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Para Leonel Brizola, alma do povo gaúcho fez a Legalidade
Por ocasião do centenário de Leonel de Moura Brizola, o JC republica entrevista emblemática feita por Carlos Bastos
Por ocasião do centenário de Leonel de Moura Brizola – ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, e líder histórico do trabalhismo no País, nascido em 22 de janeiro de 1922 –, o Jornal do Comércio republica entrevista emblemática feita em 2001 pelo jornalista Carlos Bastos, ex-editor de Política do JC.
Foi uma das últimas entrevistas de fôlego concedidas pelo político antes de morrer em 2004 – publicada originalmente em agosto de 2001, foi reeditada uma década depois, nas comemorações dos 50 anos da Campanha da Legalidade.
Brizola comenta o movimento de 1961, cujo sucesso se deu, segundo ele, pela rebeldia do povo gaúcho. O líder político se declarou um simples coordenador ativo da campanha e, dizendo conhecer as virtudes do comandante do III Exército, general Machado Lopes, que viveu um drama para tomar sua decisão de aderir à Legalidade, destacou que a grande figura militar da campanha foi o general Oromar Osório.
O ex-governador ainda classificou a Legalidade como um levante popular-militar único na história da América Latina e estabeleceu suas diferenças com o movimento das Diretas Já.
Brizola ainda analisou que a posição do vice-presidente João Goulart de aceitar assumir em um regime parlamentarista em 1961 teve relação com a falta de informações de Jango naqueles dias.
Jornal do Comércio - Como o senhor, que foi o líder da resistência democrática e derrubou uma decisão dos ministros militares, empossando João Goulart na presidência da República, em 1961, explica o sucesso da Campanha da Legalidade?
Leonel Brizola - Se não fora a alma do povo gaúcho, a sua formação histórica, não havia ambiente aqui para aquela resposta aos acontecimentos que se processaram lá em cima. Eu desempenhei uma função coordenadora ativa, com bom nível de eficiência, dada a improvisação em que nos encontrávamos. Mas a questão está na alma do povo gaúcho. E houve também alguma coisa lá em Goiás, pela natureza das pessoas que se envolveram no assunto naquele estado. Há uma certa identidade entre o povo gaúcho e o povo goiano, até no tamanho dos seus territórios. São as coxilhas de Goiás que também criaram este tipo de mentalidade. Então, resumindo, o que funcionou foi a alma do povo gaúcho. Quanto ao mais, entraram em função os velhos fatores da política brasileira. De parte do nosso Joao Goulart, era a desinformação, porque ele vinha da China. Os contatos que ele teve foram justamente com o outro lado, pois nós estávamos bloqueados aqui. Ele só foi ter ciência do que estava acontecendo aqui praticamente em Montevidéu. Ocorre que todos procuravam bloquear Jango, os políticos brasileiros que tinham contato com ele, e funcionavam empurrados pelos militares. Os americanos, com seus serviços diplomáticos e de inteligência. Tanto que ele veio pelo Pacífico, com toda uma estratégia para isolá-lo do foco dos acontecimentos. Quando ele chegou, já foi se deparar com um quadro de dificuldades para tomar uma posição mais independente. Tanto que eu fui um dos que achei que ninguém podia dizer se a decisão dele estava certa ou errada, tudo dependia dos acontecimentos posteriores. O que se viu depois é que tudo foi feito para fechar aquela oportunidade para o povo brasileiro. As oligarquias, os grupos dominantes foram se fechando e, ao mesmo tempo, dando cobertura à conspiração contra Joao Goulart, não tanto no parlamentarismo, quanto no presidencialismo que ele recuperou. Este é o meu ponto de vista. O que ressalta nisso tudo são as características, as virtudes, e a alma rebelde do povo gaúcho. Tanto que foi o levante de todo um povo, pois ninguém ficou contra.
JC - O episódio de 1961 está incluído em um contexto de tentativas de golpe no Brasil, que acabou culminando com 1964?
Brizola - Tudo é característica de uma época que coincide com a vitória dos americanos na guerra. A partir dali se iniciou a Guerra Fria e esta linha golpista se estabeleceu na vida brasileira, e ela não deixa de ser um detalhe da Guerra Fria. E isto também se estendeu a outros países, ainda que a Argentina tenha um processo diferente, mas não há dúvidas de que 1961 está rigorosamente enquadrado neste contexto da Guerra Fria. Um episódio que tem seus vínculos com a Guerra Fria, senão não poderia haver tantos problemas.
JC - Como o senhor interpreta hoje a participação do general Machado Lopes na Legalidade?
