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Moda autoral gaúcha movimenta a economia e projeta Estado para o mundo
Rio Grande do Sul está na vitrine de cidades-ícones como Milão
Tatiana Gappmayer, especial para o JC*
Resgatando memórias afetivas e dos territórios onde desenvolvem os seus trabalhos, as marcas autorais do Rio Grande do Sul entrelaçam saberes e fazeres ancestrais ao design e à criatividade, produzindo peças carregadas de identidade e sustentabilidade. Composto em sua maioria por empreendedores individuais ou empresas de pequeno porte, esse segmento da cadeia da moda estadual vem buscando a profissionalização e consumidores interessados em roupas, acessórios e calçados com histórias, propósito e que valorizem a mão de obra local. Após o período da pandemia de coronavírus, em que muitos negócios da área precisaram se reorganizar e investir fortemente no e-commerce, a perspectiva para 2023 é de expansão para novos mercados.
A história da bucólica localidade de Linha Blessmann Poente, em Nova Roma do Sul, na serra gaúcha, é a inspiração para a alfaiataria contemporânea da Rico Bracco, marca autoral e sustentável fundada pelo designer Fabrício Bracco, em 2015. Em suas peças atemporais e sem gênero feitas com matérias-primas naturais, ele resgata não apenas a memória do lugar e da estética interiorana, mas também as suas lembranças de infância e a trajetória do seu avô materno - que veio da região do Vêneto (Itália) para o Rio Grande do Sul no final da década de 1930.
O nome da empresa, inclusive, é uma homenagem ao avô, que ficou conhecido em Linha Blessmann Poente, onde nasceu Fabrício, como Rico Bracco. "Rico vem de Henrique e Bracco é um cão italiano. Ele ganhou esse apelido porque dividia as suas caças com os imigrantes italianos recém-chegados, que não tinham apoio do governo (Getúlio) Vargas. Toda a família passou a ser chamada de Bracco", detalha o designer, que é pós-graduado em Modelagem de Moda pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e tem o linho como identidade de seu material principal.
A marca, uma das expoentes da atual moda autoral gaúcha, conta com três linhas de roupa, cada uma delas voltada para um nicho. A Vito é a mais básica delas, com vestuário, em geral, em malha e com acabamentos industriais para deixá-los com valores mais comerciais. "Já na Rico, uso as peças de alfaiataria, brincando entre o clássico e o desconstruído, com variações de cor, textura e acabamentos manuais e com modelagens que permitam uma vida útil mais longa e dê a elas uma característica hereditária", explica. Essas criações têm margens de costuras mais generosas, possibilitando ajustes permanentes.
Complementando o portfólio, há a linha Amantino, que engloba as roupas feitas sob medida e as conceituais da coleção. Os nomes escolhidos são mais um tributo ao avô e aos dois irmãos dele. Há ainda um braço destinado à casa, a Bracco Lar, com itens para a cozinha feitos em cerâmica.
Os produtos, elaborados em parceria com uma ceramista da região, tiveram uma grande procura a partir da pandemia, registrando um aumento nas vendas de 70% entre 2020 e 2022. Neste ano, a Bracco Lar participará da Casa Cor São Paulo 2023, em conjunto com a companhia de móveis Dell Anno.
Na área de vestuário, apenas as peças sob medida tiveram um impacto negativo na comercialização durante a pandemia, as demais mantiveram a procura. "Mesmo em suas moradias, as pessoas queriam estar bem vestidas e confortáveis. Desenvolvemos coleções que pudessem comportar esse momento", recorda. Foi também nesse período, em 2021, que a Rico Bracco fez o seu primeiro desfile na Semana da Moda de Milão (Itália). A marca foi escolhida para representar o Rio Grande do Sul na missão internacional promovida pela Brasil Eco Fashion Week.
Com atelier em Caxias do Sul e em Linha Blessmann Poente, as roupas de Fabrício podem ser encontradas em lojas de São Paulo (SP) e Curitiba (PR), em pequenas boutiques de Milão e nos canais online da empresa. Para preservar técnicas manuais históricas e valorizar a mão de obra local, a Rico Bracco atua com costureiras, artesãs e agricultores das regiões de Caxias do Sul, Caminhos de Pedra, Vale dos Vinhedos e do interior de Farroupilha.
