Até setembro de 2020, a sala da presidência da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul exibia o retrato a óleo de três ex-governantes gaúchos. À esquerda de uma das paredes, havia a pintura do ex-presidente da Província do Rio Grande do Sul (cargo equivalente a governador) Gaspar Silveira Martins (1835-1901) – um dos principais líderes federalistas do Estado. No lado direito da mesma parede, ficava a figura do ex-governador José Antônio Flores da Cunha (1880-1959) – um dos seguidores da política castilhista. E, no meio dos dois, em local de destaque, pairava a figura do ex-governador e ex-presidente da República Getúlio Vargas – o político que conciliou federalistas e castilhistas, mesmo depois de eles terem se envolvido em conflitos armados na Revolução Federalista (de 1893 a 1895) e na Revolução de 1923. Aliás, a conciliação dessas forças políticas criou as condições favoráveis à Revolução de 1930, golpe que levou Getúlio à presidência da República pela primeira vez.

Quadro do ex-presidente estava na sala da presidência do Parlamento desde 2006. Foto Luiza Prado/JC
Em setembro de 2020, os retratos de Gaspar Martins, Getúlio Vargas e Flores da Cunha – que estavam na sala da presidência desde 2006, pelo menos – foram substituídos pela série de pinturas A Saga Farroupilha. O conjunto de 14 telas, concebidas pelo ex-senador Guido Mondin (Arena, 1912-2000), explora o cotidiano da Revolução Farroupilha (1835-1845). Inicialmente, a revolta armada foi motivada pela alta carga tributária cobrada pelo Império sobre a produção de charque na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul; ao longo do conflito, no entanto, o movimento ganhou um caráter separatista.
Ao contrário da pose formal e estática dos retratos dos governantes gaúchos, as pinturas de Mondin apresentam imagens dinâmicas: retratam cenas de batalha, cavalgadas e outros episódios da guerra que contribuiu de forma decisiva para a formação da identidade do povo gaúcho.
Um cidadão atento ao cenário político dos últimos anos poderia se perguntar: a retirada dos retratos da sala da presidência indicaria a perda de influência de figuras, como a de Getúlio Vargas?
A questão não seria absurda, visto que os governos federal (desde 2016) e estadual (desde 2015) têm seguido tendências mais liberais. Essa guinada tem levado à revisão do legado deixado por Getúlio - que, como o maior expoente do trabalhismo no Brasil, sempre esteve no polo oposto ao liberalismo, com a defesa de um Estado forte e indutor do desenvolvimento, além de ter criado normas de proteção ao trabalhador, legislação revista nos últimos.
Retratos foram substituídos pela série de pinturas 'A Saga Farroupilha'. Foto Luiza Prado/JC
Por exemplo, a reforma trabalhista, aprovada em 2017, reformulou um dos maiores feitos do ex-presidente Getúlio Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Mais recentemente, o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou que pretende vender ativos da Petrobras, a principal estatal criada no período getulista. No Rio Grande do Sul, as gestões de José Ivo Sartori (MDB, 2015-2018) e de Eduardo Leite (PSDB) também tem tomado medidas de desestatização de órgãos públicos.
Embora a questão sobre a relevância de Vargas seja plausível, a explicação para a substituição dos quadros é muito mais simples. O presidente da Assembleia, Ernani Polo (PP) – que optou pela mudança –, explicou que pediu para a arquiteta especialista em interiores, Aclaene de Mello, pendurar A Saga Farroupilha na sala da presidência para dar mais visibilidade à obra de Guido Mondin.
De fato, a série de óleo sobre telas estava exposta em um corredor menos movimentado, que liga a sala da presidência ao vestíbulo nobre do Parlamento gaúcho.
“A série da Saga Farroupilha estava em um local de pouca visibilidade. A ideia foi colocar na sala da presidência, onde há um espaço amplo, onde coube toda a série. Precisávamos de um local onde coubessem todas as obras, porque, como é um conjunto, não poderíamos colocar só algumas. E a repercussão tem sido boa. As obras recebem elogios frequentes dos visitantes da Casa”, contou.
Quanto aos retratos que estavam na sala da presidência, Polo relatou que foram realocados para a Sala dos Espelhos, que nada mais é que a antessala do gabinete do presidente. É lá que, desde setembro, estão os retratos de Gaspar Silveira Martins, pintado por João Fahrion; de Getúlio Vargas, por Ado Malagoli; e de Flores da Cunha, por V. Brasil.
“Os retratos continuam com destaque, porque todos que têm uma reunião com o presidente da Assembleia passam pela Sala dos Espelhos, onde terão a chance de apreciar os quadros. Só não colocamos A Saga Farroupilha lá, porque não tinha espaço”, disse Polo.
Embora o partido de Polo esteja muito mais próximo do ideário liberal do que da política getulista, o presidente do Legislativo garantiu que a mudança não tem nenhuma relação com os políticos retratados nos quadros.
Nesta quarta-feira (3), Ernani Polo transmite a presidência da Casa para o deputado estadual Gabriel Souza (MDB). “Ainda não tomei a decisão se retomarei a configuração anterior ou se manterei a configuração do presidente Ernani Polo”, adiantou Souza.
Entretanto, fez questão de enfatizar: “Gosto muito dos quadros do Guido Mondin e da história Farroupilha. Portanto, se não ali (na sala da presidência), gostaria de manter a série de pinturas em um local de destaque na Casa, porque conta bastante da história fundante do Rio Grande do Sul. As cores da bandeira, a data da Semana Farroupilha, os símbolos do Estado vêm desse episódio. E A Saga Farroupilha realmente estava com pouca visibilidade”.
Assim como Polo, Gabriel Souza afirmou que não tem nada contra aos três ex-governadores. Com bom humor, comentou: “não tenho nada contra o Gaspar Martins, o Getúlio Vargas e o Flores da Cunha. Pelo menos, nada que me faça mandar os quadros para longe de mim”.