Precisamos analisar o papel do Tribunal do Júri neste caso que é conhecido por todos os cantos do nosso país. Esse órgão do poder judiciário é competente para julgar “crimes dolosos contra a vida”, ou seja, quando o autor possui a intenção de matar. Imagino a dor das famílias envolvidas, isso não está em discussão. Todavia, é preciso pensar também em como “os ditos responsáveis” pela boate estão sendo interpretados pela justiça. Quem é responsável pela abertura e manutenção de uma boate? Existe fiscalização? Ora, é preciso entender para pensar no direito aplicado. Para abrir uma casa de entretenimento é necessário que a fiscalização pública vistorie e libere o local por meio de alvarás. Em se tratando de irregularidades e riscos, nenhum dos fiscalizadores apontou que o teto não poderia ser instalado, por exemplo. Nada também foi dito sobre a necessidade de ter uma porta de saída, uma de entrada e outra de emergência. Passamos a pensar nisso depois que tudo isso aconteceu, é fato.
No caso da boate Kiss, o juiz togado deveria ser o responsável e não o Tribunal do Júri, vez que não houve a intenção do dono da boate em provocar um acidente para matar seus clientes e amigos que trabalhavam no local. Ainda, pensando na responsabilidade de “assumir o risco”, talvez outras pessoas teriam que estar no Tribunal do Júri também, como o servidor público da prefeitura de Santa Maria que concedeu o alvará para abertura do local, o responsável dos Bombeiros que vistoriou o local e liberou para funcionamento e tantos outros órgãos e trabalhadores envolvidos. Nenhuma das pessoas está no Tribunal do Júri. Ora, mas também assumiram o risco? Ser levado ao Tribunal do Júri por “crime culposo” é causar mácula na construção histórica que luta para cumprir a garantia humana fundamental, a qual constitui garantia formal, assegurando tão somente que o autor de crime doloso contra a vida seja julgado em plenário popular.
Colocar pessoas que não tiveram a intenção de matar de frente com um júri tomado pela comoção popular, podendo passar suas vidas na cadeia sem conseguirem fazer qualquer tipo de reparação social, é um dano irreparável. As decisões jurídicas têm consequência direta sobre a vida, em todas as esferas. Pensar nas consequências é manter avivado “o bom conselho” da Deusa Thêmis: a justiça é para todos, dada as suas devidas proporções.
Advogada criminalista