"Pensando na sustentabilidade social, tentamos encaixar costureiras que estão desligadas do mercado de trabalho formalizado, seja por idade ou por uma incapacidade física, dando oportunidade para elas continuarem a fazer o que sabem", destaca o designer.
Uma das metas de Fabrício para este ano, dentro da visão de resgate da memória da imigração italiana de Linha Blessmann Poente, é formalizar o projeto inscrito no Fundo de Apoio à Cultura (FAC) - Territórios Criativos, da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac). O edital faz parte das ações do programa Avançar na Cultura, do governo do Rio Grande do Sul, e prevê investimentos de R$ 2 milhões.
A empresa vem revitalizando o plantio e o tratamento da fibra de linho brasileiro, que é utilizado nos fios dos tricôs da marca. "Queremos colocar em prática essa lavoura de linho em maior escala para restaurar essa produção, que não ocorre no Brasil desde 1998, e construir a nossa próxima coleção, a Rio das Antas. Até o final do ano, vamos estar com todos esses esboços em mãos", adianta.
A iniciativa, aponta o designer, é uma oportunidade de manter vivo esse território e também trazer qualidade de vida para os moradores da comunidade, que hoje são cerca de 45 pessoas, a maioria deles agricultores com mais de 50 anos de idade. "A expectativa é que, com isso, novos residentes tenham interesse em ocupar aquele espaço e recuperar a cultura dessa agricultura do linho, que é uma técnica tida como patrimônio imaterial da imigração italiana", acrescenta.
O incremento da oferta de matéria-prima, analisa Fabrício, pode ajudar a tornar a moda autoral mais democrática, reduzindo os custos de produção. "Ter um artigo de qualidade com preço mais acessível é o desafio principal desse segmento", pontua.
Peças atemporais e com identidade são diferenciais competitivos da área
A moda autoral gaúcha tem sido marcada pela diversidade das narrativas pessoais e locais e por contar uma história através de roupas e acessórios, avalia a professora do curso de Moda e do Centro de Design da Feevale, Renata Fratton Noronha. Ela salienta que outra característica desse campo é que, na maioria dos casos, é o próprio designer ou estilista que gerencia o processo do início ao fim ou então ele tem uma equipe enxuta.
"Isso vai resultar em uma peça mais atemporal e com identidade, pois são itens, muitas vezes, oriundos de uma produção pequena que não é tão preocupada com a sazonalidade e sim com as questões da economia criativa, da qual ela faz parte, e do empreendedorismo", assinala Renata.
Essa identidade pode ser impressa ainda através do uso de técnicas manuais que fazem parte da cultura do Estado, como o tricô e o crochê, reforça Tatiana Laschuk, consultora em Design com foco em Moda e Sustentabilidade e docente da faculdade de Moda da Universidade de Caxias do Sul (UCS) - a primeira a oferecer esse curso no Rio Grande do Sul, em 1992.
Tatiana observa que entre as matérias-primas que têm aparecido nos produtos regionais estão trabalhos com lã, tingimento natural, insumos ecológicos e estamparia autoral. "Atualmente, com os processos digitais, se consegue fazer tecidos em menor escala, permitindo aos desenvolvedores se expressarem graficamente." A modelagem escolhida é outra forma de traduzir os valores do designer.
As raízes locais da moda autoral respondem, cada vez mais, a uma preocupação crescente dos consumidores brasileiros e mundiais em comprar artigos de vestuário que tenham uma dimensão ética em suas criações, sustentabilidade e uma relação com o seu território.
"Nesse sentido, esse segmento, assim como toda a indústria da moda, tem um papel importante e um potencial de expansão relevante a partir dessa nova abordagem, que é a de incorporar essas premissas", afirma o pesquisador do Departamento de Economia e Estatística da Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão (DEE/SPGG), Tarson Núñez.
