Francês Alain Bertaud diz que urbanismo e economia estão ligados

Renomado internacionalmente, o francês Alain Bertaud avalia que o urbanismo e a economia deveriam estar sempre ligados

Por Bruna Suptitz

Urbanista Alain Bertaud
Renomado internacionalmente, o urbanista francês Alain Bertaud atua há seis décadas com desenvolvimento urbano, tendo passado pelo Banco Mundial e por diversos países. Pesquisador sênior da Universidade de Nova York e professor do MBA Cidades Responsivas (OSPA/ELA/IMED), avalia que o urbanismo e a economia deveriam estar sempre ligados.
Bertaud concedeu entrevista à coluna Pensar a cidade, do Jornal do Comércio, em que explica o conceito, destacando que as pessoas escolhem uma cidade para viver, fundamentalmente, por questões relacionadas à economia, como um posto de trabalho.
"Nossa vida nas cidades não é somente trabalhar. É também encontrar pessoas, praticar esportes, correr, o que for. Mas essa liberdade de fazer todas as coisas que gostamos, é baseada no mercado de trabalho", explica.
Jornal do Comércio - Como a economia e o urbanismo se relacionam em sua avaliação?
Alain Bertaud - Os dois são intimamente ligados, queiramos ou não. Se as pessoas vão para uma cidade, não é porque é bonita, prazerosa ou algo assim. É porque podem encontrar um emprego lá. É baseado na economia. Não significa que somente o mercado de trabalho ou a economia são importantes, mas são uma fundação na qual cada coisa que gostamos nas cidades é construída: restaurante, bar, museu, estádio, casa de shows... O que faz a vida na cidade prazerosa e criativa. Mas, no dia em que o mercado de trabalho colapsa, a economia colapsa e cada coisa que gostamos na cidade desaparece. E, se uma cidade é grande, requer muita infraestrutura.
JC - Como?
Bertaud - Se você está em uma cidade pequena e tem um poço e ele seca, pode provavelmente conseguir água na vizinhança. Mas em uma cidade de 5 milhões de habitantes, se a vizinhança não tem água por 10 dias, é inacreditável. Ou se a eletricidade não funciona. Então, quanto maior a cidade, mais cara é a infraestrutura e é vital mantê-la. E se a economia da cidade não é capaz de pagar por essa infraestrutura, então, a qualidade de vida dessa grande cidade desaparece rapidamente.
JC - O título do seu livro é "Como o mercado molda as cidades", muito relacionado à economia. Poderia dar um exemplo?
Bertaud - A primeira coisa é que o mercado imobiliário faz parte da economia. Mas o mais importante é o mercado de trabalho. Não é tanto que todos estejam empregados, mas que pessoas possam selecionar seus empregos e trocá-los. Uma das principais vantagens das grandes cidades é que você pode trocar de trabalho para algo que, de repente, você descobre que tem talento ou interesse, alguma coisa diferente do que você vem fazendo. Do mesmo modo para uma empresa. Por exemplo, no varejo, quem vende camisas e se dá conta que precisa vender ao público online, não é mais suficiente ter uma loja (física). Então, contrata alguém capacitado para montar um website. É completamente diferente o tipo de habilidade, e somente na cidade grande encontra isso rapidamente. Por isso que o mercado de trabalho é tão importante. Novamente, não quero ter a pretensão de dizer que essa é a única coisa que importa. Nossa vida nas cidades não é somente trabalhar. É também encontrar pessoas, praticar esportes, correr, o que for. Mas essa liberdade de fazer todas as coisas que gostamos é baseada no mercado de trabalho. Por isso é importante que o planejador se concentre, certificando-se de que funcione.
JC - Como a pandemia de Covid-19 mudou este cenário? Agora não é somente por trabalho que as pessoas ficam nas cidades grandes...
Bertaud - Planejadores não podem planejar avanços. Escuto o tempo todo "a cidade pós-Covid é assim que deve ser...". A gente não sabe. A cidade é feita de pessoas e elas manifestam sua intenção mudando-se, mas também vivendo na cidade. A decisão de viver num lugar mais caro no Centro ou no subúrbio e fazer o trajeto (entre a casa e o trabalho), ou trabalhar online, é uma decisão do indivíduo. Ainda não sabemos a implicação no longo prazo. No curto prazo sim, grandes firmas ou prédios de escritórios estão fechando por causa da Covid. Mas o que será a implicação mais longa não conhecemos. O que vai moldar a cidade depois da Covid, a decisão dos indivíduos...
