Apesar de terem trajetórias diferentes durante a pandemia de coronavírus, os vizinhos Chile e Peru enfrentam neste momento um desafio parecido: tentam reabrir suas economias enquanto estão na lista dos 10 países mais afetados pela Covid-19 no mundo. A Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), inclusive, demonstrou, recentemente, preocupação com a alta mortalidade nas Américas.
Com uma leve alta recente no número de casos, o Peru aparece em sexto lugar, enquanto o Chile - que registra uma sutil queda - é o oitavo. Mesmo com a América do Sul no epicentro da pandemia, os dois governos têm insistido na reabertura, em parte por temerem os reflexos econômicos da crise.
Segundo reportagem da Folhapress, o presidente peruano, Martín Vizcarra, já afirmou que o aumento de contágios "não justifica um retorno ao confinamento". E acrescentou: "Estamos numa situação em que temos que contar com o compromisso da população, não é possível continuar com medidas tão duras". Segundo estimativa do FMI, o PIB deve cair 14% em 2020, o pior da América do Sul.
Desde 11 de maio, o país já retomou atividades como mineração (responsável por 60% das exportações), comércio não essencial, pesca e parte da indústria. Na semana passada, voltaram a funcionar os voos internos, e nesta semana começaram a reabrir outros setores da indústria, além de bares e restaurantes - que precisam respeitar o limite de 40% da capacidade.
Já no Chile, o ministro da saúde, Enrique Paris, apresentou um plano de reabertura, que também começou a valer nesta semana. Dividido em duas etapas, ele prevê medidas diferentes para cada região. No caso chileno, a concentração de casos acontece na região metropolitana de Santiago, que concentra 8 milhões dos 18 milhões de habitantes do país.
Apesar de terem números parecidos de casos e de mortes nesta quinta-feira (23) - 366,5 mil casos e 13,7 mil mortes no Peru; 334,6 mil e 8,6 mil no Chile -, o enfrentamento da pandemia tem sido bastante diferente nos dois países.
Isolamento peruano esbarrou no mercado informal
Comércio de rua faz parte da cultura, principalmente entre indígenas
Carlos MAMANI/AFP/JC
O presidente peruano, Martín Vizcarra, foi um dos primeiros líderes da América Latina a implementar uma quarentena dura, em 16 de março. O governo fechou as fronteiras e decretou que apenas trabalhadores essenciais tinham permissão para sair de casa. Além disso, apenas uma pessoa por família estava autorizada a ir ao supermercado ou à farmácia, em horários restritos.
As medidas de isolamento, porém, não funcionaram. Um dos motivos é que o país tem um mercado informal de 72,6% da população (segundo dados do Instituto Nacional de Estatística). Assim, muita gente foi obrigada a continuar saindo todos os dias para ganhar seu sustento.
O grande número de mercados informais e na rua também foi um vetor de rápida contaminação. Os mercados fazem parte da cultura local, muito enraizada principalmente entre a população de ascendência indígena e nas comunidades rurais.
Outro fator foi o deslocamento interno. Metrópoles como Lima, Arequipa e Piura costumam receber uma população que vive no interior e viaja para realizar trabalhos temporários.
Com a interrupção total do transporte público por conta das medidas de quarentena, muitas pessoas passaram a voltar a seus povoados caminhando. "Isso fez com que levassem o vírus para suas comunidades, de forma muito rápida e descontrolada", diz à reportagem Carmen Yon, antropóloga da saúde.
"Na verdade, a quarentena rígida só aconteceu no papel, no discurso. Pelo modo como vive a sociedade peruana, não dava para cumprir sem um comprometimento maior do Estado em apoiar essa população."
O Peru teve um pico de casos no fim de maio, logo depois da primeira flexibilização, chegando a 8,8 mil infecções em um dia. Ao longo de junho e início de julho, o número diário de novos casos caiu para pouco mais de 3 mil - na última semana voltou a subir e a ultrapassar os 4 mil.
A região de Arequipa é a nova preocupação das autoridades e, na terça-feira (21), o Ministério da Saúde alertou para uma possível intervenção na cidade, com o envio do Exército para ajudar na ampliação de hospitais.
O retorno dos voos internos era esperado ansiosamente pelo setor do turismo, que está parado desde o começo da pandemia de Covid-19. "Ainda que não possamos abrir para os estrangeiros, o turismo interno pode ajudar a recuperar parte da nossa estrutura hoteleira, gastronômica e de cassinos. Também queremos investir nos encontros comerciais, que movimentam os hotéis", diz Carlos Canales, diretor da Câmara Peruana de Turismo. Os voos internacionais ainda não têm data para serem normalizados, e o governo informou que uma nova avaliação deve ser feita em agosto.
Chilenos adotaram quarentena e, 55 dias depois, lockdown
Governo Piñera tem enfrentado manifestações e onda de saques
MARTIN BERNETTI/AFP/JC
Já o Chile apostou inicialmente em uma quarentena vertical, a partir de 18 de março. Com a piora nos números, porém, o governo se viu obrigado a determinar um "lockdown" total em 13 de maio para a região metropolitana de Santiago. O principal pico de casos no país aconteceu em meados de junho. Desde o último dia 14, porém, o Chile vem registrando uma média de 2 mil ocorrências diárias.
Assim, a situação, antes dramática, começou a melhorar. Segundo dados oficiais, o sistema de saúde da capital chegou a colapsar, mas agora a taxa de ocupação das UTIs está em 67%. "Tivemos cinco semanas de melhora, o que nos permite iniciar uma nova etapa, de modo muito gradual e flexível", disse Piñera, na sexta-feira passada.
As primeiras etapas de desconfinamento ocorreram na região sul do país, menos atingidas. Nessa área, foi liberado o trânsito de todas as pessoas que não integram grupos de risco e permitida a retomada de parte do comércio e da indústria. Uma segunda fase, ainda sem data, permitirá o retorno de quase todas as atividades, mas com protocolos de higienização.
Além disso, o governo chileno tem enfrentado novas manifestações e há uma onda de saques a supermercados e farmácias - o sistema para distribuição de benefícios durante a pandemia não alcança todo o mercado informal, de 29,6% da população.