Mercado de crédito de carbono está na agenda da PwC

Questões climáticas hoje são tidas como extremamente relevantes para empresas e economias nacionais, diz executiva

Por Cristine Pires

Executiva destaca importância de reduzir os níveis de CO2 no planeta
Quem vê Melissa Schleich em sua função corporativa como diretora de Mercado de Capitais e ESG da PwC Brasil, não faz ideia de que ela tem muito mais habilidades. A dedicação ao trabalho tem outra frente, como professora de graduação e pós-graduação na área de Administração de Empresas da ESEG - Grupo Etapa e FK Partners, ambas de São Paulo. Formada em Ciências Biológicas, Relações Internacionais, com especialização em Finanças e Mestrado em Finanças e Controladoria, tem ainda outras facetas. A executiva e professora também tem formação como atriz e chef de cozinha. Entre as tarefas que estão na prioridade agora em sua agenda, está o mercado de crédito de carbono. Pesquisa realizada pela PwC revela que, embora as ambições de carbono zero na economia mundial continuem a crescer, o progresso de descarbonização nos últimos 12 meses foi reduzida.
Empresas & Negócios - O mercado de crédito de carbono está cada vez ocupando mais espaço na agenda das empresas, mas, afinal, como eles funcionam?
Melissa Schleich - Questões climáticas hoje são tidas como extremamente relevantes não só às empresas, mas às economias dos países, às sociedades humanas e ao planeta. O dióxido de carbono (CO2) é um dos principais gases de efeito estufa e serve como unidade de conta em todas as discussões sobre mudanças climáticas. Atualmente, existem dois principais mecanismos para precificação do carbono emitido na atmosfera. Primeiramente, a taxação do carbono, que consiste na criação de um imposto ou taxa a ser pago para a emissão de cada tonelada de carbono equivalente. Esse mecanismo é geralmente segregado por setores (exemplo: taxação de termelétricas em determinada região) ou por volume de emissão (exemplo: taxação de termelétricas acima de 200MW). Já os mercados de carbono partem de uma lógica de mercado (de oferta e demanda). Neste segundo mecanismo, uma autoridade reguladora deve estabelecer limites para emissões dos agentes emissores de Gases de Efeito Estufa (GEE). Aqueles agentes que emitirem abaixo do limite podem transacionar seus superávits. Esse modelo de mercado é o que se chama de “cap and trade”. Dentro da mesma lógica, há o mercado voluntário de carbono, no qual as empresas podem comprar créditos de forma voluntária para compensação de suas emissões. Neste caso, não há limites de emissões estabelecidos por um agente regulador, a compra de créditos de carbono é feita como em função de uma preocupação da empresa, como parte da estratégia para lidar com as mudanças climáticas. O conceito de redução certificada de emissões (ou “créditos de carbono”) foi criado a partir do Protocolo de Kyoto, de 1997 (o qual foi ratificado e entrou em vigor a partir de 2004). Um crédito de carbono representa uma tonelada de gás carbônico equivalente (CO2e) não emitido ou retirado da atmosfera. Para medir a redução de outros gases de efeito estufa, como metano e óxido nitroso, é feita uma conversão com base na quantidade que seria equivalente em carbono. Essa conversão se baseia no potencial de aquecimento global de cada gás. Há diversos projetos que podem gerar redução ou remoções de carbono, desde recuperação de metano em aterros sanitários até projetos ligados à conservação florestal. Os projetos podem, ainda, ter cobenefícios associados, gerando renda, por exemplo, para as comunidades locais a partir do manejo sustentável da floresta. Esse tipo de projeto tem maior valor agregado.
E&N - Quais são os diferentes tipos de créditos de carbono?
Melissa - O Ecossystem Marketplace, iniciativa internacional que fornece informações sobre o mercado voluntário de carbono, reconhece 170 tipos diferentes de créditos de carbono [conforme ilustração abaixo, extraída da instituição], dentre os quais, as principais categorias estariam relacionadas, com base nos projetos de origem destes créditos, a florestas e uso da terra, energias renováveis, processos químicos e industriais, gestão de resíduos, eficiência energética e de combustíveis, comunidades, transportes e agricultura.
 
