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Publicada em 17 de Maio de 2024 às 17:41

Triste e cruel precedente

Mariana Oselame é CEO da CORE Comunicação & Relacionamento

Mariana Oselame é CEO da CORE Comunicação & Relacionamento

TÂNIA MEINERZ/divulgação/JC
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Mariana Oselame
Mariana Oselame
CEO da CORE Comunicação & Relacionamento
Na falta de palavras para definir o indefinível, recorro ao lugar comum "sem precedentes", expressão que se refere a algo único, inédito, inaudito. Sem precedentes é aquilo que não se tem memória, que nunca se ouviu falar, que se desconhece e que, portanto, não se tem alcance ou dimensão da extensão. São aquelas situações que costumam nos paralisar porque não encontram, em nosso repertório de experiências vividas, um modus operandi de ação. São eventos em que nosso racional busca um ponto de contato com alguma informação preexistente em nosso cérebro e, como não encontra, parece entrar em um modo de suspensão para dar lugar aos nossos instintos e emoções.
É o que temos visto, nos últimos dias, em todo o Rio Grande do Sul. Atônitos, perplexos e desolados, estamos vivendo, neste momento, o lado mais sombrio deste momento histórico que inaugura um triste e cruel precedente em nossas vidas. Haverá um dia em que se falará, com certo ar de curiosidade, que jacarés nadavam em meio aos canais do bairro Menino Deus na grande enchente de 2024 - da mesma forma que, há poucos dias, nos referíamos à inundação de 1941 como um distante desastre que colocou a área central de Porto Alegre debaixo d'água.
Hoje, no entanto, os relatos são de dor, desespero e muita, muita tristeza. É bem verdade que também são de acolhimento, empatia, amor e solidariedade, o que conforta e ajuda a amenizar o que estamos vivendo, mas não muda o tamanho da catástrofe que nos atinge.
Este triste e cruel precedente deixará inúmeras marcas quando a água baixar. São as tais "lições aprendidas", termo usual no contexto da gestão de crises dessa magnitude. Há inúmeros exemplos recentes, entre eles a própria pandemia de Covid-19, da qual recém saímos, que trouxe impactos ainda não mapeados em sua totalidade e, talvez, sequer percebidos. Quando um precedente novo é inaugurado, manuais e cartilhas precisam ser refeitos de modo a incluir, no horizonte, uma nova possibilidade de situação que, até então, não havia sido imaginada por ninguém. Afinal, só é possível prever cenários de ação diante daquilo que consideramos possível de acontecer - este é, justamente, o drama que vivemos agora.
Sabíamos da força da natureza e da intensidade das chuvas, recebemos o alerta das autoridades e temos amplo conhecimento científico disponível sobre eventos climáticos extremos. Mas, assim como ninguém considerava factível a possibilidade de uma pandemia global como a que vivemos, ninguém jamais imaginou tamanha devastação do Rio Grande do Sul tal qual está ocorrendo diante dos nossos olhos.
O som dos helicópteros sobrevoando nossas cabeças a todo momento; os gritos desesperados de socorro em meio às águas; a dor de famílias separadas e desfeitas; as imagens emocionantes dos resgates como o cordão humano de voluntários que puxou barcos até a margem da rua que virou rio; e a tristeza, a imensa tristeza e sensação de impotência que tomaram conta de todos nós: nem nos nossos piores pesadelos este cenário foi imaginado.
Temos que conviver, a partir de agora, com um triste e cruel precedente que não vem de nenhum filme de ficção científica, mesmo que suas cenas pareçam ter sido tiradas de lá. Vem da vida real e está na nossa rua, na nossa família, entre nossos amigos. Quando a água baixar e a vida continuar em aparente normalidade, ele ainda estará lá. E, então, o que faremos? Ao final desta tristeza sem fim, quando os resgates tiverem cessado, quando os mortos forem contados e quando os prejuízos tiverem sido calculados, será que teremos aprendido alguma lição?

A situação dramática do povo gaúcho e o papel do Estado na gestão da dívida pública do RS

Rosa Angela Chieza* e Cristiano Castro Forlin**

*Professora de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Ufrgs
**Mestrando em Economia na UFRGS e auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do RS (TCE).