JC - O senhor diz no livro ser contrário a regras que afetem o consumo. Quais são as regras aceitáveis no planejamento urbano?
Bertaud - Numa cidade grande, é preciso conectar os lotes privados. Isso pode ser feito somente de cima para baixo. O mercado não constroi rede de esgoto. Pode ter a rede operada por uma empresa privada, mas para projetar o sistema de esgoto, de vias, de metrô, de transporte... precisa engenharia e precisa esse "de cima para baixo". Deve ser feito para servir o movimento espontâneo das pessoas - se os jovens querem viver em um pequeno apartamento no Centro, e os ricos em grandes casas no subúrbio, a infraestrutura deve servir isso. Não deve ser o oposto, dizer "nós projetamos aqui uma grande rede de esgoto para proporcionar que a densidade seja alta aqui, porque a rede requer alta densidade ou o metrô requer alta densidade". A infraestrutura deve servir de estrutura para as pessoas conforme elas se desenvolvem. Incluindo, a propósito, o pós-Covid. Devemos ter uma distribuição populacional que será diferente e isso vai significar um ajuste na infraestrutura.
JC - Ajustar a infraestrutura à demanda que é criada...
Bertaud - Algumas pessoas dizem que, se temos tubulação de água na rua e se mudarmos a densidade, a tubulação não será grande o suficiente. Isso é um absurdo, o imóvel é muito mais valioso do que a tubulação. Adicionar um novo tubo tem um custo, mas comparado com o imóvel que se permite desenvolver, não é nada. De repente, dobra o preço de colocar água no Centro, e pensam que não devem fazer isso porque tem custo. Se olhar somente para o custo, é caro colocar um tubo a mais, mas se pode dobrar (o número de andares), cria bens que provavelmente valorizam 100 vezes o tubo colocado lá. Essa troca é importante, por isso a economia é tão importante.
JC - Essa é a parte que o governo deve fazer?
Bertaud - Certamente. Porque a grande infraestrutura deve ser desenvolvida pelo governo. Mas, novamente, o governo tem que fazer isso para servir o que existe, o movimento das pessoas. As pessoas manifestam sua intenção mudando-se, cada um faz uma escolha diferente. Não podemos planejar isso, devemos apenas observar. É por isso que, no pós-Covid, teremos que ter dados a cada mês do preço do mercado imobiliário e onde os jovens estão se mudando, inclusive se estão se mudando para fora da cidade.
JC - Porto Alegre está revisando o seu Plano Diretor. Um dos temas é permitir maior densidade e altura no Centro. É um bom modo de manter as pessoas na cidade no pós-Covid?
Bertaud - Quando o prefeito diz "devemos ter mais densidade", não significa que vai acontecer, a não ser que tenha demanda. Não tem nada errado com isso. Se há demanda por mais "área construída" no Centro, penso que sim. A única coisa que o prefeito deve cuidar é que, se isso acontecer, vai precisar de um "upgrade" de infraestrutura. E uma coisa muito negligenciada é o replanejamento do espaço público para acomodar mais densidade. Se o prédio tiver mais densidade, o dobro ou o triplo, precisa acomodar as pessoas na rua, e isso o mercado não faz. Pode ter muitos pedestres, o mercado não vai aumentar a calçada. O Estado deve projetar as ruas para acomodar a mudança de densidade. E isso muitas vezes é negligenciado.
JC - Aqui no Brasil, uma parcela das cidades não é planejada formalmente... Se o mercado molda as cidades e trabalha na área regulada, pode prever espaço para as pessoas pobres?
Bertaud - O problema de assentamentos informais é que se tornam grandes e não têm infraestrutura para se conectar com o resto da cidade. Essas pessoas vão sofrer com transporte ruim, vão participar apenas em uma pequena parte do mercado de trabalho. E, talvez, o melhor emprego esteja no Centro. Mas não conseguem alcançar ou levam duas horas para chegar. O papel do governo, quando a cidade se expande, é prover um grau de infraestrutura. Daí pode permitir à população pobre decidir onde será a moradia. Se você é pobre, vive em 40 metros quadrados, e tiver água limpa, lixo recolhido e acesso a transporte para chegar a um bom emprego, o material da casa, metal, madeira, bambu, não importa tanto. É melhor que o governo gaste dinheiro em água potável e educação, é claro, e ter essa casa numa área acessível.
