
Região campeã em 'domicílios ocasionais'
Crescimento populacional de municípios litorâneos acelerou na pandemia
MARCELO G. RIBEIRO/arquivo//jCUm ponto levantado pelos prefeitos do Litoral é que os indicadores do IBGE não identificam as longas permanências - espontâneas ou forçadas, como no caso da enchente - nem a rapidez com que a região ameaça crescer a cada vez que serve de refúgio, durante um veraneio ou fora dele.
O censo acontece a cada 10 anos. A pandemia de covid-19 adiou o levantamento previsto para 2020 e, no ano seguinte, não houve pesquisa em virtude da contenção de gastos. Assim, os resultados mais recentes do censo demográfico são de 2022 e só começaram a ser divulgados em junho do ano passado. Os dados ajudam a qualificar a gestão no país, na medida que servem de parâmetro para a implantação de políticas públicas.
Conforme a pesquisa, a população do Litoral Norte cresceu significativamente desde 2010 (ano do levantamento anterior): aumento de 23,3%, considerando as 23 cidades que compõem a Associação de Municípios do Litoral Norte (Amlinorte). Enquanto isso, a população do Estado aumentou apenas 1,7%. Pelo censo mais recente, os moradores do Litoral Norte representam 3,8% do total de do Rio Grande do Sul.
Outra informação que chama a atenção é que o Litoral do Estado é campeão em “domicílios ocasionais”. Seis entre os 10 municípios com maior percentual de domicílios de uso ocasional ficam na região, incluindo os quatro primeiros na lista: Arroio do Sal, Xangri-lá, Cidreira e Palmares do Sul. Balneário Pinhal e Imbé aparecem em sexto e sétimo lugares, respectivamente. De acordo com o IBGE, o domicílio ocasional é o particular permanente que, na data de referência, servia ocasionalmente de moradia. Ou seja, são aqueles usados para descanso de fins de semana, férias ou outro fim, mesmo que, na data de referência, seus ocupantes ocasionais estivessem presentes.
O censo acontece a cada 10 anos. A pandemia de covid-19 adiou o levantamento previsto para 2020 e, no ano seguinte, não houve pesquisa em virtude da contenção de gastos. Assim, os resultados mais recentes do censo demográfico são de 2022 e só começaram a ser divulgados em junho do ano passado. Os dados ajudam a qualificar a gestão no país, na medida que servem de parâmetro para a implantação de políticas públicas.
Conforme a pesquisa, a população do Litoral Norte cresceu significativamente desde 2010 (ano do levantamento anterior): aumento de 23,3%, considerando as 23 cidades que compõem a Associação de Municípios do Litoral Norte (Amlinorte). Enquanto isso, a população do Estado aumentou apenas 1,7%. Pelo censo mais recente, os moradores do Litoral Norte representam 3,8% do total de do Rio Grande do Sul.
Outra informação que chama a atenção é que o Litoral do Estado é campeão em “domicílios ocasionais”. Seis entre os 10 municípios com maior percentual de domicílios de uso ocasional ficam na região, incluindo os quatro primeiros na lista: Arroio do Sal, Xangri-lá, Cidreira e Palmares do Sul. Balneário Pinhal e Imbé aparecem em sexto e sétimo lugares, respectivamente. De acordo com o IBGE, o domicílio ocasional é o particular permanente que, na data de referência, servia ocasionalmente de moradia. Ou seja, são aqueles usados para descanso de fins de semana, férias ou outro fim, mesmo que, na data de referência, seus ocupantes ocasionais estivessem presentes.
Migração climática traz desafios e oportunidades
Porto Alegre foi uma das cidades mais atingidas pela tragédia climática, superando a marca da cheia histórica que invadiu a capital gaúcha em 1941
EVANDRO OLIVEIRA/JCNão apenas a devastação de um local e a consequente dificuldade de retomar condições básicas de vida, mas também o medo de reviver o trauma de um evento climático extremo justificam um fenômeno já evidente em diferentes partes do mundo e agora passível de se verificar no Rio Grande do Sul: pessoas migrando para outras cidades onde se sintam mais seguras.
