A redução no nível pluviométrico dos rios no Rio Grande do Sul gerou uma crise que demanda uma resposta em duas frentes: a assistência emergencial e a reconstrução da infraestrutura. Abrigos, vestuário e alimentos são necessidades imediatas, enquanto a restauração das estradas, pontes e hospitais se torna essencial para a recuperação a médio e longo prazo.
Flávio Riberi, especialista da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), sugere que o modelo do Plano Marshall, utilizado após a Segunda Guerra Mundial, é o mais adequado para este momento. O plano foi citado pelo governador gaúcho, Eduardo Leite, como forma de enfrentamento à tragédia climática , enfatizando que a recuperação do Estado exigirá um esforço contínuo e a cooperação entre diferentes níveis de governo e a sociedade civil. Ele mencionou que a ajuda às vítimas deve ser sustentada, evitando que elas sejam desassistidas após o término imediato das ações emergenciais.
Para Riberi, a recuperação do Rio Grande do Sul precisa de um esforço coordenado entre Estado, União e municípios. "O Estado deve atuar como propulsor do desenvolvimento por meio de obras de infraestrutura, incluindo a recuperação de estradas, pontes, hospitais, iluminação pública e novos programas habitacionais. É uma oportunidade para redesenhar o planejamento urbano das cidades, prevenindo futuras tragédias e criando uma rede de saneamento adequada", explica o especialista.
Empresas & Negócios - De que forma a estratégia usada durante a Segunda Guerra Mundial mencionada pelo governador Eduardo Leite pode servir de modelo para a reconstrução do Rio Grande do Sul?
Flávio Riberi - Quase oito décadas separam estes acontecimentos, a saber que o primeiro resultava de uma guerra que se prolongou de forma contínua por 6 anos (1939 - 1945) envolvendo praticamente todas as nações do continente Europeu. O segundo, no Rio Grande do Sul, relacionado a eventos climáticos, teve uma curta duração de 9 dias, em uma dimensão territorial próxima ao tamanho da Bulgária. No primeiro caso o esforço de reconstrução perdurou por anos mediante o apoio financeiro dos EUA e o ponto chave da concepção do Plano Marshall foi a racionalização das nações ao utilizar recursos financeiros concedidos para a concretização de ações efetivas para sua reconstrução, exigindo um planejamento de longo prazo para a superação dos danos produzidos.
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E&N - Qual é a sua avaliação sobre a assistência de curto prazo?
Riberi - Um plano para reconstrução de uma região, Estado ou nação, exige, obrigatoriamente, uma visão de longo prazo. É imperativo que determinadas ações de curto prazo ocorram para satisfazer algo emergencial, porém, não podemos transformar o emergencial naquilo que será perene. O momento de emergência exige muito cuidado para dimensionar o que foram as perdas materiais de muitos dos núcleos familiares atingidos. Basta um exercício para responder a uma questão: considerando o mesmo nível de renda, quanto tempo seria necessário para uma família adquirir mobiliário, eletrodomésticos e utensílios, além da reforma ou reconstrução da casa em seu terreno? Isso sabendo que parte significativa da renda da população é destinada a compras de suprimentos e gêneros alimentícios. O pacote atual proposto pelo governo federal apenas atende a uma necessidade de curtíssimo prazo e já se sabe que haverá a necessidade de estímulos adicionais no futuro.
E&N - Quais são as necessidades principais do Rio Grande do Sul a partir da redução no nível pluviométrico dos rios?
Riberi - Com a redução no nível pluviométrico dos rios no Estado do Rio Grande do Sul, abre-se o espaço para um processo de dupla assistência ao Estado onde, de um lado há a necessidade de atendimento as necessidades mais urgentes e básicas por equipamentos em abrigos, vestuário e alimentos e outro para o início da reconstrução da infraestrutura. Mas o que deve priorizar o governo nesta reconstrução? Está clara a necessidade de reinstituição da integração estadual por estradas que possam garantir a comunicação e acesso a logística para a chegada de doações, bem como de estruturas de saúde com postos e unidades hospitalares para atendimento de uma série de enfermidades emergentes que atingiu a população que transitou em meio as águas poluídas. Ao se afastar o risco de novas chuvas tornando as cidades atingidas transitáveis será o momento de se determinar as perdas e avaliar o que pode ser recuperado.
E&N - O Plano Marshall é um bom modelo para a recuperação do Rio Grande do Sul?
Riberi - Em que pese ter sido concebido em circunstâncias diferentes, sob o interesse de uma nação em se posicionar como uma nova potência (EUA), o que pode inspirar é olhar como as nações definiram prioridades para a reconstrução. Vejamos os casos de países como Grécia e Holanda que foram atingidos pela 2º guerra. No primeiro caso a concepção das políticas públicas não desfrutaram da visão de longo prazo que aquelas estabelecidas pelo segundo. As consequências de escolhas discricionárias de seus governantes foram determinantes para evidenciar o que cada país se tornou 30 anos depois. Este é um ponto chave para determinar uma reconstrução: a tomada de decisões de alocações de recursos com políticas mirando 10, 20 ou 30 anos à frente, cuidando do social simultaneamente a preocupação com o recrudescimento da atividade econômica.