Existe uma curiosidade maior das pessoas em saber como as peças são feitas, onde e por quem e se os trabalhadores recebem um salário justo, ressalta o pesquisador. Para Núñez, há um movimento de transição na cadeia da moda tradicional de um modelo de produção em série para um mais flexível e com itens de maior valor agregado, que é gerado pela identidade local, valorização dos saberes de cada território, pela pesquisa, marketing, patrimônio histórico e cultural e pelos insumos - questões trabalhadas dentro da economia criativa. Ele lembra também que o Estado vem buscando ser competitivo nesse setor não pelo baixo custo de seus artigos, mas sim pela qualidade.
O papel das universidades nessa mudança cultural e na maior visibilidade da moda nacional e gaúcha é enfatizado por Renata.
"Quando se começou a ter mais interesse pelos cursos da área (existem 11 no Rio Grande do Sul) e pela carreira, há aproximadamente dez anos, isso fez com que os consumidores enxergassem essa cadeia de uma forma diferente e os designers e estilistas tivessem uma visão mais profissional e consciente", argumenta. Nesse cenário, a moda brasileira também viveu um grande momento, no início dos anos 2000, quando ela ganhou mais alcance mundial e se passou a falar em uma identidade criativa do País, ação que respingou no Estado.
Apoena transforma folhas de butiá em bolsas e artigos para casa artesanais
As tramas que dão a base e a forma aos produtos da Apoena, empresa familiar composta por mulheres da comunidade de Giruá, no Noroeste do Estado, são feitas a partir das folhas de butiazeiro, palmeira nativa do Rio Grande do Sul. Criada em 2015, a marca alia design ao conhecimento manual das artesãs e costureiras que confeccionam bolsas, luminárias e jogos americanos únicos. A ligação com a memória e a identidade do território está presente desde as peças idealizadas até o nome: Apoena é uma palavra tupi-guarani que significa "aquele que enxerga longe", evidenciando a cultura dos povos ancestrais que ocupavam a região.
Por ser uma espécie ameaçada de extinção, a empresa só pode empregar a matéria-prima do butiá por ter uma autorização da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema). "Em troca da liberação da extração das folhas, temos que cuidar das árvores remanescentes de Giruá", revela a fundadora e diretora criativa da marca, Maiara Andressa Bonfanti. Além de preservar os butiazeiros existentes, em 2016 a Apoena plantou mais de 250 pés da espécie na granja dos avós de Maiara. A produção desses butiás deve começar a ser utilizada neste ano ou em 2024.
O material coletado passa por diversos processos artesanais, como a captação da folha, que ocorre somente no período apropriado para isso - nas luas cheia e crescente -, estalagem (quando é removido com uma faca o talo das folhas), fervura e secagem em uma estufa, que pode levar de dois a três dias no verão e até duas semanas no inverno.
"Depois, elas vêm para o atelier e são raspadas para a retirada da fibra, que é separada por coloração e tamanho. Então, ocorre o recorte para nivelar as laterais, o que dá mais qualidade na hora da trama, é feita uma base de folha costurada e daí vai para a modelagem da peça", descreve. Na parte da costura, explica a diretora criativa, acontece o procedimento mais industrializado, com o uso de corino (couro sintético) de estofaria para dar mais força e durabilidade às bolsas.
Todos os anos, Maiara faz um apanhado das tendências mundiais de mercado e daquilo que o público está buscando para desenvolver as coleções, que possuem sempre uma temática e uma preocupação em não perder o caráter atemporal dos itens. "Nosso propósito, além de recuperar uma matéria-prima típica do Rio Grande do Sul que foi muito utilizada na década de 1920 para fazer colchão, por exemplo, é falar sobre a nossa história, da relação do indígena com o butiazeiro, a árvore dos cachos dourados, a cestaria que eles faziam. A gente está resgatando um patrimônio histórico", defende.
