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Publicada em 09 de Junho de 2024 às 16:00

Enchentes expõem urgência de incremento de mão de obra no campo

Cenários como o que o Rio Grande do Sul atravessa precisam do uso de soluções de ponta para mitigar prejuízos

Cenários como o que o Rio Grande do Sul atravessa precisam do uso de soluções de ponta para mitigar prejuízos

/Case IH/divulgação/jc
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Ana Esteves, especial para o JC*
Ana Esteves, especial para o JC*
As enchentes que devastaram centenas de municípios gaúchos e provocaram estragos sem precedentes em lavouras, além de dizimarem milhares de animais, expuseram a necessidade enorme que o setor primário tem de aplicar tecnologias de ponta, especialmente em situações de calamidade em que os processos precisam ter celeridade. Mas, apesar de toda sorte de ferramentas disponíveis, falta mão de obra especializada para operar os recursos, sejam eles para prever catástrofes ou para promover a recuperação das áreas afetadas, depois que elas ocorrem.

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A tragédia climática que atingiu 471 municípios do Rio Grande do Sul, nos meses de abril e maio, ceifou centenas de vidas, desabrigou milhares de pessoas e deixou um cenário de destruição e terra arrasada em muitos lugares. No campo, houve perdas nas lavouras e na criação pecuária de diferentes espécies, destruindo plantações inteiras e matando milhares de animais. Conforme dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), os prejuízos no meio rural somam mais de R$ 3,4 bilhões, dos quais mais de R$ 3,1 bilhões se referem à agricultura e R$ 272,4 milhões à pecuária. Dados da Emater, coletados entre 30 de abril e 24 de maio, apontam ainda que foram mais de 206 mil propriedades rurais afetadas, com perdas na produção e na infraestrutura, e 34,5 mil famílias ficaram sem acesso à água potável.
Diante desse cenário, serão urgentes medidas que incrementem o uso de tecnologias de ponta a campo que deem celeridade ao processo de recuperação, especialmente para as lavouras já que o atraso na colheita da soja prejudicará a implantação das culturas de inverno, especialmente do trigo. No entanto, o uso de ferramentas da chamada agricultura 5.0 esbarra em um problema histórico: a falta de mão de obra qualificada para operar tais recursos, sejam eles referentes ao uso de tratores e colheitadeiras automatizados, passando por aplicativos e softwares de gestão e previsão do tempo, ou ferramentas que incluem Big Data, Internet das Coisas e Inteligência Artificial.
O diretor do Núcleo de Engenharia Organizacional (NEO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEO/Ufrgs), professor Alejandro Frank afirma que a tragédia traz muitos aprendizados sobre a importância do uso de recursos de informação digital para acelerar a tomada de decisões frente situações de risco, especialmente num cenário em que a tendência é de que ocorram com mais frequência.

