Alberto Fernández, que assume a presidência da Argentina amanhã, é um camaleão da política. Poucas pessoas no país têm mais experiência na administração pública do que ele. Aos 60 anos, chega à Casa Rosada após uma longa trajetória, que inclui reviravoltas ideológicas, alianças com adversários e mais de cinco anos como chefe de Gabinete dos governos de Néstor e de Cristina Kirchner.
A chefia de Gabinete é a posição mais importante do Executivo - após a presidência -, segundo a Constituição. Seus poderes são parecidos com os de um primeiro-ministro, mas leva a vantagem de ser obrigado a prestar contas aos legisladores esporadicamente.
Aos poucos, ele se tornou o principal porta-voz do governo, gerente de campanha e eixo do relacionamento com a imprensa. Tanta influência permitiu que ele construísse laços políticos que, hoje, explicam por que Cristina o escolheu como cabeça de chapa, apesar de ele ter sido um dos críticos mais duros de sua administração.
Carreira é marcada por alianças com adversários
Nascido em Buenos Aires, Fernández deu seus primeiros passos na política quando estudava Direito. Ele era filiado ao Partido Nacionalista Constitucional, de perfil nacionalista, católico e conservador, que fazia campanha pelo voto em branco nas primeiras eleições após a redemocratização, em 1983. Depois, durante a presidência de Raúl Alfonsín, filiou-se à União Cívica Radical e foi funcionário do Ministério da Economia. Em seguida, foi diretor da Superintendência de Seguros do Estado, na primeira metade do mandato do peronista Carlos Menem. Foi quando Fernández se aproximou do então ministro da Economia, Domingo Cavallo.
Fernández soube se reinventar. Quando Cavallo renunciou para lançar o próprio partido, o Ação pela República, na década de 1990, o camaleão correu para debaixo das asas do ex-governador da província de Buenos Aires, Eduardo Duhalde - opositor de Menem.Sob o disfarce de duhaldista, foi nomeado vice-presidente do Banco de la Provincia e acabou como chefe da campanha de Duhalde, nas eleições perdidas para Fernando de la Rúa, da UCR.
Com o peronismo enfrentando uma crise de liderança, Fernández mudou de ares novamente. Entrou para o partido Ação pela República, de Cavallo, e foi eleito vereador por Buenos Aires, em 2000. Prevendo o naufrágio de Cavallo com a crise de 2001, Fernández abandonou o barco e se aproximou do Grupo Calafate, uma espécie de clube político que promovia uma liderança peronista alternativa, cujo timoneiro era Néstor Kirchner.
No fim de 2002, quando percebeu que a candidatura de Kirchner não decolava, buscou uma nova acomodação. Com a proximidade da eleição para prefeito de Buenos Aires - e a possibilidade de mais um mandato como vereador -, tentou costurar um acordo com o então presidente do Boca Juniors, Mauricio Macri, candidato à prefeitura. Questionado pela reportagem, Toma confirmou a tentativa de aliança entre os dois futuros rivais e disse que Fernández pediu "um lugar na cédula" da coalizão macrista. Mas, antes que uma aliança fosse fechada, a situação mudou. Kirchner foi eleito presidente, em 2003, e hipotecou seu capital político na eleição de Aníbal Ibarra, que derrotou Macri e se tornou prefeito. Fernández, como chefe de Gabinete de Kirchner, acabou fazendo campanha contra Macri.
Desafio será governar sem a sombra da vice-presidente
Fernández foi um membro importante dos 12 anos de kirchnerismo. Foi gerente de campanha de Kirchner, entre 2003 e 2007, anos de grande crescimento econômico, e o arquiteto do movimento conhecido como "transversalidade", a tentativa do kirchnerismo de unir líderes e outras forças políticas para formar um bloco progressista.
No governo, Fernández nunca foi processado em nenhum dos escândalos de corrupção, mas esteve sempre no olho do furacão. Ele estava na linha de frente da intervenção no Instituto Nacional de Estatística e Censos, usado para falsear dados oficiais; ajudou a promover o estrangulamento da imprensa, retirando a propaganda estatal dos meios mais críticos; colocou os órgãos públicos a serviço do partido e foi chefe de muitos ministros e secretários de Estado hoje presos por corrupção.