As funções do Estado sofreram mudanças estruturais ao longo do tempo. Desde o Estado absolutista até o Estado neoliberal, estas mudanças dependeram de características próprias da sociedade em seus respectivos tempos históricos.
Por exemplo, a crise de 1930 e os conflitos mundiais, resultaram no Estado de bem-estar social. No entanto, a partir dos anos 1970 e 1990, difundiu-se a concepção de Estado neoliberal de que vivemos numa sociedade de indivíduos onde cada um cuida de si, tendo o Estado como objeto central, a responsabilidade fiscal. Negligenciou, assim, neste período, as responsabilidades social e ambiental.
A tragédia que estamos vivendo no Estado do Rio Grande do Sul, com centenas de vidas ceifadas, prejuízo econômico que deve atingir a cifra de trilhões de reais, exige que passemos a inserir na pauta, os itens de sobrevivência, ou seja, as responsabilidades social e ambiental. E esta mudança de pauta requer outras funções ao Estado, nas três esferas, União, Estados e Municípios.
A retomada da agenda ambiental, social e de reconstrução do Estado do RS, além da criação de fundos, com diversificadas fontes de financiamento de longo prazo, exige um olhar criterioso sobre o comportamento da dívida do Estado do Rio Grande do Sul.
Em 1998, o Estado do RS refinanciou com a União, por 30 anos, uma dívida de R$ 9,42 bi, a juros de 6% ao ano e correção monetária pelo IGP-DI. Com prestação limitada a 13% da Receita Liquida Real, o que ultrapassasse esse percentual seria transferido para uma conta chamada “resíduo”, que teria mais 10 anos além dos 30 anos para ser quitada.
De 1998 a 2024, a dívida foi renegociada três vezes (Leis nº 148/2014, nº 156/2016 e nº 159/2017 e modificada pela Lei Complementar nº 178/2021), através do Regime de Recuperação Fiscal (RRF). E suspensa uma vez, em 2017, quando o Estado obteve liminar no STF que suspendeu o pagamento da dívida com a União, de julho de 2017 a fevereiro de 2022. Foi judicializada duas vezes, a primeira interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2012 (ACO nº 2059) e a segunda, propugnada pelo governo do estado do RS em 2015 (ACO nº 2755).
Após estas sucessivas renegociações da dívida, em março de 2024, 26 anos depois do contrato entre o Estado do RS e a União, que renegociou RS 9,42 bi, em 1998, pagou R$ 46,627 bi, ainda deve, em abril de 2024, R$ 104,46 bi. Ou seja, em 26 anos o Estado do RS já pagou cinco vezes o valor original da dívida e ainda deve o correspondente a 11 vezes do valor refinanciado, em 1998.
São vários fatores que precisam ser analisados e no atual quadro, não parece razoável que se analise a dívida pública do Estado do RS sem fazer referência ao processo de financeirização da economia, no qual a gestão da dívida do Estado do RS e da União estão subordinadas.
A financeirização da economia, é quando os ganhos ocorrem pelos canais financeiros (juros) em contraposição aos canais produtivos (lucros), isto é, quando ocorre a migração do capital dos meios produtivos para os meios financeiros. Miguel Bruno (2022) mostra o índice de financeirização da economia que é uma medida da substituição dos ativos de capital fixo produtivo por ativos financeiros.
Em 1970 para cada um real aplicado em investimento produtivo havia somente vinte e cinco centavos (R$ 0,25) aplicados em ativos financeiros. Já, em 2020, para cada um real aplicado em investimento produtivo há seis reais e trinta e oito centavos (R$ 6,38) aplicados em ativos financeiros. Ou seja, neste período, houve um aumento de 2.500% do capital voltado para os ganhos na forma de juros, em detrimento de recursos direcionados ao capital produtivo.
E no caso do Brasil a financeirização da economia passa pela gestão da dívida pública, cujos pagamentos na forma de juros são despesas executadas através do orçamento público, que drena recursos das áreas sociais e ambientais para os gastos com juros, despesas estas sem nenhum limite de gasto pelos normativos do gasto público no Brasil, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo. É nesta engrenagem que dívida pública do Estado do RS com a União, está inserida.
Este fator, dentre outros, trouxe como consequência a deterioração da capacidade do Estado do RS de investir e de ofertar serviços essenciais à população gaúcha. Em relação aos investimentos o Estado do RS apresentou relação investimento/PIB inferior à média nacional. Ávila et al (2022) mostra que, em 30 anos houve uma redução significativa na estrutura do Estado do RS, com “queda relativa de 41,06% do número de servidores, sendo que mais de 90% atuam nas áreas de educação e segurança.
Esta queda ocorreu sobretudo entre 1994 e 1999 e entre 2014 e 2020. Mesmo com a adoção de novas tecnologias na oferta de serviços de educação, saúde e segurança, a mudança no perfil demográfico e outros fatores como o fato de os preços dos serviços, no mundo e no Brasil, crescerem mais do que os preços das mercadorias, e o poder público oferta serviços, logo, é necessário orçamentos maiores e não menores.
Diante da atual tragédia climática do Estado do RS, muito vem sendo debatido sobre a dívida com a União. Forlin (2024) apresenta simulações, entre as quais, que a dívida gaúcha com a União, considerando uma taxa de juros de 4% ao ano e correção monetária pelo IPCA sobre a dívida pactuada através da Lei Federal nº 9.496/1997 e Proes, e abatendo o que já foi pago pelo Estado desde 1998, a dívida do Estado gaúcho, seria em abril de 2024, de R$ 59,588 bi e não R$ 104,46 bi.
Ou seja, um valor menor de R$ 44,872, montante que teria grande valia na composição de um Fundo de Financiamento de reconstrução da infraestrutura do estado, destruída pelas enchentes de maio de 2024.
Este histórico mostra que neste momento, é necessário alteração estrutural, e não apenas a mera suspensão da dívida, pois está não é mais alternativa viável à sociedade gaúcha.
No entanto, há outros desafios para o êxito desta renegociação da dívida do Estado do RS com a União, que é o entendimento por parte dos Poderes Executivo e Legislativo gaúchos de que o enfrentamento da atual crise exige a ampliação e o fortalecimento do papel do Estado.

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