Com uma produção média anual de 360 peças, a empresa possui hoje, incluindo Maiara, quatro funcionárias - sendo duas artesãs e uma costureira. O negócio surgiu a partir de uma ideia do pai da diretora, Wilson Bonfanti, e teve a sua primeira coleção lançada, em 2016, na Festa do Butiá, evento tradicional de Giruá. Juntos, eles planejaram a estrutura da marca e realizaram os primeiros protótipos. As vendas da Apoena, que começou este ano a se preparar para exportar seus artigos, ocorrem principalmente pelas redes sociais e site. "As pessoas também podem vir ao atelier ver os processos e fazer a sua encomenda. Atuamos sob demanda", relata Maiara, que é formada em Moda pela Universidade Regional de Blumenau (Furb).
A pandemia de coronavírus impactou significativamente a empresa, que precisou se reorganizar e reestruturar para continuar. O ano passado foi de definição de novas estratégias, desenvolvimento e de retomada do negócio e de estar presente nos espaços, nas feiras. Para 2023, o objetivo é colocar em prática os planos delineados e investir em mercados diferentes. "Vender a fibra do butiá para outros segmentos, como o da arquitetura, é uma das nossas metas, assim como mostrar para um público maior as nossas bolsas, o design exclusivo e o trabalho único com esse produto natural", projeta.
Comunicar todos esses atributos e ainda a sustentabilidade ambiental e social da marca é uma das dificuldades sentidas por Maiara, assim como a concorrência com grandes companhias que já têm o nome estabelecido e recursos para se manter e cuidar sozinha de vários setores da Apoena. Sobre a moda autoral gaúcha, ela vê muito potencial para o seu crescimento e interesse pelos artigos locais.
Nem só de criatividade sobrevivem os negócios de moda autoral
A capacitação e profissionalização são alguns dos maiores desafios dos empreendedores individuais e das pequenas empresas da moda autoral gaúcha. Planejamento, comercialização, comunicação dos valores e propósitos e compra de materiais são outras dificuldades em comum verificadas por muitos designers, assim como o vínculo com o público-alvo. A falta de financiamento e de mais espaços de visibilidade são outros pontos frisados pela professora do curso de Moda da Feevale, Renata Fratton Noronha. "Os negócios criativos também precisam entender de gestão", sustenta.
Compreender qual é a sua identidade e transmitir isso aos produtos e a concorrência com grandes companhias de fora do País, que fazem artigos com qualidade inferior, mão de obra análoga à escravidão e preços muito baixos, são mais empecilhos que o segmento enfrenta, de acordo com a docente da faculdade de Moda da UCS, Tatiana Laschuk.
"Aí entram a autoralidade e a identidade para se diferenciar dessas peças", diz. As marcas devem pensar ainda em estratégia, estudo de custos e de precificação das roupas e acessórios, planejamento de compras, se dedicar à parte de vendas e estar nas redes sociais que são, para ela, como ter uma "vitrine na rua".
O Rio Grande do Sul tem tradição no setor da moda, com polos produtivos consolidados nas áreas da malharia, na região da Serra, do coureiro-calçadista, no Vale do Rio dos Sinos, e do jeans, no Norte gaúcho, detalha o pesquisador do Departamento de Economia e Estatística da Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão (DEE/SPGG), Tarson Núñez.
Apesar das turbulências vividas por essa indústria ao longo dos anos, em especial na década de 1990, quando ocorreu a abertura da economia brasileira e houve uma entrada expressiva de itens baratos vindos da China e de Bangladesh, Núñez reforça que as empresas que sobreviveram foram aquelas que investiram em qualidade, agregaram design, identidade e criatividade e incorporaram, mais recentemente, questões de responsabilidade ambiental e social e de vinculação com os territórios. "Isso abre um novo caminho para o crescimento", pondera.
O setor no Estado abrange 32,5 mil companhias responsáveis pela geração de 238 mil postos de trabalho com carteira assinada. Segundo o estudo "A cadeia produtiva da moda no RS: trajetória e tendências", idealizado por Núñez e divulgado em 2021, o segmento representava 7,1% do total de empregos formais e 7,3% das unidades produtivas do Rio Grande do Sul em 2018, além de cerca de 83 mil profissionais que trabalhavam como microempreendedores individuais (MEIs).