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"É extremamente importante que a gente utilize informações em tempo real de acompanhamento dos fenômenos climáticos, com a disseminação rápida de informações, como no caso de uso aplicativos e principalmente com ferramentas de Inteligência Artificial para previsão futura", afirma Frank. Por outro lado, mão de obra está numa situação bem crítica, pois precisa ser muito especializada, o que demanda uma qualificação com muito conteúdo digital e tecnológico que muitos cursos formadores de trabalhadores do agro não possuem. "Vamos precisar realmente reforçar esses cursos, orientados para efeitos climáticos, que tenham mais formação de agricultura, mas que olhem também para efeitos climáticos e uso de tecnologias para a mitigação e para tomada de decisão e planejamento frente às catástrofes", acrescenta Frank.
O professor coordenou uma pesquisa realizada pelo NEO/Ufrgs, em parceria com a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) prospectou que, entre 2021 e 2023, as oito novas carreiras ligadas ao agronegócio gerariam cerca de 178,8 mil oportunidades de trabalho, com apenas 32,5 mil profissionais qualificados para preenchê-las, ou seja, uma defasagem de 82%. "E essa tendência vem se confirmando até hoje, com base nas informações qualitativas do que a gente ouve no mercado. O gap de falta de profissionais só aumenta, com instituições que nem eram voltadas para o agro, como o Senai que vem olhando muito mais para o setor para a parte de tecnologia industrial, fazendo vários investimentos, justamente por essa necessidade de maior qualificação", afirma, responsável pelo estudo.
O trabalho intitulado Profissões Emergentes na Era Digital aponta que as novas profissões que estão ganhando destaque na agricultura são: técnico em agricultura digital, técnico em agronegócio digital, engenheiro agrônomo digital, operador de drones, agricultor urbano, engenheiro de automação agrícola, cientista de dados agrícola e designer de máquinas agrícolas.
Dessas, três têm demanda altíssima, pois já possuem base existente, como técnico em agricultura digital, técnico em agronegócio digital e engenheiro agrônomo digital. "São profissões com uma base de brownfield, ou seja, são atividades já existentes que passam por um processo de remodelagem para se tornarem digitais", diz Frank. A pesquisa demonstrou ainda que existe um grande distanciamento entre a formação acadêmica e a necessidade no campo de forma geral, devido à grande velocidade de evolução das tecnologias digitais. "Um entrevistado afirmou que antes quem não desejava estudar ficava trabalhando no campo, hoje isto se inverteu: somente quem estuda, consegue ficar", completa o pesquisador.
Segundo o superintendente do Serviço Nacional de Aprendizado Rural (Senar/RS), Eduardo Condorelli, a boa notícia é que, além da enorme oferta de vagas, os salários também costumam ser altos, em alguns casos ultrapassando os R$ 10 mil.
"Um funcionário qualificado, que fez alguma formação técnica não ganha menos do que R$ 2,5 mil por mês. Se for para operar máquinas com alta tecnologia embarcada, o que não é muito diferente do que operar um celular, pode oscilar entre R$ 5 mil e R$ 6 mil. Se tiver nível superior pode ultrapassar os R$10 mil", destaca o superintendente do Senar.

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O empreendedor Endeavor, especialista em startups do agronegócio (Agtechs), Maurício Schneider, polemiza e diz que o problema não é apenas a falta de mão de obra, mas a necessidade de o produtor gaúcho olhar o mundo de uma maneira diferente.
"O agricultor gaúcho vai ficar bravo, mas ele está muito atrás do resto do País. Na prática tem gente produzindo de uma forma muito mais eficiente em outros lugares do Brasil, com melhor relação entre produtividade e custo. Não é quem produz mais e gasta um monte de dinheiro. O que vai fazer o agricultor continuar operando e vai resolver o problema do mundo é produzir com mais eficiência", afirma o especialista. 

Jovens agricultores têm papel crucial no uso de tecnologia em momento de recuperação

IoT, sigla em inglês para Internet das Coisas, é cada vez mais utilizada em campo para agricultura de precisão

IoT, sigla em inglês para Internet das Coisas, é cada vez mais utilizada em campo para agricultura de precisão

