Agapan está ativa há 50 anos no ambientalismo, diz Lacerda

Em 1971, José Lutzenberger e as pessoas que fundaram a Agapan foram visionários

Por Marcus Meneghetti

Fotos do presidente da Agapan, Heverton Lacerda.
Ao assumir a presidência da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) no ano em que a entidade completa 50 anos, o jornalista Heverton Lacerda avalia que um dos méritos da Agapan é continuar ativa com trabalho 100% voluntário. Para ele, a associação trouxe uma nova concepção ao movimento ambientalista: além do viés conservacionista, passou a cobrar das autoridades que o meio ambiente fosse incluído na pauta política. O tema foi incorporado ao debate público, e os governos passaram a incluir na administração as secretarias do meio ambiente.
Apesar de comemorar o aniversário da Agapan, Lacerda também demonstra preocupação com a política ambiental do governo federal e estadual. O ambientalista classificou como "falacioso" o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na assembleia-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada na semana passada. Na avaliação do presidente da Agapan, o presidente distorceu dados para parecer que o desmatamento na Amazônia não está crescendo.
No âmbito estadual, Lacerda criticou o projeto do governo Eduardo Leite (PSDB), aprovado na Assembleia Legislativa, que liberou o uso de mais agrotóxicos no Rio Grande do Sul. O texto permitiu a aplicação de substâncias que não são usadas nos países de fabricação. Ele também disse que a Agapan vê com desconfiança a intenção do governo de conceder à iniciativa privada os parques do Delta do Jacuí, Tainhas, Turvo, Jardim Botânico e Caracol.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o presidente da Agapan também avaliou que a sociedade está mais preocupada com o meio ambiente, o que pode se refletir nas eleições de 2022. Ele também comentou as maiores ameaças para o bioma Pampa no Rio Grande do Sul.
Jornal do Comércio - A Agapan fez 50 anos. Qual o significado à causa ambiental do RS?
Heverton Lacerda - A Agapan foi a primeira entidade com a concepção de ambientalismo não apenas como uma atividade conservacionista, mas também como atuação junto às políticas públicas, reivindicando uma legislação mais protetiva. O resultado disso é que, até pouco tempo, o Rio Grande do Sul tinha uma legislação bastante avançada no quesito ambiental. Em 1971, José Lutzenberger e as pessoas que fundaram a Agapan foram visionários, ao perceber que, mesmo naquele momento, há 50 anos, era necessário estruturar uma luta ambiental no País. Afinal, os anos que viriam pela frente seriam muito preocupantes e até aterrorizantes, se nada fosse feito. Se, mesmo com a conscientização ambiental promovida por entidades como a Agapan, chegamos hoje a uma crise climática extremamente preocupante, imagina se não tivéssemos feito nada. O legado da Agapan foi apresentar uma nova forma de ser ambientalista. Além disso, a entidade tem mérito de continuar ativa ao longo desses 50 anos, sempre atuando através de trabalho 100% voluntário.
JC - Poucos movimentos sociais têm essa longevidade, ainda mais com trabalho totalmente voluntário. Como fazer para as pessoas se manterem mobilizadas?
Lacerda - Muitas pessoas que percebem a emergência climática conseguem dedicar uma parte do tempo a luta ambiental, mais do que somente apoiar financeiramente, como algumas pessoas fazem, o que também é válido. Existem muitas pessoas que fazem doações maiores, porque, primeiro, confiam na seriedade e na história que a Agapan construiu ao longo do tempo; e, segundo, porque percebem que é importante dedicarem partes das suas vidas para defender o planeta. No voluntariado da Agapan, algumas pessoas ficam alguns anos e depois entram outros. Estamos sempre recebendo novos associados na Agapan. Precisamos deixar o planeta saudável para as gerações futuras. Nossa motivação é basicamente essa.
JC - Como avalia a participação do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU?
Lacerda - Na verdade, ele debochou da cara dos brasileiros e envergonhou a nossa população. Ao distorcer dados para parecer que o Brasil está diminuindo o desmatamento, Bolsonaro foi, no mínimo, falacioso. A verdade é que o desmatamento vem aumentando nos últimos anos, na série histórica (que leva em conta o desmatamento acumulado ao longo de cada ano). Comparar agosto de 2021 com agosto de 2020 não reflete a realidade do desmatamento. O aumento foi tão grande nos agostos dos anos anteriores (2018 e 2019) que, mesmo o desmatamento sendo um pouco menor nesse ano - por diversos fatores, inclusive, pela pressão dos ambientalistas - ainda assim foi um dos maiores da história. O presidente cede à pressão dos ruralistas, que querem legalizar a grilagem de terras públicas e ampliar as fronteiras do desmatamento. Bolsonaro age atendendo esses interesses. Mas, na ONU, discursa de outra forma, para dar a impressão que se importa com o meio ambiente. Não é o que se vê.