Na pesquisa, desenvolvida pelo DEE/SPGG em parceria com a Secretaria da Cultura (Sedac), foram analisados dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006 a 2018 referentes à área têxtil-vestuário, que inclui atividades de fiação e tecelagem, coureiro-calçadista, de confecções e do comércio. "É um setor que gera muito emprego e para um público predominantemente feminino", conclui. No Brasil, a cadeia têxtil-vestuário, da fiação ao varejo, proporcionava, em 2018, mais de 2,5 milhões de vagas de trabalho em mais de 385 mil unidades produtivas e de comercialização.
Em Porto Alegre, dentro do universo da economia criativa, o segmento de Moda, Arquitetura e Design é o que reúne o maior número de empresas, 4.034 de um total de 11.747, representando 4,8% das companhias presentes na capital gaúcha. Essa área fica ainda em primeiro lugar na geração de empregos formais, 35.135, significando 4,1% da soma dos postos de trabalho da cidade.
De maneira geral, a economia criativa é responsável por 100.685 vagas nos campos da cultura, criatividade, conhecimento e inovação - 11,8% da soma de empregos com carteira assinada do município. Os dados são do estudo de 2022 "Elementos para a Análise da Economia Criativa em Porto Alegre", realizado pelo DEE/SPGG, RS Criativo, da Sedac, e Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia do Estado em parceria com a Prefeitura da capital e a Feevale.
A partir dessa pesquisa foi desenvolvida uma metodologia que possibilitará que as demais cidades do Estado façam os seus levantamentos, afirma a diretora de Artes e Economia Criativa da Sedac, Ana Fagundes.
"A ideia é realizar também um mapeamento específico sobre a moda autoral no Rio Grande do Sul para entender o tamanho desse segmento e como a gente pode apoiar e fomentar essa área, assim como já fazemos com as outras da economia criativa", adianta.
O estudo deve ocorrer neste ano e terá a participação do RS Criativo, movimento Somos MAG - Eu Amo Moda Autoral Gaúcha e Poa Criativa, da Prefeitura de Porto Alegre, além do apoio de universidades e dos municípios.
A diretora complementa que o RS Criativo conta com mentorias, capacitações e uma incubadora de negócios criativos, atividades que podem ser procuradas pelos empreendedores da moda autoral, assim como os editais, como o do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) - Territórios Criativos que beneficiou dez projetos com R$ 200 mil cada.
Somos MAG busca mais visibilidade para a moda autoral gaúcha
Alçar voos mais altos, encontrar novas marcas e chegar a todos os estados do Brasil são as metas do Somos MAG - Eu amo Moda Autoral Gaúcha para 2023. A rede colaborativa, formada durante a pandemia de coronavírus, em 2020, pretende ampliar o alcance do trabalho desenvolvido por designers, estilistas e criativos do segmento no Rio Grande do Sul, salientando a qualidade e o valor daquilo que é produzido regionalmente.
"Começamos como um plano de sobrevivência. Agora, nossa ideia é ter o reconhecimento do potencial econômico que vem junto com a moda autoral", assinala Heloísa Hervé, uma das fundadoras do movimento.
Reunindo 85 negócios atualmente, o Somos MAG espera que a maior visibilidade fortaleça a área e sensibilize a sociedade e as governanças, para que se tenha incentivos.
"Nosso propósito é mostrar que a moda autoral gaúcha é consistente, tem história, identidade, que é uma força cultural e econômica, porque ela mexe com toda a cadeia - designers, costureiras, bordadeiras, modelistas, entre outros", acrescenta Bia Job, também idealizadora da rede.
As publicitárias, que são ainda sócias no espaço A Loja, localizado em Porto Alegre e que possui hoje 23 marcas de roupas, calçados e acessórios autorais, contam que o movimento foi constituído para ajudar os empreendedores a se sustentarem durante aquele momento da Covid-19.
Com o fechamento das feiras e lojas, muitos perderam seus pontos de venda e não estavam conseguindo permanecer abertos. Nesse contexto e a partir de uma experiência vista em Milão (Itália) pela fundadora da marca gaúcha Dona Rufina, Luciana Bulcão, de apoio e valorização à moda autoral e local, o Somos MAG nasceu para unir as pessoas que atuam nessa área, trocar conhecimentos e manter a cadeia viva.