/AGCO/DIVULGAÇÃO/JC
O público jovem costuma ser o salvador da lavoura, literalmente, quando o assunto é uso de tecnologia no agro. Num cenário adverso como o que o Estado atravessa hoje, a presença da nova geração funciona como facilitadora do uso das ferramentas que, segundo especialistas, serão indispensáveis para esse momento de reconstrução. "Além do impasse da qualificação profissional, o impacto da chegada de novas tecnologias no campo envolve questões sociais profundas, inclusive de manutenção das novas gerações nas propriedades, especialmente agricultores familiares", afirma o diretor do Núcleo de Engenharia Organizacional (NEO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEO/Ufrgs), professor Alejandro Frank.
Segundo ele, agricultores com idade acima de 50 anos encontram muita dificuldade em acessar o mundo digital e precisam de pessoas próximas a eles para ajudar na digitalização. Assim, jovens ligados a estes, normalmente seus filhos, precisam ser treinados em ferramentas de informática e de marketing digital para aproveitarem as oportunidades para os negócios da família e, na situação atual, ajudarem a recompor o que foi perdido nas enchentes.
O uso de tecnologias de última geração nas propriedades rurais esbarra em questões culturais e resistência a mudanças. Alguns agricultores resistem à adoção de novas tecnologias, especialmente entre aqueles mais tradicionais. A falta de familiaridade ou confiança na tecnologia, juntamente com uma preferência por métodos de trabalho mais convencionais, pode dificultar a aceitação e a utilização das inovações tecnológicas disponíveis. Mas isso vem mudando aos poucos, com as novas gerações assumindo a gestão das propriedades. "Cada vez mais percebe-se que a tecnologia não é um complicador, e sim um facilitador na agricultura, reduzindo custos operacionais, agilizando processos e aumentando a produtividade, afirma o gerente de marketing tático da New Holland, Cristiano Conti.
Entre os recursos que poderão dar maior rapidez no processo de recuperação e prevenção de catástrofes estão a utilização de inteligência artificial para modelos mais completos de previsão climática, que façam avaliação de riscos de catástrofes e que considerem um conjunto maior de variáveis, para poder trabalhar grande quantidade de dados que permitam antever situações de tragédia, também mudar cenários e ajudar na tomada de decisão. "Além disso, ferramentas de mapeamento como drones de precisão para fazer estimativas de extensão e Estado das lavouras, avaliação de condições do terreno após a enchente, identificando os locais onde há maior necessidade de recuperação", disse Frank.
Todas essas ferramentas podem ser utilizadas em conjunto: entram os drones para acessar os espaços, a visão computacional para detectar por exemplo zonas áreas mais afetadas e a ferramenta de inteligência artificial para processar e para interpretar essas imagens. E, a partir daí, poder agir e trabalhar na recuperação de terrenos. "São dois grandes pontos: um voltado para prevenção para antever situações de catástrofe climática e outro com foco em recuperação", acrescenta o pesquisador.
Além delas, outros recursos que estão desembarcando porteira a dentro e deixando muitos produtores de cabelos em pé, são a chamada internet das coisas (IoT, na sigla em inglês) na agricultura: sensores e dispositivos IoT estão sendo cada vez mais integrados às máquinas agrícolas para monitorar e otimizar variáveis como umidade do solo, temperatura, níveis de nutrientes e saúde das plantas, permitindo uma gestão mais precisa e eficiente das culturas.
Os algoritmos de IA e as técnicas de aprendizado de máquina (machine learning) são outras ferramentas que estão sendo aplicadas em diversas áreas da agricultura, desde a previsão de safras e análise de dados climáticos até o desenvolvimento de sistemas de tomada de decisão para otimização do manejo agrícola.
O uso de tecnologias como GPS, sistemas de mapeamento e drones também tem revolucionado a forma como os agricultores gerenciam suas operações, permitindo a aplicação precisa de insumos agrícolas, como fertilizantes e pesticidas, de acordo com as necessidades específicas de cada área do campo. Outro ponto importante é a chegada de tratores e colheitadeiras autônomos, que aumentam a eficiência e reduzem os custos operacionais nas atividades agrícolas, enquanto a conectividade das máquinas permite a coordenação e comunicação em tempo real durante o trabalho de campo.

Tecnologia embarcada em máquinas agrícolas será crucial para recuperação de lavouras

Conti diz que os manejos mecanizados são essenciais para dar velocidade na recuperação de áreas degradadas

Conti diz que os manejos mecanizados são essenciais para dar velocidade na recuperação de áreas degradadas