E&N - Quais são os principais tipos de contratos sobre créditos de carbono?
Melissa - Basicamente, existem dois mercados de carbono: o mercado regulado e o mercado voluntário. O mercado regulado conta com permissões ou licenças (allowances) geralmente concedidas ou vendidas por entidades governamentais às organizações ou entidades participantes de programas de redução de emissões de GEE (geralmente relacionados a setores ou atividades específicas). O mercado voluntário se caracteriza pela compra voluntária de créditos de carbono, com a finalidade de compensar emissões e contribuir com a mitigação de efeitos climáticos adversos por meio da neutralização de emissões.
 
E&N - Qual é a regulamentação aplicável atualmente e o que esperar para o futuro?
Melissa - No Brasil, contamos, em linhas gerais, com o seguinte arcabouço jurídico: a Política Nacional de Biocombustíveis (RENOVABIO), oriunda da Lei 13.576/17, regulou as emissões de GEE no setor de combustíveis e criou um programa de compensação de emissões, por meio do Crédito de Descarbonização de Biocombustíveis – CBIOs. Adicionalmente, em 29 de maio deste ano foi publicado o Decreto 11.075/2022, que estabeleceu o marco regulatório do mercado de carbono brasileiro. O decreto propôsque as metas de redução de emissões sejam definidas via acordos setoriais e criou o SINARE - Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa, um tipo de clearing para créditos de carbono, no qual deverão se feitos os registros de emissões, remoções, reduções e compensações de gases de efeito estufa e de atos de comércio, de transferências, de transações e de aposentadoria de créditos certificados de redução de emissões (conforme o Art. 8). No entanto, o referido decreto não traz propostas técnicas sobre as metodologias para concepção e cálculo das reduções de emissões, sobre a forma de precificação dos créditos e nem traz detalhes sobre os mecanismos de controle, rastreamento e comprovação da veracidade dos projetos que geram esses créditos. A compra e venda de créditos de carbono no país deve ser regulada pelo PL 528/21, o qual tramita na Câmara dos Deputados desde o ano passado, ainda sem previsão de aprovação. 
 
E&N - Como são registrados os créditos de carbono?
Melissa - Sob o ponto de vista contábil, hoje, não existe normativa específica para o tratamento de créditos de carbono - o que gera insegurança contábil e tributária ao potencial comprador desses instrumentos. Devido à falta de orientação oficial, a contabilização de allowances e créditos de carbono pode ser complexa e sujeita a julgamento. Quanto aos organismos reguladores, tanto FASB quanto IASB já tentaram abordar o assunto. No entanto, o FASB retirou o projeto de sua agenda em 2014 e nenhuma orientação foi emitida. O tópico foi colocado sob consulta pública do IASB para o plano de trabalho 2022-2026, e muitos respondentes rankearam este tópico como high priority, ou alta prioridade. No entanto, o tópico foi incluído na “lista de reserva” do plano de trabalho. Na ausência de outras orientações, allowances e créditos de carbono podem ser contabilizados utilizando-se as orientações de estoque ou ativo intangível, com base no uso pretendido. A abordagem selecionada deve ser aplicada de forma consistente, ser razoável e ser divulgada adequadamente. Adicionalmente, no Brasil, o Decreto 11.075, de 29 de maio de 2022, identifica créditos de carbono como ativos financeiros.
 