Brizola - Eu não desconheço as qualidades e as virtudes do general Machado Lopes. Ele deve ter vivido um verdadeiro drama para chegar àquela decisão. Tanto que ele sempre procurou amortecer, mesmo depois de sua decisão. Chegou um momento que eu próprio reclamei que o movimento de tropas estava muito lento. Agora, no meu modo de ver, a grande figura militar da Legalidade foi o general Oromar Osório, comandante de Santiago, que tinha sob seu comando 11 regimentos. Quando tomamos contato com ele (Oromar), havia este quadro de indefinição de Machado Lopes, que praticamente cortou conosco quando me disse: "Olha, governador, não posso me definir assim, eu sou soldado e fico com o Exército". Eu respondi que ficava com a Constituição, "porque eu sou govenador eleito por esta Constituição e se trata de cumpri-la, ainda mais pelo fato de o nosso vice-presidente eleito ser o presidente do nosso partido, e pessoalmente também meu cunhado e meu amigo. Como é que nós vamos ter outra decisão? Eu lamento lhe dizer, mas nós vamos esperar que os acontecimentos vão se distensionando e que tudo se resolva. Mas nós lamentavelmente temos posições diferentes". E aí começamos a agir cada um por seu lado. Ele, naquela situação com aquelas ordens chegando aqui. Aí nós pedimos ao coronel Roberto Osório, que era professor na Escola de Cadetes... O nosso professor Pádua foi quem localizou o coronel e o Assis Brasil também teve um papel nesta articulação. E arrumamos um (avião) teco-teco e mandamos o coronel para Santiago. Ele era primo do general Oromar Osório. Voltou em seguida e veio direto ao Palácio Piratini. E aí me relatou: "Olha, eu cheguei lá e o Oromar já foi me dizendo que ele estava sob rodas, pois não há duvida de que estão desencadeando um golpe, pois se o (presidente) Jânio (Quadros) renunciou, então tem que se dar posse ao Jango, que é o vice-presidente", assim de uma maneira decidida. "Minhas 11 unidades estão todas sob rodas. Eu quero que o Brizola me mande onze trens e eu preciso de 300 ou 350 caminhões, material bom, caminhão novo." E disse que estava falando com o general Peri Bevilacqua, que estava com algumas dificuldades, com alguma indecisão, "e quero que ele me garanta a passagem por Santa Maria". E daí ele se entendeu com o general Peri. Oromar também informou que os golpistas que havia nas suas unidades já tinham sido afastados, e tinham ido para a Argentina, pois pretendiam chegar ao Rio de Janeiro por aquele país. Era um certo número de oficiais. O fato é que as coisas tomaram este caminho. E o Oromar se mandou. O general Machado Lopes diz em seu livro que tudo era com sua ordem e de seu conhecimento, mas não era. Ele iniciou a marcha dele como gerenal Patton, o Oromar foi o Patton brasileiro. Lembra o episódio do general Patton na Segunda Guerra? Ele foi se encontrar com os russos lá em cima, desobecendo a ordens em contrário do Pentágono. Ele (Oromar) foi embora, até Ourinhos (SP), e onde passava a população vinha com comida para os soldados. Passo Fundo, Carazinho, Erechim, por toda parte... Por onde passava o trem, eles tinham galinha assada, leitão assado, galinha enfarofada, alimentos, refrigerantes, água mineral... Mobilizava-se a população para apoiar as tropas.
JC - O senhor fez alguma articulação com outros comandantes militares. Como eram seus contatos com coronéis e generais?
Brizola - Olha, nós tivemos um bom número de oficiais que tiveram contato conosco. Eu teria que recorrer um pouco às minhas anotações. Sabe que eu tenho sido muito resistente em recordar, rever, documentar todo este episódio. Há textos que eu nunca li. Estou procurando ler até agora, por força da circunstância. E eu perdi uma pasta quando caiu o Caravelle em Brasília, um mês após a Legalidade. Queimou tudo, conseguimos salvar uma pasta, havia outra com documentos. Não houve muita articulação com oficiais do III Exército, porque eu estava empenhado em manter uma boa relação com o general Machado Lopes, que era seu comandante. O Oromar era uma situação especial, ele era um grande chefe militar, e eu achei que não podia fazer nada sem ter um contato com ele. Mas aqui eu evitei, porque eu não queria criar mais nenhum tipo de desconfiança ou problema com o general Machado Lopes. A única providência que eu tomei foi de trazer o general Amaury Kruel, que foi ideia minha e de ninguém mais, e deixá-lo escondido na residência do Palácio Piratini. Ele ficou lá como uma espécie de suplência, pois era um general do mais alto nível na hierarquia militar, para o comando do III Exército.