/New Holland/divulgação/JC
A alta tecnologia embarcada em tratores e colheitadeiras será uma grande aliada dos produtores rurais para reverter o cenário de devastação que toma conta do Estado. A recuperação de áreas agrícolas afetadas por enxurradas é um processo complexo que requer a combinação de diversas práticas agrícolas e o uso de máquinas especializadas.
"As inovações tecnológicas no setor de máquinas agrícolas proporcionam ferramentas eficazes para enfrentar os desafios impostos por esses eventos naturais, permitindo aos agricultores restaurar a produtividade de suas terras de maneira eficiente e sustentável, além de mitigar os danos causados pelas enxurradas", afirma o gerente de marketing tático da New Holland, Cristiano Conti.
Segundo ele, é preciso entender que as enchentes podem causar grandes danos às áreas de cultivo agrícola, resultando na perda de solo fértil e sua compactação, erosão e destruição das plantações, gerando impactos significativos para os agricultores. Em relação à compactação, as áreas que passam por esse processo se tornam menos propícias ao cultivo, logo máquinas como arados e subsoladores são fundamentais nesse processo inicial de recuperação.
"O arado ajuda a reverter a compactação, aumentando a aeração e a permeabilidade do solo, enquanto o subsolador penetra mais profundamente, rompendo camadas compactadas e melhorando a drenagem. Essas ações facilitam o restabelecimento de um ambiente adequado para o crescimento das plantas", explica Conti.
Além dos manejos iniciais de preparo e recuperação física do solo, o restabelecimento da fauna e flora microbiana são fundamentais para a sustentabilidade e recuperação das produtividades. Por isso a utilização de técnicas de plantio direto, bem como a utilização de seus pilares de sustentação, como, por exemplo, a rotação de culturas e utilização de plantas de adubação verde podem garantir o retorno dos índices de matéria orgânica, estruturas físicas adequadas e estabilidade de produtividade. "Os manejos mecanizados neste momento são primordiais para dar velocidade adequada na recuperação de áreas degradas, evitando perdas ainda maiores de solo, e o retorno das atividades de cultivo", diz o especialista da New Holland.
A erosão do solo é outro problema causado pelas enxurradas e, nesse cenário, máquinas como plantadeiras e semeadoras equipadas com tecnologias de plantio direto podem ser utilizadas para plantar culturas de cobertura, que ajudam a estabilizar o solo e prevenir a erosão.
Além disso, a implementação de técnicas de terraceamento com o uso de motoniveladoras e tratores ajuda a controlar o escoamento da água, diminuindo a velocidade da água da chuva e permitindo a infiltração no solo. Máquinas agrícolas modernas, como semeadoras de precisão e plantadeiras, permitem um replantio eficiente e rápido das áreas afetadas.
Esses equipamentos garantem distribuição uniforme das sementes e um plantio na profundidade adequada, otimizando o uso dos insumos e promovendo um melhor estabelecimento das plantas. Com isso, é possível acelerar a recuperação da área agrícola e retomar a produção de forma mais rápida.
As enxurradas podem danificar também os sistemas de irrigação e drenagem essenciais para a manutenção das culturas. Máquinas especializadas, como escavadeiras e retroescavadeiras, são utilizadas para reparar e reconstruir essas estruturas. A recuperação eficiente dos sistemas de irrigação e drenagem é crucial para garantir que as áreas afetadas voltem a ter um suprimento adequado de água e um escoamento eficiente, prevenindo futuros problemas de alagamento.
"Após a recuperação inicial do solo e o replantio, é essencial garantir que as plantas recebam os nutrientes necessários para um crescimento saudável. Pulverizadores e distribuidores de fertilizantes são utilizados para aplicar insumos de forma precisa, garantindo que as plantas recebam a quantidade adequada de nutrientes. A tecnologia de aplicação de precisão permite otimizar o uso dos insumos, reduzindo custos e impactos ambientais", diz Conti.
Para o diretor de Marketing e Comunicação da Case IH para a América Latina, Eduardo Penha, o momento agora é de redução de custos operacionais para que o produtor rural que sofreu com as enchentes possa reconstruir seu negócio. "Nesse cenário, as máquinas da Case IH possuem tecnologias e funcionalidades que irão auxiliar a reduzir os custos em todas as etapas do ciclo produtivo".

 

Penha acredita que o momento exige redução de custos operacionais para produtores reconstruírem seus negócios
Case IH/divulgação/jc

Cenários como o que o Rio Grande do Sul atravessa precisam do uso de soluções de ponta para mitigar prejuízos
Segundo ele, nesse momento serão importantes fatores que auxiliam na economia de combustível com o uso de máquinas com motores de última geração e com transmissões altamente eficientes, além da tecnologia de piloto automático disponível em máquinas de menor porte que ajuda a planejar melhor a operação, evitando desperdício. "A conectividade é também um fator essencial, já que o monitoramento remoto e a telemetria são ferramentas que permitem acompanhar constantemente as máquinas e as condições das plantações. Plataformas de gestão agrícola centralizam os dados coletados, proporcionando uma visão abrangente da operação e facilitando a tomada de decisões estratégicas", acrescenta. Além disso, no plantio, há tecnologia disponível para o controle a cada linha, evitando o repasse de plantio em áreas já plantadas e economizando sementes e fertilizantes. "Já na etapa de pulverização, temos também disponível aplicação localizada, que ajuda a reduzir os custos de combate a pragas e doenças", informa Conti.
O executivo da Case destaca ainda que, no momento da colheita, as máquinas possuem um sistema de manuseio dos grãos que evita perdas e danos mecânicos aos grãos colhidos, garantindo o maior ganho possível em uma área colhida, na medida que evita perdas e os grãos alcançam valores de venda sem nenhum desconto por perda de qualidade.