E&N - De que forma são calculados os valores atribuídos aos créditos de carbono?
Melissa - O reconhecimento inicial de allowances e créditos pode ser a custo (zero, se recebido do governo - no caso de allowances) ou a valor justo. Conforme mencionado no item 1, em relação à precificação dos ativos, o mercado voluntário funciona em função de relações de oferta e demanda. Os projetos que tenham, ainda, co-benefícios associados (sociais, por exemplo), teoricamente têm mais valor agregado. Vale mencionar que, no primeiro período do Protocolo de Kyoto (de 2004 a 2014), os créditos de carbono eram negociados em bolsa de valores internacional - o que ocorre hoje com os CBIOs.
E&N - Como o Brasil se encontra neste cenário na comparação com outros países?
Melissa - A existência de um mercado regulado tem como objetivo incentivar as empresas a repensar seus processos e buscar tecnologias para a redução das suas emissões, de forma que a compra de créditos de carbono seja uma alternativa para a compensação daquilo que não foi possível reduzir. Dessa forma, países que contam com um mercado regulado (em contraposição ao mercado voluntário) têm um mercado mais “forte”, no qual o preço dos créditos de carbono são também maiores do que os praticados no mercado voluntário. Nesse aspecto, sem um mercado de carbono regulado, o Brasil está atrás de outros países cujos mercados já existem e funcionam há mais de 15 anos.
 
E&N - A PwC fez uma pesquisa recente sobre o tema. Quais são os principais resultados?
Melissa - Em pesquisa recente da PwC sobre o tema de descarbonização (Net Zero Economy Index 2022), os principais resultados destacados são:
-As ambições de net carbon zero na economia mundial continuam a aumentar, mas o progresso de descarbonização nos últimos 12 meses foi reduzida.
-Nesse sentido, o indicador para membros do G20 em emissões e descarbonização de suas economias, mostra que a taxa global de descarbonização em 2021 atingiu seu nível mais baixo em mais de uma década, de apenas 0,5%.
-Para limitarmos o aquecimento global em 1,5°C, é necessária uma taxa anual de descarbonização global de 15,2% a.a.;
-A intensidade global de carbono precisa ser reduzida em 77% até 2030, para estarmos no caminho do limite de aquecimento global em no máximo 1,5°C.
-O estudo destaca também a liderança de empresas no processo de transição para uma economia de baixo carbono e uma série de iniciativas lançadas nesse sentido, sobretudo em função das pressões regulatórias, de investidores e de uma mudança na mentalidade dos consumidores.
 
E&N - De que forma os créditos de carbono impactam na vida da sociedade?
Melissa - Hoje, as questões climáticas e efeitos catastróficos oriundos do aumento de temperaturas globais são amplamente discutidas em todos os âmbitos, inclusos o mundo corporativo e a sociedade civil. A chamada neutralidade de carbono (net carbon zero) é alcançada quando o saldo de emissões de GEE lançados na atmosfera são compensados pelas retiradas desses gases da atmosfera. A tarefa de realmente alcançar o net zero ou outros compromissos climáticos pode ser hercúlea, e não há uma abordagem única. Nesse sentido, uma estratégia eficaz de implementação combina ações, que reduzem as emissões em toda a cadeia de valor, absorvem as emissões inevitáveis e/ou compensam as emissões que não podem ser evitadas ou absorvidas por meio de investimentos em projetos sustentáveis - e uma opção para isso são créditos de carbono.
 
E&N - Quais são os entraves para que os créditos de carbono ganhem ainda mais espaço?
Melissa - Dentre outros fatores, podemos citar os seguintes entraves ao mercado de créditos de carbono: Indefinição (e portanto, insegurança) jurídica, contábil e tributária a respeito da natureza desses instrumentos; Indefinição e potencial impacto de legislação e regulamentação emergentes no setor;
Ausência de estruturas de financiamento aos projetos subjacentes.
 
E&N - Qual a sua previsão quanto ao futuro dos créditos de carbono?
Melissa - O Brasil tem um potencial enorme de geração e comercialização de créditos de carbono, mas tudo passa pela regulamentação desse mercado. Regular o mercado significa adotar padrões que sejam adequados à realidade do Brasil, levando em consideração parâmetros baseados na nossa cadeia produtiva para precificar os projetos e mensurar o seu impacto. Mas a demora em implementar um mercado regulado, que incorpore as especificidades da nossa realidade e esteja alinhado às diretrizes internacionais é algo que preocupa, inclusive porque esse mercado é um instrumento para que o Brasil consiga atingir as metas de redução de emissões de GEE com as quais se comprometeu no Acordo de Paris.