JC - Como a cidade pode proporcionar isso?
Bertaud - Se você está procurando um emprego a cinco minutos a pé da sua casa, é fantástico. Mas muito poucos têm essa oportunidade, porque não costumamos viver sozinhos, temos parceiros, e eles têm seus trabalhos. E você deve ser apto a trocar de emprego. Então, se a única (consideração) é estar a 10 ou 15 minutos do seu trabalho, isso significa que você nunca vai trocar de emprego ou você terá que trocar de apartamento ao mesmo tempo em que muda de emprego, o que costuma ser caro e difícil. Ou, se tem um parceiro cujo trabalho fica a 15 minutos, mas o seu emprego fica a 40 minutos, talvez você tenha que trocar de parceiro (risos). Ou seja, não tem solução, (a pessoa) deve poder se mover pela cidade. Se uma cidade é muito densa, na área adensada precisa de transporte público, táxi, não pode ter somente pedestres em todo lugar. O importante não é a distância, é o custo e a velocidade de locomoção.
JC - Em Porto Alegre, especialistas dizem que estamos próximos de um colapso do sistema de transporte público...
Bertaud - O problema, com frequência, é que a cidade detém o transporte público, e, em vez de olharem qual é o melhor modo de transportar as pessoas do lugar A para o lugar B, dizem "como podemos fazer o transporte que já existe ser financeiramente viável?". Tentam excluir outros meios, possibilidades. Normalmente, o jeito mais eficiente de ter ônibus rápidos e acessar a estação de ônibus é usando táxis coletivos (como é em Porto Alegre a lotação). E as cidades não fazem isso. Normalmente, se pega o táxi coletivo para ir a algum lugar ou se pega o ônibus, mas não ambos, porque não querem combiná-los. Quando, na verdade, a mobilidade é o que importa. Não se pode selecionar um modo de transporte e dizer "este é o melhor". Na cidade do futuro, usaremos dois ou três diferentes modos de transporte na mesma viagem, coordenados.
JC - Como discutir mobilidade e o Plano Diretor?
Bertaud - O mercado é bom em alocar espaços privados, mas os espaços públicos devem ser planejados ou replanejados. O governo deve prover mobilidade, não necessariamente operar o sistema. O sistema de ônibus pode ser parte da mobilidade. Não sou entusiasta de masterplans (planos diretores). Como planejador, é claro que precisa projetar como prover água, eletricidade, escola. Mas a projeção não pode se tornar regulamento. Olhe para firmas de sucesso, como Apple ou Google. Eles não dizem "em 10 anos vamos vender tal modelo de telefone". Eles fazem o telefone e ajustam cada vez ao que as pessoas querem, a cada ano. O problema é que se faz um grande esforço um ou dois anos fazendo o masterplan, aprova, o que é demorado, e então executa ele por 10 anos, quando na verdade deveria construir uma capacidade de analisar dados enquanto estão mudando, imediatamente: analisar sistema de tráfego, por exemplo. É preciso ajustar a cada momento.
JC - O que deve ser monitorado?
Bertaud - Movimento das pessoas em ônibus, carros, motocicletas e bicicletas, isso a cada dois ou três meses. Também preços de aluguel de apartamentos, casas de diferentes tipos, renda das pessoas e distribuição por renda. Isso deve ser monitorado constantemente. As coisas do dia a dia devem ser ajustadas a cada seis meses. Assim como o Google e a Amazon fazem mais dinheiro porque monitoram os clientes. Com as cidades deve ser o mesmo, saber o que as pessoas querem e responder ao que elas querem.

Perfil

Alain Bertaud tem 82 anos e nasceu em Marselha, na França. Frequentou a Escola Nacional Superior de Belas Artes em Paris de 1958 a 1967, quando graduou-se como arquiteto. Atuou em países como Índia, Argélia, Tailândia, El Salvador, Iêmen, EUA e outros. Foi urbanista-chefe do Banco Mundial entre 1980 e 1999. Atualmente é pesquisador sênior no Instituto Marron de Gestão Urbana da Universidade de Nova York (NYU). É um dos professores do MBA Cidades Responsivas, curso online desenvolvido a partir de Porto Alegre pelo grupo de desenvolvimento imobiliário OSPA e Escola Livre de Arquitetura (ELA), em parceria com IMED. É autor de Order without Design - How Markets Shape Cities (The MIT Press, 2018), ainda sem tradução para o Português.