JC - Recentemente, deu-se um passo mais sólido em relação ao acordo comercial do Mercosul com a União Europeia (UE). Como avalia?
Silva - O acordo com a UE tem um problema. Na verdade, não temos os dados do que foi acordado. Ele ainda está na forma de segredo, o que é muito estranho. Aliás, essa é uma das tendências do governo Bolsonaro. Eles anunciam algo, mas não divulgam seus detalhes. O acordo do Mercosul com a UE está parado há mais 20 anos. Basicamente, emperra na questão de concessões de lado a lado. A UE não abria mão da questão da política agrícola comum. O Brasil também dizia que não abriria mais o seu mercado industrial se não tivesse compensações pelo menos na agricultura. É um jogo muito intrincado. Os europeus fazem a negociação do valor de cotas, quantidade de produto e também tarifas alfandegárias, mas eles jogam muito com questões extracomerciais. Questões fitossanitárias, segurança de produtos, também ambientais, questões trabalhistas, de direitos humanos. Eles anunciaram um acordo que ainda não foi referendado por todas as partes. Minha hipótese é que os europeus avançaram nisso para barrar o governo Bolsonaro na questão do meio ambiente e dos direitos humanos. E aí estaria a grande contradição interna. Não tenho muita ilusão no acordo Mercosul-UE. Tudo que estava amarrado, não se desamarraria em tão pouco tempo. A não ser que uma nova condição tenha sido colocada que a gente não sabe.
JC - Seria difícil o Brasil cumprir condições extraeconômicas de meio ambiente e direitos humanos, levando em conta as recentes declarações do presidente?
Silva - Esse acordo amarrava também que o Brasil continuaria participando do Acordo de Paris e dos regimes internacionais de meio ambiente. São regras, valores, instituições, acordos amplos, e que o Brasil continuaria participando. O Ocidente é isso: é direitos humanos, é direito das mulheres, ambiental. E se está caminhando para a barbárie, jogando tudo isso na lata do lixo. A grande questão é que provavelmente tenha cláusulas para que o Brasil continue no Acordo de Paris. É uma das meias voltas que o governo deu. Anunciou a saída e voltou para o Acordo de Paris. Vamos começar a ter problemas em vários fóruns multilaterais em função dessas posições mais conservadoras que ele (Bolsonaro) adota.
JC - O que opina sobre a indicação de Eduardo Bolsonaro à embaixada brasileira em Washington?
Silva - Eduardo Bolsonaro não tem serenidade nenhuma para ocupar o posto de embaixador do Brasil nos EUA. Não tem nenhuma qualificação que o credencie para o posto. Não necessariamente esse posto precisa ser ocupado por um diplomata de carreira. Os políticos ocupavam esses cargos há 20, 30, 40 anos. Hoje em dia, o nível de tecnicalidade, de sofisticação, é muito mais alto.
JC - Como o senhor supõe que seria Eduardo Bolsonaro no cargo de embaixador?
Silva - Ele está imaginando que vai conversar com a família (do presidente Donald) Trump toda semana, mas é somente o filho de um presidente de um país latino-americano com interesses limitados dos EUA. Naturalmente, ele delegaria para os outros as responsabilidades dele. Não vai conseguir cumprir, pois é um trabalho muito técnico em relação, por exemplo, ao comércio exterior. Existem tensões e contradições de todos os lados. Então os EUA inventam uma desculpa para não importar laranja. Estoura aqui, porque a laranja vai ficar velha. O embaixador tem que abrir os contatos, buscar desembaraçar o negócio. Isso acontece quase que semanalmente. Ele também tem que estar cuidando muito, por exemplo, do termo imigratório. E mais: um diplomata é mais delicado, não fala com essa simplicidade que eles falam. Isso pode causar uma série de embaraços diplomáticos ao Brasil. Ele poderia, por exemplo, ser nomeado como um representante especial para um assunto específico. Um assessor para negociar a importação de armas, por exemplo.
JC - Como vê a atuação junto ao Brics, que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul?
Silva - É um dos grandes testes para a política externa de Bolsonaro. Houve uma pequena rusga com a China, logo após a eleição, mas o vice-presidente (general Hamilton Mourão, PRTB) foi lá, a coisa foi atenuada. Vamos ter o encontro do Brics aqui. Colocava-se (no Brics) uma agenda que, de certa forma, é mais ampla, mas pode deixar desconfortáveis grupos de apoio interno (a Bolsonaro). Minha hipótese é que os atenuadores estão trabalhando, dizendo que não vale a pena abrir mão do Brics, para tentar ver o que a gente consegue convergir com eles a médio e longo prazos. E isso pode descontentar a base de apoio de Bolsonaro. Para concluir, a grande contradição da política externa de Bolsonaro é que o mundo das relações internacionais é muito mais pragmático, ele não serve para guinadas radicais ideológicas, sejam para esquerda ou para a direita.
Perfil
André Luiz Reis da Silva nasceu em janeiro de 1973, no Rio de Janeiro, e vive em Porto Alegre há 44 anos. É doutor em Ciência Política e mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Possui pós-doutorado em Relações Internacionais pela School of Oriental and African Studies (Soas - Londres). É professor de Relações Internacionais da Ufrgs, lecionando na graduação e na pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais. Há duas décadas, pesquisa a política externa brasileira e, com diversos livros e artigos científicos publicados, é considerado um dos maiores especialistas no Brasil sobre o tema. Além de coordenar o Laboratório de Análise de Política Externa, foi, recentemente, eleito para a Diretoria da Associação Brasileira de Relações Internacionais (Abri).