As primeiras ações da rede, que é composta também por Luciana, César Kieling, Paula Visoná e Madeleine Müller, envolveram a identificação das marcas que faziam parte do cluster de moda autoral que estava se consolidando, especialmente na capital gaúcha que é onde o segmento está mais organizado, e o entendimento do que elas necessitavam.
"Vimos que muitos desses pequenos negócios precisavam se profissionalizar e compreender o potencial que tinham. Boa parte deles tem o poder criativo, mas não o organizacional, não sabe se apresentar, vender e precificar o produto e se comunicar", enfatiza Bia. Heloísa destaca que o Somos MAG juntou os empreendedores em um ambiente virtual para que eles pudessem conversar e ver que não estavam sozinhos, que muitos dos problemas que eles enfrentavam eram comuns.
Entre as iniciativas realizadas estão as consultorias na parte de gestão, vendas, redes sociais e marketing, que continuam em 2023. Para marcar o primeiro ano do movimento, em 2021, foi promovida uma semana de moda online, na qual todas as marcas da rede participaram, divulgando e comercializando suas peças, e que contou com palestras e mesas redondas.
Para viabilizar essas medidas, o Somos MAG procurou o Sebrae, o RS Criativo, programa da Secretaria Estadual da Cultura (Sedac), o Poa Criativa, da Prefeitura de Porto Alegre, as universidades e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). "Trabalhamos com uma visão de que os negócios autorais não são concorrentes, todos têm que navegar a mesma onda. Sozinhos somos uma fagulha, mas juntos somos uma fogueira", compara Bia.
Heloísa agrega que hoje as pessoas estão querendo consumir com sentido, comprando peças que tenham um porquê por trás, que sejam uma forma de expressão. "E a moda autoral tem esse diferencial que é um profissional criativo que empresta uma assinatura única a um produto ou serviço, que pode estar impregnada de um saber ancestral, de uma memória ou de uma história do local", descreve.
Cristina Lisot usa o tricô como expressão estética e poética
Desde criança, o tricô aprendido com a mãe acompanha a artista visual e bailarina Cristina Lisot em seus trabalhos com figurinos, peças de arte e objetos vestíveis - como ela chama as roupas que cria. Nascida em Caxias do Sul, ela recorda que não havia, quando era pequena, tantas possibilidades de vestuário para comprar e nem opções especiais como as que procurava. "Acabava inventando algo para mim através dessa técnica, que é algo ligado à cultura da região serrana do Estado, do frio, e que é historicamente passada de geração em geração", ressalta.
Com peças autorais e únicas, que surgem da manualidade e da tensão do fio do tricô, Cristina utiliza diferentes pontos e materiais para confeccionar seus casacos, vestidos, blusas, saias, mantas e itens cênicos e artísticos. "Olho para as coisas sempre pensando se consigo tricotar com elas", brinca a artista, que já usou resíduos da indústria têxtil para desenvolver a obra O, que foi exposta na I Bienal de Arte Têxtil Contemporânea-Brasil, em 2019, e na Semana de Design de Milão, em 2022.
Ela costuma ainda garimpar fios em suas viagens e, no momento, está trabalhando com algodão orgânico através de uma parceria com a empresa Innovativ Tecidos, de São Paulo (SP). "Fiz um casaco com essa matéria-prima que participou da Paris Première Vision 2023 (principal feira de fornecedores de insumos da Europa), na França", comenta.
A arte está presente em suas roupas, que possuem volume, peso e, normalmente, são disformes e um resultado de suas pesquisas com cor, movimento e textura. "Elas são um acontecimento, a pessoa que compra precisa se identificar com a peça, tem que fazer sentido", observa.
Apesar de Cristina considerar que suas criações não são facilmente comerciáveis, muitas clientes - o público consumidor é principalmente feminino, com idade acima dos 35 anos - começaram a gostar de seus produtos e, aos poucos, ela decidiu deixar alguns deles em pontos de venda.
Há cerca de quatro anos, a artista colocou alguns objetos vestíveis em uma loja de Caxias do Sul que abriu um espaço para a moda autoral.