Sobram vagas e gente desempregada, pois mão de obra é precária

Frank, pesquisador do Núcleo de Estudos Organizacionais da Ufrgs, destaca adoção de Inteligência Artificial

Frank, pesquisador do Núcleo de Estudos Organizacionais da Ufrgs, destaca adoção de Inteligência Artificial

/NEO UFRGS/Divulgação/JC
Diretor do Núcleo de Engenharia Organizacional (NEO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEO/Ufrgs), Alejandro Frank, fala sobre o cenário atual do agronegócio gaúcho com excesso de oferta de mão de obra frente à escassez de mão de obra qualificada.
Empresas & Negócios - Qual o principal impasse no campo, frente ao aumento exponencial de ferramentas tecnológicas?
Alejandro Frank - O grande ponto crítico para o agro é a mão de obra pouco qualificada. É aquele operador que auxiliava na lavoura, estava só conduzindo um trator e de repente passa a ter que operar um trator autônomo e esse trabalhador não tem nem ensino fundamental, formação mínima para poder entrar nesse mundo digital. Porque mundo digital demanda entendimento dos dados, das informações nas interfaces. E aí nós temos um grande paradoxo: por um lado temos desemprego crescendo lado da cadeia que é a mão de obra pouco qualificada e por outro lado uma grande demanda carente de mão de obra mais técnica. Existe uma transição dentro do campo, ela vai demandar qualificação maior em vários níveis e para vários tipos de atividades no campo.
E&N - Quais são as saídas para quem precisa aprender a usar tecnologia para não acabar abandonando a produção?
Frank - Outro dia fiz uma pergunta para um vendedor que estava me mostrando uma plantadeira com sistema autônomo, sincronizada com drone e tudo mais eu perguntei para ele quem é que opera isso? Ele me disse: Meu pai não consegue mais fazer isso, mesmo sendo qualificada sabe operar tratores, colheitadeiras, mas entra em outro patamar tecnológico. Na maior parte das vezes, as empresas são forçadas a trazer a tecnologia para o campo e a própria qualificação de quem está nessa transição. Essa é uma saída quando a demanda de qualificação é muito maior do que a capacidade que o País tem de responder no sistema educacional. Os produtores têm que escolher canais alternativos para aprender: desde a própria empresa que oferece a tecnologia, até as instituições como Embrapa, Senar, Senai, até escolas rurais.
E&N - O problema está em operar tecnologias de ponta ou começa com coisas mais básicas, como softwares de gestão?
Frank - Se fala muito em Inteligência Artificial, drones, mas uma coisa que percebemos na agricultura familiar é que às vezes o pequeno produtor tem carência na operação da tecnologia, mas também nas coisas mais simples que tem a ver com a própria comercialização dos produtos: canais digitais para venda, para procura de preços. Não se trata somente pensar na transformação digital, mas como trazer para pequenos produtores o contato com as vias digitais, num momento em que se tem um pouco mais de acesso à internet, dentro do ambiente rural. Existe muita demanda imediata para atender o campo em alguns tipos de tecnologias, como no caso de drones, tudo que é agricultura de precisão, quem envolve desde sensoriamento, operação de equipamentos autônomos, escaneamentos são áreas de grande demanda e que faltam profissionais. O interessante é que a qualificação nessas áreas é prática e não muito demorada, então pode oferecer oportunidade rápida para operadores.
E&N - Qual o papel dos jovens nesse contexto? A tecnologia pode funcionar também como forma de mantê-los no campo?
Frank - As famílias mais antigas não tinham contato com a transformação digital, mas os filhos deles, as novas gerações sim. Os que optam por não ir para a cidade, mas ficam no campo e ali tem interesse e contato com as novas tecnologias. Aí a gente viu uma oportunidade qualificação de jovens com que ficaram e que podem trazer mais valor agregado para essas famílias. E não são somente tecnologias para a produtividade, mas que viabilizam o modelo de vida no campo, quando o campo deixa de ser tão atrativo como modelo de vida, numa sociedade cada vez mais urbana. Ter tecnologia no campo ajuda a manter os jovens nas propriedades, sem dúvida.
E&N - Como os jovens e os mais velhos se relacionam com as novas tecnologias?