Como chefe de Gabinete, fez malabarismos políticos. Manteve amigos importantes em Washington e em Brasília, cultivou uma boa relação com donos de grandes empresas de mídia - especialmente o Clarín -, sem nunca ter rompido com os setores do peronismo que se distanciavam lentamente do governo.
Em 2008, começou a crise de Fernández com o kirchnerismo. Quando o projeto de aumento de impostos de exportação a ruralistas foi derrotado no Senado, Cristina pensou em abandonar o poder e forçar novas eleições. Kirchner estava convencido. Ela, hesitante. Foi quando o chefe de Gabinete ligou para Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do Brasil, para que ele tirasse a ideia da cabeça do casal - a negociação foi confirmada à reportagem do Estado de S. Paulo por fontes próximas a Fernández.
O rompimento definitivo com o governo ocorreu ainda em 2008. A grave crise dos produtores rurais e o giro de 180 graus de Cristina em relação às políticas do marido fizeram com que Fernández pedisse demissão. Sua saída o transformou em um dos críticos mais ferozes do kirchnerismo. Na ocasião, passou a ser convidado para programas de emissoras de TV da oposição e embarcou em uma carreira lucrativa como consultor político.
A partir de então, desferiu golpes contra a presidente, acusando Cristina de ser "paranoica", de "negar a realidade de maneira absurda e teimosa" e de promover uma "ação institucional deplorável". Fernández repudiou o acordo fechado pelo governo com o Irã. Segundo ele, o acerto representava o "encobrimento" da responsabilidade iraniana no ataque à Associação Mutual Israelita-Argentina (Amia), em 1995, que matou 85 pessoas.
Antes de parar na mesma chapa de Cristina, Fernández trabalhou como chefe da campanha presidencial de Sergio Massa, em 2013. Quando Macri foi eleito, no ano seguinte, Fernández iniciou uma cruzada para unir o peronismo. Em janeiro, de maneira surpreendente, foi ungido por Cristina para ocupar a cabeça da chapa presidencial - enquanto ela seria vice.
Fernández é astuto e bom orador, excelente em construir laços pessoais, mas nunca poderia ter chegado à presidência sozinho. O apoio de Cristina é um peso - e ele sabe disso. Nos bastidores, ele garante que um novo tempo está chegando e promete encarnar a superação do kirchnerismo, ou, pelo menos, uma versão menos conflituosa e autoritária. A partir de amanhã, seu desafio será governar sem que Cristina, fonte de boa parte de seus votos, lhe faça mais sombra do que precisa.
Macri deixa legado econômico sofrível
Em ato de despedida, Mauricio Macri chorou e foi carregado por apoiadores
ALEJANDRO PAGNI/AFP/JC
Mauricio Macri se despediu, no sábado, de seus apoiadores, em um ato em frente à Casa Rosada. Estava ao lado da mulher, Juliana Awada, e do seu candidato a vice-presidente, Miguel Ángel Pichetto.
Eleitores com bandeiras lotavam a Praça de Maio, e Macri apertou mãos, tirou selfies e ouviu gritos de "vamos esperá-lo". O presidente, que chorou em vários momentos, agradeceu a presença de todos e mandou um recado a Fernández: "Ele pode confiar que, depois de muito tempo, vai encontrar uma oposição construtiva e não destrutiva". No fim, saiu da praça carregado por apoiadores.
Durante a semana, fez uma retrospectiva do mandato. Usou a seca, que, em 2017 e 2018, comprometeu a colheita de soja e a guerra econômica no panorama internacional para justificar seu fracasso.
Mas o primeiro presidente não peronista a finalizar seu mandato não deixa o país em boas condições. Desde o primeiro dia de governo, disse ter recebido uma "herança maldita", referindo-se ao estado da economia durante o mandato de Cristina (2007-2015).
Entrega o governo com uma grande desvalorização do peso - se US$ 1 custava 14 pesos quando assumiu, agora, custa 62,25 pesos. Também houve aumento da inflação, que deve fechar o ano em 55%, e do número de pobres, de 28,5%, em 2015, para 40% quatro anos depois.
Endividou ainda mais o país, contraindo um empréstimo de US$ 57 bilhões
(R$ 236 bilhões) com o Fundo Monetário Internacional (FMI) - a remessa que falta, de US$ 11 bilhões, foi dispensada por Fernández, que ainda deve definir como pagará o que já foi gasto.