E&N - Quais ações específicas o Estado deve tomar para fomentar o desenvolvimento e a recuperação da infraestrutura?
Riberi - Neste ponto vale uma reflexão que precede a lógica econômica. Garantir a saúde, alimentação e condições de habitação é basilar, enquanto uma agenda avança de forma concomitante para trabalhar na retomada de serviços essenciais a população como saneamento, iluminação, abastecimento e educação. Os municípios possuem uma lição de casa árdua para o reinício com novos planos diretores e urbanísticos de cidades. É um momento de reflexão para se revisar o planejamento urbano, zonas residenciais e o próprio plano de desenvolvimento econômico regional.
E&N - Qual é o papel do Estado na recuperação do Rio Grande do Sul? De que forma os empresários e empreendedores estão inseridos neste contexto?
Riberi - Quando assistimos a catástrofes naturais em diferentes regiões do Brasil, o que assistimos é um retrato da movimentação ágil da população local e a sensibilização de populações que estão distantes que participam com o envio de doações. No caso do Rio Grande do Sul o que assistimos foi uma movimentação com maior velocidade da sociedade e empresas (muitas delas com negócios relevantes no Estado) para colocar suas estruturas a serviço das necessidades mais prementes. O poder público muitas vezes possui dificuldades por possuir estruturas complexas, ainda mais quando são envolvidas camadas de servidores de municípios, Estados e União, cada qual com ferramentas diferentes e unidades que podem não se comunicar com facilidade, devido a própria burocracia que ressoa no setor público.
E&N - Como o senhor compara a situação atual do Rio Grande do Sul com o contexto do Plano Marshall?
Riberi - O que há em comum são as consequências percebidas pela população vitimada pelos eventos que ao observar a paisagem o que se vê são estruturas interditadas e destruídas. O Plano Marshall foi uma iniciativa orquestrada pelos Estados Unidos na etapa final da 2º guerra mundial e que apoiou as nações europeias atingidas pela guerra na reconstrução de sua infra-estrutura de estradas, portos, aeroportos, desenvolvimento industrial e serviços públicos. Neste sentido existem similaridades em apontar os setores e iniciativas que demandam recursos para retomar um Estado de bem-estar social e a própria necessidade de um planejamento que seja sustentável e sobreviva a mudanças em governos.
E&N - Quais aspectos técnicos e financeiros são essenciais para a recuperação do Rio Grande do Sul?
Riberi - Grandes catástrofes demandam a coordenação de recursos e fontes de abastecimento que vai de medicamentos, equipamentos hospitalares a itens como ração animal. O diagnóstico de uma crise desta natureza não possui acuracidade no presente momento e mesmo os agentes do setor público no nível Estadual passam a depender da expertise de órgãos do governo federal que podem apoiar neste momento emergencial com é o caso das forças armadas. Por outro lado, certas pastas estarão sobrecarregadas em um trabalho de planejamento para a implementação de ações e outras podem ceder recursos para o trabalho emergencial. É o cenário de uma gestão de crise em que os atores políticos e servidores públicos assumem mais atividades e demandam o apoio de empresas do setor privado com construção civil, serviços e consultorias. O desafio a frente envolve a disponibilidade de recursos, fontes de financiamento, deixando uma difícil tarefa de equacionar a dívida pública em um momento posterior a estes eventos.
E&N - Por que é importante que a ajuda financeira não se limite ao período em que o problema está em evidência?
Riberi - O pacote de ajuda financeira anunciado pelo governo federal é de longe insuficiente para suprir a necessidade de cada núcleo familiar que perdeu sua residência. Por outro lado, programas de ajuda financeira precisam de sustentar no longo prazo pois muitas famílias não só tiveram perdas materiais, mas também muitas empresas e estabelecimentos do comércio nas cidades atingidas sofreram com a interrupção de suas atividades. É neste momento em que o governo pode ser um indutor para apoiar empresas e famílias com programas com uma visão mais assistencial e social. Para as empresas não é uma questão de conceder crédito para pagamento em um futuro, e sim oferecer ajuda para que a empresa volte a alcançar o nível de atividade anterior as enchentes.
E&N - Que tipo de planejamento urbano o senhor sugere para prevenir futuras tragédias no Rio Grande do Sul?
Riberi - Temos poucos exemplos de cidades planejadas no Brasil, a exemplo de nossa capital federal que levou 4 para ser construída, mas que seu projeto data de uma concepção nascida um século antes. Em nossa história, cidades surgiram, na maioria das vezes, pensando em um aproveitamento da geografia e relevo que favorecesse sua segurança e acesso logístico. Não só no Rio Grande do Sul, temos cidades pelo Brasil que foram construídas em encostas, regiões serranas, vales e que estão em zonas com riscos muitas vezes conhecidos pela população e seus governantes (Vide o caso de Petrópolis no Estado do Rio de Janeiro e São Luiz do Paraitinga, encravada na serra do mar no Estado de São Paulo, ambas com registros de catástrofes na história recente). Erigir ou expandir os limites do perímetro urbano e constituir um novo plano diretor de um município exigirá pulso firme de prefeitos e gestores públicos para fiscalizar construções irregulares e ao mesmo tempo desenvolver soluções em um novo mapa municipal com o redesenho de uma cidade que leve em conta a proteção dos riscos de eventos climáticos extremos.