JC - E o que se vê?
Lacerda - O que vemos é o desmantelamento dos órgãos de fiscalização e a diminuição dos recursos destinados ao meio ambiente. Há recursos empenhados para essa área. Mas Bolsonaro não executa os recursos para a proteção ambiental. Além disso, insisto, um dos maiores problemas do Bolsonaro é a sua base ruralista, da qual ele precisa para manter o seu governo. Se não fosse por essa base, já estaria respondendo a um processo de impeachment. Ele faz lobby para ampliar os lucros, apesar do aumento da pobreza, da fome e do desmatamento. O objetivo é exportar commodities extremamente lucrativos para os chefões do agronegócio.
JC - O que achou do anúncio de que o Brasil vai antecipar a meta de neutralidade econômica, de 2060 para 2050?
Lacerda - Isso é só discurso, porque não tem nada registrado em documentos.
JC - Está no Congresso um projeto de lei, o chamado PL da Grilagem, que busca conceder título de propriedade a grileiros que se apropriaram de áreas públicas, principalmente na Amazônia Legal. Qual a expectativa do movimento ambientalista?
Lacerda - A nossa esperança é que ele não passe agora, que ele demore um pouco mais. A atual bancada (no Congresso) e o atual governo federal estão, como disse o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, aproveitando a pandemia para passar a boiada. A pandemia modificou a rotina da população, que está cuidando de outras questões, e não está conseguindo atuar junto aos políticos, fazendo o trabalho de ambientalismo que se faz normalmente. Se eles (da base governista) conseguirem adiantar o processo (de tramitação do PL da Grilagem) nesse governo, passa, como está passando muita coisa que precisará ser revertida posteriormente. Por outro lado, se conseguirmos mudar o governo e a composição do Legislativo federal, poderemos eleger um governo e Parlamento mais sensíveis às pautas ambientais.
JC - Acredita que os eleitores vão estar mais sensíveis à pauta ambiental nas eleições de 2022?
Lacerda - Muitos eleitores já estão mais conscientes. Agora, se vamos conseguir eleger mandatários com essa visão, aí é outro ponto. De qualquer forma, acreditamos que qualquer governo fora da ultradireita tem condições de fazer uma gestão ambiental melhor.
JC - O presidente já disse que o País poderia desmatar mais, porque temos uma área preservada superior à da Europa, onde os países desmataram proporcionalmente mais do que o Brasil.
Lacerda - É o mais equivocado e mal-intencionado que pode existir. O Brasil ainda possui áreas preservadas, por ser um país muito grande, por ter baixa industrialização e, principalmente, por ter uma cultura extremamente colonialista, focada na exportação de commodities. Continuamos produzindo para exportar. O Brasil continua sendo colônia, na visão do agronegócio, que quer áreas cada vez maiores para produzir commodities para exportação. Se a Europa, que tem países muito menores, destruiu seus ambientes naturais, isso não significa que precisamos seguir modelos atrasados, que podemos destruir também. Os ambientes naturais são a principal moeda para o mundo atualmente, e com possibilidade de produção de alimentos orgânicos. Precisamos copiar o que for bom; o que for ruim, não. Preservar, valorizar e saber trabalhar esses ambientes é um ganho gigantesco para nós. Então, essa fala é muito equivocada. O que buscam é permissão para desmatar mais.
JC - No RS, foi aprovada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que viabiliza a concessão de cinco parques estaduais: Delta do Jacuí, Tainhas, Turvo, Jardim Botânico e Caracol. O acha disso?
Lacerda - Enxergamos isso com um pé atrás. A Agapan, enquanto entidade, não é favorável à entrega dos nossos recursos naturais, das nossas áreas de proteção ao ambiente natural, à iniciativa privada. O Estado está abrindo mão do seu papel de cuidar do nosso patrimônio ambiental, natural. Está abrindo mão do seu papel de proteger enquanto tutor do meio ambiente.
JC - O secretário estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Luiz Henrique Viana (PSDB), sustenta que o governo não teria verba para a infraestrutura mínima para a visitação, o que poderia ser feito por empresas privadas.
