Beco dos Livros é sinônimo de resistência no mundo digital

Por Jefferson Klein

Peter Dullius, que administra 300 mil itens em três lojas, garante que textos impressos estão longe da extinção
Quando o economista Peter Dullius, na década de 1990, resolveu fundar a Beco dos Livros e ingressar nesse segmento ainda não havia a competição com as encomendas feitas pela internet ou as obras digitais. No entanto, apesar das mudanças que vieram com o tempo, o empreendedor, que possui três lojas em Porto Alegre e mais de 300 mil itens acumulados, defende que os textos impressos estão longe de serem extintos e continuarão sendo vendidos por vários e vários anos ainda.
Empresas & Negócios (E&N) - Como o senhor entrou no mercado de livros?
Peter Dullius - Eu trabalhava em banco de desenvolvimento, no Badesul, trabalhei na CRT e no governo (de Antônio Britto) aceitei o PDV (Plano de Demissão Voluntária). Naquela época (segunda metade da década de 1990), não valia mais a pena ficar trabalhando no setor público. Pesquisava aos domingos nos classificados e apareceu: "vende-se pequena livraria na General Vitorino". Eu e meu filho fomos ver e comprei o negócio. Com máquina de xerox bem-acabada e uns 2 mil livros de pouco valor e alguns materiais de escritório e foi assim.
E&N - Quantas unidades da Beco dos Livros existem?
Dullius - Hoje, nós temos três. Na frente da Casa de Cultura Mario Quintana, que é a maior, na (rua) Riachuelo e na (rua) General Câmara. Eu cheguei a ter sete lojas, todas em Porto Alegre
E&N - Como foi o desenvolvimento do mercado de livros?
Dullius - De 1995 a 2010, era muito efervescente, era uma coisa bastante movimentada. Mas, com a internet as pessoas começaram a comprar menos livros, não pararam de comprar, houve uma redução. Então, hoje em dia a gente trabalha com livros mais raros, fora de estoque, fora de catálogo. E tens que cadastrar os livros em sites, os livros mais importantes, porque o cadastro tem um custo.
E&N - Quantos livros as três unidades possuem hoje?
Dullius - Se considerar itens como livros, CDs, gibis e revistas, eu devo ter mais de 300 mil itens nas lojas. Tudo que se possa imaginar. Eu perdi um pouco esse controle, quantos são. Eu tenho 120 mil livros cadastrados e tem mais que o dobro não cadastrado e milhares de gibis também não cadastrados.
E&N - Qual é a média mensal de vendas?
Dullius - Acho que, por loja, uns 3 mil a 4 mil livros por mês, se considerar as revistas, cerca de 5 mil itens por loja. Tem meses que vende mais, mas no verão, quando baixa o fluxo de pessoas na cidade, vende um pouco menos.
E&N - Como está atualmente o mercado de livros?
Dullius - A maior crise nossa foi durante a pandemia (da Covid-19), que não teve movimentação de público. O mercado retraiu em 50% ou mais. O que nos propiciou melhores condições (para a Beco dos Livros) é que nós temos imóveis próprios. Mas, quem tinha que pagar aluguel, manter altos custos, não aguentou. Grandes redes, grandes lojas, fecharam. Precisava ter capital para ter passado esses dois anos, quem não tinha reserva, em qualquer ramo, não conseguiu sustentar esse período, se entregou.
E&N - Hoje, qual o perfil do público consumidor?
Dullius - É o mesmo perfil de sempre. Jovens e terceira idade, todos eles. Os jovens vão muito hoje em revistas, muito mangás (histórias em quadrinho de origem japonesa), turma da Mônica e os heróis também. O mangá entrou com muita força no mercado.
E&N - A maior procura é pelos clássicos ou por autores novos?
