Há nazismo na Ucrânia? Sim, há - mas em dimensão muito distinta daquela que o presidente russo, Vladimir Putin, tenta vender em seus discursos para a população e em diálogos bilaterais, como o que teve recentemente com seu homólogo francês, Emmanuel Macron.
Assim como em países como o Brasil, onde grupos extremistas avançam a galope, na nação do Leste Europeu houve proliferação de grupos neonazistas nos últimos anos. O período da anexação da península da Crimeia pela Rússia, há oito anos, foi uma das principais molas propulsoras para o crescimento do nacionalismo.
Para os acadêmicos que acompanham a região, há uma espécie de consenso crítico sobre a tolerância do governo local com esses grupos. Um deles, o Batalhão Azov, chegou a treinar civis que se voluntariaram para lutar contra os russos, quando Putin passou a concentrar milhares de soldados na fronteira. Ainda assim, há também o consenso de que o Estado ucraniano não é nazista - e, de longe, não é o que mais tem presença de extremistas.
Um salto histórico se faz necessário para compreender a relação da Ucrânia com o nazismo e as ideologias extremistas. Jeffrey Veidlinger, professor de História e Estudos Judaicos na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, lista ao menos três períodos pré-Segunda Guerra Mundial em que a população judia foi perseguida dentro do que hoje consideram-se as fronteiras nacionais ucranianas.
Em 1881, durante o Império Russo, quando propriedades judias foram atacadas e dezenas morreram; na Revolução de 1905, quando a população, instigada por paramilitares russos, perseguiu e assassinou 5.000 judeus na região; e após a Revolução Bolchevique, quando cerca de 100 mil judeus morreram devido a ataques perpetrados contra eles. Os episódios são conhecidos como "pogroms".
A razão por trás disso esteve nas constantes disputas no território ucraniano que estimulavam a violência étnica. "Os judeus foram perseguidos, em particular, porque não tinham um território concentrado no qual pudessem reivindicar soberania", afirma à reportagem da Folhapress Veidlinger, autor de um livro sobre o assunto.
A situação escalou durante a Segunda Guerra, quando a Ucrânia já estava acoplada ao bloco soviético. O país foi ocupado pelos nazistas, de 1941 a 1944. Antes da invasão, a capital, Kiev, contava com cerca de 160 mil judeus - 20% da população local -, e mais de 100 mil deles fugiram temendo a violência. Data dessa época um dos maiores crimes humanitários cometidos contra os judeus.
No episódio conhecido como Babi Yar, mais de 33 mil judeus foram assassinatos em dois dias em 1941. O crime foi cometido por um destacamento nazista, mas a historiografia amplamente documentou o apoio de locais que, por um período, aliaram-se às tropas de Hitler na expectativa de alçar sua independência da União Soviética.
Quando Putin emprega argumentos sobre a persistência do nazismo na Ucrânia, porém, não é bem disso que ele está falando. Para o historiador Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), "Putin usa uma perspectiva de Stálin, que via o nazismo de maneira específica: como algo que quer destruir a União Soviética (e, agora, a Rússia)".
"O discurso de Putin é de extrema direita. É uma narrativa stalinista, antileninista e russocêntrica", acrescenta o pesquisador, também membro do Observatório da Extrema Direita.
Aqui, mais uma vez, cabe o fio histórico. A população judaica na Ucrânia viveu dois períodos distintos na época em que o país era uma república soviética, explicam os especialistas. Durante a liderança de Lênin, quando uma política de nacionalidades foi posta de pé, grupos com características definidas, como os ucranianos, puderam manter sua identidade, num período de refluxo da violência étnica.
Sob Stálin, a coisa mudou, e a perseguição contra essa parcela populacional cresceu. "A partir da década de 1930, a União Soviética se tornou chauvinista e começou a punir a população judaica. E continuou a fazer isso mesmo após a Segunda Guerra, nas décadas de 1970 e 1980, quando a vida judaica foi severamente restringida", diz Veidlinger, da Universidade de Michigan.
Putin, dizem os acadêmicos, estaria então mobilizando a identidade soviética e o nacionalismo, fazendo do nazismo um símbolo daquilo que ameaçaria a Rússia - ao menos nos moldes político-sociais nos quais seu governo deseja manter o país engessado.
Gherman diz haver uma diminuição das células neonazistas na Ucrânia, majoritariamente concentradas na porção leste, onde também estão as regiões separatistas russas, Donetsk e Lugansk, agora reconhecidas por Putin. Desde que se tornou independente, em 1991, a Ucrânia pode ser descrita como um país que avançou no bom convívio entre a multietnicidade que contempla - são 130 etnias, segundo um censo de 2001, ainda não atualizado -, afirmam os professores.
Não deixa de ser comum, porém, que agrupações extremistas se apropriem de símbolos da história do país, levando a episódios que causam confusão. Um exemplo é o uso do símbolo tryzub ("tridente", em português) pelo Pravyi Sektor (setor direito), uma organização de ultradireita.
Usado inclusive em algumas versões da bandeira nacional, o símbolo é o brasão do país e representa a Santíssima Trindade desde o século X, quando o cristianismo foi introduzido na Ucrânia. Nada tem a ver com o nazismo. "Eles se apropriaram do tryzub porque simboliza o Estado ucraniano independente", diz Vitorio Sorotiuk, presidente da Representação Central Ucraniano Brasileira.
Volodimir Zelenski, presidente ucraniano, é judeu. O argumento pode ser marginal para contradizer as alegações de Putin, mas ganha peso se levado em conta o fato de que, durante a campanha eleitoral que o alçou ao Palácio Mariinski, esse fato pouco ou nada foi abordado.
"Ninguém se importa. Ninguém me pergunta sobre isso", respondeu Zelenski ao jornal The Israel Times, em entrevista concedida em janeiro de 2020 - portanto, no primeiro ano de seu governo -, quando questionado sobre a relevância pública dada à ascendência dele.
O líder ucraniano perdeu três tios judeus quando eles lutavam no Exército Vermelho. O avô paterno, também soldado, sobreviveu, e a avó, que morava em Krivi Rih, cidade ao sudeste ocupada pelos nazistas, fugiu para o Cazaquistão. Lá, estudou e se tornou professora, até retornar para a Ucrânia após a guerra.
"É claro que, na Ucrânia, como em qualquer outro lugar do mundo, agora e no passado, há uma parcela que não se importa com mais ninguém além de sua própria nação. O mesmo aconteceu na Segunda Guerra e na ocupação fascista da Alemanha na Ucrânia. Essa atitude também foi empregada contra o povo judeu durante a era soviética. Sabemos de tudo isso. Mas neste momento, também sabemos perfeitamente que temos os menores níveis de antissemitismo na Ucrânia", disse Zelenski àquela altura.