Embalado pelo panorama político e social, um grupo de psicanalistas começou a pensar maneiras de atuar para além das quatro paredes dos consultórios. O assassinato da vereadora Marielle Franco, em fevereiro de 2018, foi sentido pelo grupo como um ataque à palavra, um silenciar de alguém que denunciava, o estopim que deu vida ao Psicanálise na Praça: um coletivo que atua de forma independente, proporcionando espaços de fala, no resgate da importância da palavra, do pensamento e da denúncia.
Todos os sábados, é possível encontrar o coletivo na Praça da Alfândega, próximo ao Monumento do General Osório, no Centro Histórico de Porto Alegre. Os participantes ficam sentados em cadeiras de praia para realizar um trabalho de escuta analítica ao ar livre, das 10h às 12h30min. O atendimento é gratuito e aberto para qualquer um que estiver circulando pelo local, bastando apenas solicitar uma consulta que um psicanalista vai em busca de um espaço adequado para acontecer a análise.
"O objetivo do coletivo é democratizar a psicanálise, tirar desses bairros nobres que geralmente se encontram os consultórios, para que ela possa alcançar pessoas que tenham interesse e que desejam ter esse lugar de fala, sem que o dinheiro seja um impedimento", explica Fernanda Vial Costa, idealizadora do Psicanálise na Praça.
Vale destacar que não existe restrição quanto à frequência ou duração dos atendimentos, ficando a desejo do paciente esses dois aspectos. Em dias de chuva, o grupo se acomoda no vão do prédio do Palácio da Justiça (Praça Mal. Deodoro, 55).
A escolha da Praça da Alfândega como espaço dos atendimentos se desdobra por diversos motivos, sendo um deles o grande fluxo de pessoas que circulam diariamente, além do fácil acesso ao transporte urbano.
De acordo com Fernanda, a praça também oferece locais mais silenciosos para que o trabalho de escuta possa ter uma certa privacidade. Nesses quase cinco anos de projeto, comerciantes, moradores do Centro Histórico, transeuntes e pessoas de outras cidades já dedicaram um pedaço do seu dia para compartilhar seus anseios, dúvidas e sentimentos.
"A gente ocupa um espaço onde aparecem pessoas querendo vender o seu produto, tem cheiro, tem barulho e outras situações que, dentro de um consultório, não vai acontecer. Mas isso não impede que o processo analítico aconteça", revela Fernanda, que acredita na ideia de um "teto interno": uma disponibilidade interna do analista de estar ali oferecendo uma escuta.
Escutas analíticas foram online durante a pandemia

Coletivo Psicanálise presta atendimentos na Praça na Praça da Alfândega
ISABELLE RIEGER/JC
O Psicanálise na Praça compartilha a visão que, independentemente do lugar que o psicanalista ocupar, a escuta pode acontecer. Para Fernanda, o que faz um psicanalista é a experiência de viver, se incomodar e habitar a cidade.
"Se formos depender de um local muito organizado para atender, tem alguma coisa errada. A escuta acontece quando temos um espaço interno para ouvir o outro", conta. "A psicanálise precisa existir onde há vida. O trabalho na praça só me enriquece, eu tenho muitos ganhos em relação à minha experiência enquanto analista", acrescenta.
Ter um projeto idealizado por um coletivo horizontalizado exige colaboração. Desde quando surgiu, em julho de 2018, o Psicanálise na Praça aposta na dinâmica do grupo para que seja capaz de acontecer. Todos os sábados, são mobilizados cerca de 10 psicanalistas, de um total de 15 pessoas que atuam na iniciativa.
A aposta na rotatividade dos profissionais é um dos maiores entraves. No entanto, reuniões semanais ajudam a colocar todos na mesma página. "Sem o coletivo, a iniciativa não estaria acontecendo. Por mais vontade que eu tivesse, não conseguiria ir sozinha", comenta.
A pandemia foi um período de muita dificuldade para o Psicanálise da Praça, que devido ao isolamento social ficou impossibilitado de atuar. Em frente a isso, o coletivo teve que elaborar maneiras de continuar sustentando os atendimentos, sem que colocassem a si próprios e o público em risco. Dessa maneira, optaram por levar a escuta analítica para o ambiente online.