Frank - A gente divide os grupos de duas formas: os greenfields e os brownfields. Os primeiros são as pessoas jovens, que já estão chegando ao mundo digitalizados, só que eles muitas vezes conhecem muito de tecnologia, mas pouco da experiência da operação. Ou seja é uma jovem que vem de uma família rural, mas ele não enfrentou o dia a dia do campo. E os brownfields são os mais antigos que têm muito da vida do campo, mas tem um pouco da vida digital. São os que já estão no ambiente de trabalho e que tem mais resistência à tecnologia, porque ela gera naturalmente o que nós chamamos de um tecno stress, gera ansiedade porque a pessoa tem que lidar com algo novo e desconhecido, mas que não necessariamente é complexo, pois muitas tecnologias, justamente com auxílio de inteligência artificial que vem para simplificar muitas operações. Toda instituição que busca ajudar na difusão de tecnologia precisa desmistificar as tecnologias digitais. Para os jovens o desafio é outro: tornar o campo atrativo e fazer com que eles permaneçam. São dois mundos diferentes e as instituições que se preocupam com capacitação têm que pensar que são duas mentalidades muito diferentes.
E&N - É possível sobreviver na atividade rural sem aderir às novas tecnologias?
Frank - Acredito que não exista um meio termo. De alguma maneira a tecnologia vai ter que chegar nos produtores, por mais resistentes que eles sejam. Uma questão muito simples é a compra de matéria-prima: hoje, pouco se cogita comprar matéria-prima diretamente numa loja, pois não necessariamente vai ser o melhor preço. Outros produtores que vão estar competindo vão usar ferramentas digitais e vão conseguir reduzir a assimetria de informação, ou seja, vão poder tomar melhor decisão e serem mais competitivos. Poder consultar na internet e ver opção de preços tem impacto muito grande numa situação muito simples da vida do produtor. Tomando como base a parte mais simples da transformação digital, percebemos que se torna muito difícil para o produtor que simplesmente fecha os olhos para esse novo mundo e a tendência é de que a economia desse produtor ficará, cada vez mais, restrita a seu próprio consumo. Temos um desequilíbrio que é comum acontecer em qualquer momento de transição, com já ocorreu, por exemplo, na Revolução Industrial. Na Revolução Digital acabamos tendo essa transição com desequilíbrios no mercado, não acho que seja apocalíptico, mas vai demandar e vai trazer sofrimento, no sentido de adaptação para essas novas realidades.
E&N - Quais as tecnologias que estão em alta nesse momento no meio rural?
Frank - Sobre as novíssimas tecnologias, estão em alta as ferramentas de Inteligência Artificial. O produtor rural que vai ter que tomar alguma decisão sobre plantação já conta com um aplicativo com uma ferramenta de Inteligência Artificial dando as instruções sobre como, quando e porque tem que fazer cada uma das etapas do plantio. Isso é um grande avanço porque às vezes o conhecimento empírico da experiência do Produtor tem imenso valor, mas ele também tem limitações e essas ferramentas conseguem trazer um conhecimento mais científico para o dia a dia rural. Porém, elas ainda não estão suficientemente exploradas no campo, ainda não tiveram toda difusão não entraram com tanta força ainda.
E&N - Qual o segredo para fazer o produtor rural se interessar pelas novas tecnologias?
Frank - A gente usa um conceito de sense maker, ou seja, até a tecnologia não fazer sentido na cabeça da pessoa ela pode ser usada, mas normalmente isso vai ocorrer de forma transitória, a qualquer momento vai ter uma interferência entre o que a pessoa pensa e a tecnologia e a pessoa vai acabar indo para o seu próprio instinto. Só no momento que a tecnologia começa a se fazer sentido e a pessoa começa a entender que ela pode acrescentar coisas que eu de fato, não sei é que a pessoa começa a delegar mais a sua confiança na tecnologia. E aí entra uma parte importantíssima dos educadores no campo fazer entender como a tecnologia pode ser uma aliada do produtor rural e como ela pode ajudar a prever riscos climáticos ou de outra natureza um momento que o produtor rural vai tomar decisões, entender variação de preços. Só no momento que o produtor rural entender que isso pode ser um aliado à experiência dele é que de fato a tecnologia vai ser incorporada na rotina.