Depois, fez parceria com um estabelecimento de Porto Alegre, expôs suas roupas na Casa de Cultura Mario Quintana, também na cidade, e, hoje, está "namorando" mais um ponto na capital gaúcha e outro em São Paulo (SP). "Pode ser feito ainda o contato pelo site e redes sociais, mas isso acontece pouco", pondera.
Para elaborar as roupas, Cristina se inspira em imagens, memórias e afetos. Ela não tem uma produção linear, pois depende dos materiais que encontra. Um exemplo foi o casaco Roseiral que ela tricotou durante a pandemia, quando pegou Covid-19 e ficou isolada em casa. Com os fios verdes e vermelhos que tinha à mão, a artista lembrou do roseiral que havia na casa da avó paterna e transformou a recordação em uma peça.
"Uso o tricô como uma linguagem de expressão estética e poética, o que dá identidade para minhas criações, assim como o resgate que faço dessa técnica ancestral", pontua. A sustentabilidade é outra característica do seu trabalho, buscando dar novos significados para aquilo que poderia acabar no lixo.
A moda autoral gaúcha tem, na visão de Cristina, um grande caminho pela frente e um mercado interessado em produtos que carregam uma bagagem cultural histórica. "Possuímos no Estado uma riqueza de técnicas e materiais tradicionais de diferentes territórios, que dão subsídio para as criações. Precisamos dar valor ao que é próprio e expor isso para o País", defende a artista visual.
Carol Clio dá vida a resíduos têxteis
Tecidos e couros reciclados são as matérias-primas que a artista e designer Caroline Teixeira, fundadora da marca Carol Clio, de Porto Alegre, transforma em maxi colares, pulseiras e brincos cheios de volumes, texturas e camadas. A inspiração para as peças nasce da explosão de cores e tramas dos insumos que ela adquire e reaproveita da indústria têxtil.
"É isso que me dá a energia criativa, vou fazendo testes com os materiais, combinações, e daí começo a produzir", relata a empreendedora, que atua na área da moda autoral há mais de uma década.
Trabalhando com o conceito de joia têxtil, Caroline busca um sentido mais contemporâneo para seus acessórios, longe das pedrarias e ouro convencionalmente associados ao termo joia.
"O valor das peças está ligado à mensagem que elas transmitem. No meu caso, quero passar para o público os princípios de manualidade, de artesanal e de economia circular, que são os diferenciais da marca", aponta a designer, que é formada em História. Foi inclusive durante o curso na Unisinos que ela iniciou a confecção e venda de seus colares e também onde surgiu o nome Carol Clio. Clio, a musa da criatividade e da memória histórica, foi escolhida por representar os dois universos em que a artista transita.
Apesar de fazer acessórios desde 2002, foi somente em 2010 que ela abriu a empresa. Por realizar sozinha todos os processos do negócio, ela procurou o Sebrae-RS para obter mais conhecimento sobre comercialização, planejamento de marketing e outros temas relacionados à gestão.
"Esse é para mim um dos maiores desafios da moda autoral, ser tudo: o criativo, a produção, vendas, redes sociais, manutenção do site e a administração financeira", compartilha. Ela conta ainda que, como a maioria dos empreendedores do segmento são independentes ou possuem uma equipe reduzida, cuidar de todos os detalhes acaba, muitas vezes, tirando o foco da parte de concepção dos colares.
Durante a pandemia de coronavírus, Caroline centralizou mais a comercialização nos canais digitais. Como ela já tinha uma estrutura de e-commerce preparada, a designer intensificou o abastecimento das redes e do site com seus produtos e o resultado veio através de mais vendas e visibilidade da marca para outros estados, especialmente para São Paulo e Rio de Janeiro, lugares de onde recebe muitas encomendas.
A designer adianta que para esse ano a ideia é participar de feiras de maior porte e de alcance nacional e internacional e retomar o patamar de comercialização de 2019 para depois poder crescer.