Para a doutora em Direito pela Ufrgs, a professora Laura Madrid Sartoretto, é necessário desenvolver mecanismos jurídicos e políticas específicas para proteger os direitos dos migrantes climáticos, quer sejam eles refugiados (termo usado quando cruzam fronteiras) ou deslocados internos, garantindo acesso a condições de vida dignas e a oportunidades de reconstruir suas vidas nos locais de destino.
"Acredito que os governos não apenas não estão avaliando de maneira adequada o aumento dos deslocamentos em função do clima, como também não estão considerando as consequências mais amplas das mudanças climáticas em todos os âmbitos da vida", afirma a professora. Laura é advogada colaboradora do Grupo de Assessoria a Migrantes e Refugiados Gaire/Saju/Ufrgs e já trabalhou em diversos projetos com imigrantes e refugiados na Inglaterra, na Itália e no Brasil.
O último Relatório Mundial sobre Deslocamento Interno, publicado ano passado pelo IDMC - The Internal Displacement Monitoring Centre (Centro de Monitoramento de Deslocados Internos), ONG internacional criada em 1998 pelo Conselho Norueguês para Refugiados em Genebra, indica que as catástrofes naturais causaram cerca de 32,6 milhões de deslocamentos entre países em 2022, um número maior do que por conflitos armados (28,3 milhões de migrações). O documento reforça, porém, que a maioria das pessoas "forçadas a fugir devido a desastres relacionados ao clima" se move de maneira regional. Relatório da ACNUR (agência da ONU para refugiados) prevê que até 2030 deve crescer o número de deslocados à força ou pessoas apátridas que buscam outro lugar para viver em decorrência das "crises causadas pelo clima e/ou vivendo em regiões vulneráveis ao clima".
Conforme Laura, os deslocados internos por razões climáticas têm direitos básicos assegurados como quaisquer outros indivíduos, e é dever do poder público local garanti-los. No entanto, isso nem sempre se traduz na prática. Falta uma estratégia abrangente, que inclua investimentos em infraestrutura e habitação, melhorias em transporte, saúde e educação - bem como uma comunicação clara que evite discriminação e dificuldades de integração e inclusão social. O reconhecimento de qualificações profissionais e incentivos ao empreendedorismo seriam bem-vindos também. "A comunidade local deve ser sensibilizada a aceitar e integrar os novos moradores, e não ver neles uma ameaça a seu próprio acesso a direitos sociais", explica.
Laura também destaca que os migrantes podem contribuir para o desenvolvimento econômico e social da região, enriquecendo a cultura local e trazendo novas oportunidades. Então, o fenômeno pode ser um poderoso motor de desenvolvimento local - desde que bem planejado. Uma maior demanda beneficia comércio, serviços e habitação, gerando novos empregos e oportunidades de negócios. "Além disso, os migrantes frequentemente trazem consigo habilidades e perspectivas únicas, que podem fomentar a inovação e a criação de novos empreendimentos", aponta ela.
Como ilustração, a especialista recorda a migração climática de nordestinos, em virtude da seca, nas décadas de 1950, 1970 e 1980-90. A força de trabalho foi essencial para a industrialização do Sudeste, especialmente em São Paulo. "Para maximizar os benefícios da migração, a atuação do poder público é essencial", alerta. O tema de casa dos municípios de destino é transformar os desafios em oportunidades de desenvolvimento sustentável e prosperidade econômica.
Como a sensibilidade ao drama vivido pelos gaúchos está bem alta, se pressupõe que quem precise mudar de cidade ou mesmo de bairro possa ser bem recebido nos locais de realocação. Mas a especialista alerta: "Quando a ajuda da sociedade civil se tornar mais escassa e a questão dos atingidos deixar de estar em evidência na mídia, o que costuma acontecer com o tempo, o papel do Estado como agente de promoção e implementação de políticas públicas continuará sendo essencial para enfrentar a crise climática, não apenas a atual, mas as que virão". No Brasil, atuam ACNUR e Organização Internacional para Migrações (OIM). Segundo a professora, todos os órgãos internos de assistência à população em geral também atuam com migrantes e refugiados em parceria com as organizações internacionais.
*Loirane Luz é jornalista formada pela UFRGS, atua como freelancer desde 2007, depois de 12 anos de experiência em redação de jornal impresso.