Dullius - Eu não pensei que fossem tantos autores novos surgindo nos últimos anos. Eles lançam os livros, fazem os ensaios via redes sociais, via internet, lançam o livro online, e os grandes sucessos acabam sendo impressos e vendem como água, porque nem todos têm acesso à leitura pela internet ou por e-readers. Tem muito título novo e os clássicos continuam.
E&N - A internet é mais inimiga ou aliada das vendas de livros pelos sebos, já que é possível comercializá-los por esse meio?
Dullius - Hoje, para mim, tanto faz. Porque, por ela (internet) eu também vendo. As pessoas olham na internet, veem o livro e vão na loja, sabendo que eu tenho o livro. Então, é uma ajuda enorme. Antigamente, as pessoas batiam perna, hoje elas vão com uma definição, elas sabem onde tem o livro. Elas ligam, confirmam, e vem buscar.
E&N - Aparelhos como e-readers e celulares podem significar o fim do livro impresso?
Dullius - Não acredito. Acho que a situação estabilizou. O maior mercado que perdemos foi o dos estudantes. Os colégios disponibilizam os capítulos que precisam ser estudados, mas a literatura em geral, os clássicos, eles continuam. Muita literatura não foi para as redes sociais. Os livros de 20, 30 anos atrás não estão disponibilizados na internet e aí entra o nosso maior volume de vendas, os livros mais antigos.
E&N - Como o senhor imagina o mercado de livros e dos sebos nas próximas décadas?
Dullius - Vai continuar igual. Sempre vai ter o livro impresso, mas menos. Eu não sei se uma criança, que hoje tem dois anos, se ela vai ler no celular, no computador ou vai chegar algum momento, com dez, quinze anos, que ela vai querer tocar em um livro, acabar tendo contato com o livro físico e, aquilo que ela leu no computador, ela vai querer um dia ter na casa dela. É mais fácil consultar um livro do que uma página na internet.
E&N - Então, o livro não é um bicho em extinção?
Dullius - Não, não é. Eu acho que daqui a cem anos ainda vão imprimir. Tanto é que nos últimos anos a impressão de livros cresceu, em todos os lugares, até nos Estados Unidos. Na internet, no computador, você tem paciência para consultar, para ler um artigo, mas livro, embaixo do braço, você pode ir para uma praça ler, ele facilita. E acho que é meio um fetiche, ficar com o livro na mão, em uma tela acho que a pessoa não fica tanto tempo olhando.
E&N - A questão imobiliária, com residências cada vez menores, pode ser um obstáculo para colecionadores de livros?
Dullius - Sim. E assim também funciona com as lojas físicas. Elas necessariamente, em todos os locais, como Buenos Aires, sempre se instalaram nos centros antigos e históricos e esses aluguéis aumentaram muito. Isso prejudicou muitas livrarias pequenas, que não conseguiram se manter nas grandes cidades, dentro dos centros urbanos. Nos bairros (mais afastados), é difícil se manter, não há volume (de vendas). As enciclopédias não são editadas desde os anos 2000, fisicamente, porque não há espaço.
E&N - Qual a importância para os sebos de participarem de eventos como a feira do livro de Porto Alegre?
Dullius - É a divulgação. É como uma exposição de animais. O que você leva em uma exposição? Teu cavalo mais bonito, teu boi mais bonito, tua vaca mais bonita. Você deixa seu cartão, você divulga, porque passa muita gente. E também se consegue fazer um dinheirinho, que precisa também, porque fim de ano sempre tem custo, despesas. Na feira eu mostro que tenho dois mil livros, mas na loja tenho mais de 20 mil e a pessoa pensa: "então vou lá".
E&N - Quanto ao público que frequenta os sebos, há personagens interessantes também fora dos livros?
Dullius - Tinha uma senhora que ia copiar receitas (gastronômicas) para passar o tempo, mas não cozinhava. Uma coisa incrível. O dia que pedimos para ela trazer uns doces ela disse: "eu não sei cozinhar". Ela vinha todas as tardes, ficava das 14h até às 17h, 18h, anotando receitas em um caderno.