Caroline comenta que foi preciso, no pós-pandemia, reinventar muitas coisas no negócio, como voltar aos eventos de rua para reencontrar as clientes, que são, em sua maioria, mulheres de 35 anos a 55 anos, conectadas ao mundo atual e conscientes sobre o que consomem.
"Já não fazia muitas feiras, pois tinha um público fidelizado e pontos de contato que não eram comerciais, como no trabalho das consumidoras. Isso mudou com o coronavírus e foi preciso fazer esse caminho de volta para buscar antigas e novas clientes." Ela argumenta que nas vendas presenciais o tíquete médio é cerca de três a quatro vezes maior que no online.
Joias afetivas e resgate da memória marcam peças da designer Eliana Colognese
As histórias pessoais e locais que atravessam as criações autorais da moda gaúcha estão presentes também nos acessórios idealizados pela designer de joias Eliana Colognese, que usa suas peças para empoderar outras mulheres. Com uma trajetória na área de mais de 25 anos, Eliana desenvolveu o seu conceito de joias afetivas em 2016, quando lançou a coleção Sementeiras, consequência de um momento em que ela sentiu necessidade de resgatar a sua essência, saber quem ela era e quais os seus valores. "Vivi um relacionamento abusivo e tive depressão pós-parto, situações que me levaram à análise e a revisitar minha vida e as memórias que precisavam ser contadas", revela.
Nesse processo interno, a designer olhou para os materiais que faziam parte da sua infância, com destaque para os botões que remetiam à mãe costureira e às brincadeiras inventando roupas, e que passaram a fazer parte de seus maxi colares e brincos.
"Foi ali que comecei a colocar para fora o que conectava com minha alma, sem medo. Foi um resgate do feminino", define. Dentro dessa abordagem, Eliana confecciona acessórios com relíquias afetivas que as pessoas guardam, como o cabo de madeira de uma enxada que era a única lembrança que uma cliente tinha do seu avô e foi transformado em um colar, ou as rolhas de bebidas que um casal guardou de suas viagens.
Nascida em Chapada, no Norte do Estado, e morando na capital gaúcha, a designer fez suas primeiras peças quando ainda estudava Psicologia. Infeliz com o curso e distanciada da veia artística que sempre a acompanhou, ela migrou para o Design de Joias e Acessórios e depois fez uma pós-graduação em Moda, Criatividade e Inovação.
Pouco antes da pandemia, em 2019, Eliana se separou e foi um período de recomeço com o trabalho. "Montei meu atelier na sala do apartamento, retirei as joias que estavam em outros pontos de venda, fiz uma mentoria e abri uma loja online", frisa.
Logo em seguida veio a pandemia e a necessidade de se readaptar de novo. Com a queda nas vendas dos maxi colares, itens de maior valor de suas coleções, em torno de R$ 200,00 a R$ 300,00, a designer adaptou esses produtos para brincos, que funcionam como complemento dos colares e têm um preço mais acessível, variando de R$ 20,00 a R$ 30,00. Outra ação para elevar a comercialização foram as lives, mantidas até hoje e que ocorrem às quintas-feiras, às 20h30min, no Instagram. Além das coleções e joias feitas com materiais de recordações das consumidoras, Eliana está constantemente concebendo peças únicas que disponibiliza em seu site e redes sociais.
Reformar o atelier para atender ao crescimento da demanda e melhor receber suas clientes - em geral, mulheres de 40 anos a 60 anos e, mais recentemente, há uma geração mais nova procurando seus colares, filhas de suas consumidoras - e contratar alguém para ajudá-la na empresa são metas da designer para este ano.
Ela reforça que gerenciar todos os processos e ainda conseguir oferecer um produto com qualidade, durabilidade e um bom atendimento e lidar com os custos são seus principais desafios como empreendedora.
"A criatividade é o que vem me mantendo no mercado, administrando todos os desafios que o pós-pandemia e a moda autoral trazem, bem como o afeto que coloco em cada joia, que é exclusiva", enfatiza.
*Tatiana Gappmayer é jornalista formada pela Pucrs, tem especialização em Jornalismo Digital também pela Pucrs, atua com produção de conteúdo on e offline e é criadora do @pelacidadebaixa.