Uso de tecnologia garantiu preservação dos solos em São Gabriel

Elevação do nível das águas fez com que cidades inteiras, com suas áreas urbanas e rurais, ficassem submersas por semanas, causando muita destruição

Elevação do nível das águas fez com que cidades inteiras, com suas áreas urbanas e rurais, ficassem submersas por semanas, causando muita destruição

/Gustavo Ghisleni/AFP/JC
O investimento em tecnologia, a partir da implantação de técnicas de plantio direto e manejo biológico do solo garantiu que boa parte das lavouras da Estância Cerro d'Ouro, da Eça Agropecuária Familiar, de São Gabriel, se mantivessem viáveis, mesmo diante da enxurrada que prejudicou o setor primário do município.
Segundo o diretor técnico operacional da Eça Agropecuária Familiar, Murilo Teixeira Gonçalves, as perdas foram mínimas em relação à região que, no geral, foi severamente impactada. "Com o uso de tecnologia, conseguimos aumentar a taxa de infiltração de água nas lavouras, o que possibilitou menos perda de solo, de fertilizantes e de material orgânico. Isso nos leva a refletir sobre a importância de fazer um plantio direto bem feito", explicou.
Com a manutenção do sistema de raízes das plantas, foi possível preservar a parte orgânica do solo, a mais rica. Daí a importância de sempre ter alguma planta ocupando a lavoura. "Isso também faz com que a gota da chuva não incida direto no solo e quebre essa energia na massa da folha da planta que esteja cobrindo a área. Então, manter o solo coberto pelo máximo de tempo proporciona uma taxa de infiltração melhor e menos perdas por erosão".
O uso de manejo biológico dos solos também foi determinante para manutenção do mesmo, pois trabalha com uma grande diversidade de informação em termos de DNA para o sistema, que se torna mais "resiliente". "Uma planta que é acostumada com determinado defensivo acaba diminuindo a diversidade de DNA, pois seleciona poucos grupos. Com o manejo biológico, trazemos mais informação para o sistema, tornando a planta mais rústica e mais resistente", diz Gonçalves.
O uso de novas tecnologias está no sangue da família Gonçalves, que há cinco gerações administra a Estância Cerro d'Ouro. Desde os primórdios do século passado, já eram utilizadas modernidades para a época, como energia eólica, água encanada e luz elétrica. "Meu bisavô comprou as terras há mais de cem anos e sempre foi um pioneiro, trabalhando essencialmente com pecuária. É uma tradição da nossa família ter novas tecnologias e introduzir sustentabilidade no sistema", afirma Gonçalves.
O produtor conta que a geração dos pais dele introduziu a cultura da soja sob o sistema plantio direto. "Ideia que eu considero a mais disruptiva que já existiu no agronegócio, que consiste em manter o solo coberto e fazer rotação de cultura para aumentar a vida do solo, explica. O agricultor relata que já pegou esse sistema funcionando, focado em soja e pastagens perenes, mas com pouca disponibilidade de milho.
Resolveu, então, estudar a parte física do solo, a capacidade de armazenamento de água no solo, água disponível e água útil para saber como isso funcionava. "Depois, eu fui para o final do tripé, que é a parte biológica, e hoje estamos trabalhando em um sistema regenerativo, no qual temos agricultura e pecuária dentro de um sistema de produção não baseado mais em uma atividade, mas sim no sistema de produção analisando o solo como a base de todo esse processo já que a gente sabe que a maior diversidade de informação está nele e trabalhando com policultivos e insumos biológicos".
Gonçalves conta que, para o desenvolvimento do trabalho na propriedade, usa diversos softwares e agricultura de precisão desde 2008, além de drones e plataforma de monitoramento como o Climate FoodView. "Temos monitores de coleta, que permite saber o que e onde estamos produzindo, tentamos trabalhar com o que tem de última tecnologia".
Sobre a dificuldade de formação de mão de obra para operar essas tecnologias, o administrador diz que todo produtor que está na vanguarda sente a dificuldade de reeducar o pessoal. "Temos empresas parceiras que nos ajudaram nessa missão de formação e sempre demos cursos para nossos colaboradores para que eles fossem introduzidos na tecnologia".
 

*Ana Esteves é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou como repórter setorista de agronegócios no Jornal do Comércio, Correio do Povo e Revista A Granja. Hoje, atua como assessora de imprensa e repórter freelancer. Também é graduada em Medicina Veterinária pela UFRGS.

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