JC - Como o senhor classificaria a Legalidade?
Brizola - Na América Latina eu não conheço nenhum caso similar ao episódio da Legalidade. Foi uma resistência que se transformou num levante popular-militar. Os movimentos das tropas deram estrutura, deram esqueleto para o movimento. Mas toda a base foi popular-militar.
JC - Mais de 20 anos depois haveria o movimento Diretas Já. Que relação o senhor estabelece entre os dois episódios?
Brizola - Eu acho que o movimento pelas Diretas foi mais abrangente no sentido das manifestações públicas. Mas foi mais assim como estas frentes atmosféricas que entram já esmaecidas, como uma espécie de um grande nevoeiro. Uma frente sem trovoadas, uma frente sem descargas elétricas, sem raios. E sem turbulência também, pois tudo era muito organizadinho, tudo era permitido, não é verdade, muito indefinido em matéria de objetivos. Mas abrangente, mais nacional no seu comando, e assim mesmo com um comando muito diluído, com uma presença conservadora muito forte. E nós sabemos que na Legalidade só tivemos que depois juntar os papéis, limpar as ruas, e não ia ficando nada, pois os conservadores foram tomando conta de tudo.
JC - O senhor retornou do exílio em 1979. Nesses anos desde que voltou, que episódio entende que mereceria um novo movimento da Legalidade?
Brizola - Este programa de entrega do País, das suas estruturas básicas, esta leiloagem que fizeram, só para este grupo se manter no poder. Isto justificaria uma nova Legalidade. Tanto que o prestígio do governador Itamar (Franco, que comandava Minas Gerais em 2001) demonstra isso. Na hora em que ele afirmou que colocaria as forças públicas de Minas para defender as barragens e as usinas, cresceu no conceito público. E mostrou que o povo brasileiro não quer ceder terreno dos interesses nacionais. Não penso como aqueles que entendem que a Legalidade foi um movimento apenas legalista. Ela tinha conteúdo, o governador (Brizola) que liderava tinha posição clara em relação aos problemas nacionais. Já tinha feito a expropriação da Bond&Share. Então, essa política do (presidente) Fernando Henrique Cardoso (PSDB) de entregar o País ao capital estrangeiro não está sendo aceita pelo brasileiro. E temos um exemplo típico no caso da Varig: uma empresa que era o nosso orgulho. Insensatamente, o (ex-presidente Fernando) Collor abriu para as gigantes americanas, habilitou empresas que não estavam em condições como a Vasp, quando outros países com serviços de transporte aéreo sólido mantêm uma empresa de natureza estatal com a bandeira do país. Exemplos: Lufthansa, Air France, Suissair, a JAL - japonesa -, a SAS, da Escandinávia. Fomos buscar o exemplo dos americanos que faliram com a Panamerican. Esta política o Itamar soube enfrentar ao dizer que ia com a PM para as montanhas. E FHC viu que não podia contar com o Exército para ir lá, matar mineiros para ele poder vender as águas. Viu e recuou. Este é o episódio que merecia uma reação deste tipo. Na hora de entregar a Vale do Rio Doce, as nossas usinas, nossas redes de distribuição... Estão escorchando o povo brasileiro, não investem. Entregaram as telecomunicações do jeito que entregaram, a título de privatizar, estão entregando nossas riquezas aos interesses internacionais.
PERFIL
Leonel de Moura Brizola nasceu em Carazinho (RS) em 1922. Na adolescência, veio a Porto Alegre e estudou na Escola Técnica Agrícola (ETA) de Viamão. Teve diversos empregos, desde ascensorista até funcionário da Divisão de Praças e Jardins da prefeitura da Capital. Formou-se em Engenharia pela Ufrgs. Ainda estudante, ingressou na Ala Moça do antigo PTB e foi eleito deputado estadual em 1947. No início dos anos 1950, atuou como secretário estadual de Obras e, em 1955, foi eleito prefeito de Porto Alegre. Na sequência, governou o Rio Grande do Sul, em um mandato marcado por investimentos em educação, pela expropriação de companhias estrangeiras e pela liderança da Campanha da Legalidade, em 1961. No ano seguinte, elegeu-se deputado pelo Rio de Janeiro, mas logo em 1964 teve que se exilar no Uruguai. Foi um dos líderes da resistência à ditadura militar e da campanha Diretas Já. Na redemocratização, fundou o PDT, governou o Rio de Janeiro por duas vezes e candidatou-se à presidência da República em 1989 e em 1994, sem ter sido eleito. Morreu em 2004, aos 82 anos, no Rio de Janeiro.