Lacerda - Com essa afirmação, o secretário mostra uma coerência com a política feita pelo governo e a Assembleia Legislativa, de diminuição do Estado, menos servidores públicos e o sucateamento das entidades. Com a precarização de entidades - como a Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, que deixou de ser um órgão autônomo para dividir espaço com a Secretaria de Infraestrutura - o Estado certamente não tem mais condições de cuidar dos seus próprios bens, dos seus recursos naturais. Aí ele se vê obrigado a entregar.
JC - Uma das principais causas da Agapan, nos anos 1970, foi a conscientização sobre os perigos dos agrotóxicos. O próprio Lutzenberger trouxe essa pauta...
Lacerda - Sim, a questão dos agrotóxicos é um ponto importantíssimo. Lutzenberger trabalhou em uma empresa (que produzia essas substâncias), que começou a aplicar os venenos produzidos para a guerra na área da agricultura e produção de alimentos. Mas, além dos agrotóxicos, a entidade trabalhou muito para colocar a própria Amazônia na pauta mundial, como um órgão ambiental importante para a qualidade do ar e do clima do planeta. Então, também atribuo muito a valorização da Amazônia à luta da Agapan.
JC - Neste ano, a Assembleia autorizou o uso de agrotóxicos que não são usados nos países de origem. Um dos argumentos de entidades do agronegócio foi que essas substâncias não seriam proibidas na Europa. Elas simplesmente não seriam regulamentadas lá, porque são feitas para culturas que não são plantadas na Europa, mas sim em países de clima tropical, como o Brasil. Como avalia esse argumento?
Lacerda - Isso é um jogo de palavras. É mais um eufemismo, como quando eles tentam usar a palavra "defensivo agrícola" em vez de "agrotóxico", para parecer que não há nenhum risco no uso dessas substâncias. O princípio ativo dos agrotóxicos é usado para montar diferentes fórmulas. É claro que, quando as empresas vão montar a fórmula em um país com mais frio e chuva, ela é diferente da fórmula utilizada em um país localizado nos trópicos, como o Brasil. O projeto (aprovado na Assembleia) liberou o uso de agrotóxicos com princípios ativos cancerígenos, por exemplo.
JC - Como está a situação do Pampa, um dos biomas mais ameaçados do Brasil?
Lacerda - O bioma Pampa não está protegido, enquanto a pecuária estiver sendo substituída por áreas com lavouras de soja e plantação de eucaliptos, além da megamineração. Na região de Bagé, por exemplo, há muitas fazendas que produziam gado e agora se transformaram em plantação de eucaliptos. É preocupante, porque muitos cientistas alertam que o eucalipto pode causar a desertificação do solo, porque é uma planta ácida que consome muita água. Quanto à monocultura da soja, ainda mais agora com a aplicação de muito veneno, a solução seria a priorização das produções agroecológicas. No caso do Pampa, a pecuária ecológica seria uma alternativa. Outra ameaça é a mineração, que tem avançado sobre o RS com projetos como o da Mina Guaíba. Há ainda outros projetos, que estão até mais avançados, cuja instalação está prevista em espaços preservados. Em Camaquã, a região das Palmas corre o risco de se transformar em um local degradado pela mineração. E Leite, embora faça parte do grupo de governadores pelo clima, tem apoiado a mineração. Inclusive, há a pretensão de aprovar o projeto do Polo Carboquímico no RS. Tudo isso são ameaças ao Pampa.

Perfil

Heverton Lacerda nasceu em Rio Pardo, em 14 de janeiro de 1971 - cerca de três meses antes de a Agapan ser fundada por José Lutzenberger e outros ambientalistas. Lacerda se alfabetizou na sua cidade natal, onde estudou até o quinto ano. Depois, mudou-se com a família para Bagé, terra natal do pai. Na infância, lembra que a família gostava de acampar e fazer atividades junto à natureza. Para cursar o Ensino Superior, veio para Porto Alegre. Estudou Ciências Sociais na Pucrs, mas não chegou a concluir. Matriculou-se, então, na faculdade de Jornalismo na Unisinos. Formou-se em 2002. Decidiu participar mais ativamente do movimento ambientalista em 2001, quando sua filha nasceu. Ele explica que, ao perceber que a crise climática afetaria as gerações futuras, sentiu a necessidade de fazer algo mais efetivo. De 2004 a 2008, teve um portal de jornalismo ambiental, chamado Observatório Ambiental. Em 2008, a convite de uma amiga que compunha a direção da Agapan, começou a frequentar as reuniões da entidade. Em 2013, entrou para a organização efetivamente, assumindo o cargo de secretário na direção.