Há apenas algumas décadas, a lei não reconhecia que mulheres eram vítimas de violência de gênero - o que mudou em 2002 com a reforma da Lei n° 3.071, no Código Civil Brasileiro e, quatro anos depois houve mais um avanço, com a Lei nº 11.340, conhecida como Maria da Penha. Apesar da alteração, vinte anos depois, mulheres de classes sociais distintas continuam violentadas e até mesmo mortas pelo fato de serem mulheres.
Apenas em dois meses de 2022, janeiro e fevereiro, o Rio Grande do Sul registrou 9.317 crimes contra a mulher, entre ameaças, lesão corporal, estupro, feminicídio consumado e feminicídio tentado. Na luta contínua pelo apoio e reconhecimento governamental, desde 2016, a Casa Mirabal, na Zona Norte de Porto Alegre, acolhe mulheres vítimas de violência e seus filhos.
Atualmente, o Estado conta com 14 casas-abrigo, em municípios diferentes, que oferecem atendimento integral às mulheres em situação de violência doméstica sob risco de morte iminente, conforme a Secretaria da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social (Sicdhas). Embora a Mirabal tenha acolhido pelo menos 300 mulheres ao longo de seis anos, a casa não consta como referência na Cartilha do Governo do Estado, lançada em 2021.
"Temos essa falta de reconhecimento de órgãos públicos. Por um lado, ele existe, quando esses órgãos nos direcionam mulheres para o abrigamento, mas o reconhecimento de estar mapeada como parte da rede, nem sempre acontece", lamenta a coordenadora da Mirabal, Júlia Foscheira.
Segundo a Sicdhas, a execução do serviço de acolhimento é da gestão municipal. Para ser considerada uma entidade de assistência social, o local precisa se caracterizar dentro de uma série de fatores, como o 3º artigo da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), de 1993. Entre eles, estar inscrito no Conselho Municipal, no Cadastro do Sistema Único de Assistência Social (Cadsuas) e no Cadastro Nacional de Entidades de Assistência Social (Cneas).
Embora a Defensoria Pública esteja tentando solucionar a questão do espaço, de acordo com Júlia, o poder público não colabora em nenhuma das frentes para manutenção da casa. "A gestão municipal nunca teve o intuito de deixar que a casa existisse. Com muita negociação, o Estado fez sua parte na cedência, mas cedeu um imóvel que não era seu, para lavar as mãos", comenta.
Desde que a negociação foi encerrada em 2018, quando o Estado disponibilizou uma área na zona norte, a Casa Mirabal aguardava a cedência do terreno pela prefeitura. Como não houve seguimento, o processo resultou na ocupação do espaço. "A prefeitura entrou com um processo de reintegração de posse, que não teve sequência, pois tivemos uma sentença favorável na Justiça à permanência, mas outras formas de ataques são desenvolvidas, sejam cobranças de serviços, muitas vezes, descabidas - o que não é feito de outros locais de acolhimento -, como corte de energia, ações junto ao Ministério Público e inúmeras formas de nos tirar de lá".
Mirabal conta diariamente com apoio de vizinhos para se manter

Atualmente, oito pessoas vivem na casa: quatro mulheres, sendo duas indígenas, e quatro crianças
LUIZA PRADO/JC
Até a reforma no Código Civil Brasileiro, em 2002, havia a possibilidade da violência sexual praticada contra uma mulher solteira ser reparada pelo casamento do agressor com a vítima, além de o homem ter autoridade sobre a mulher, tanto no ambiente familiar quanto na vida civil. Mesmo depois de duas uma décadas, "o homem entende que ele é dono dessa mulher, que a mulher é um objeto e não um ser humano", explica a especialista em Direito das Mulheres, a advogada Sabrina Donatti. Dentro desse cenário, a falta de apoio e até mesmo o medo de não conseguir seguir adiante impedem a vítima de sair do ciclo de violência e buscar ajuda.
As casas de acolhimento provisório, assim como as casas-abrigo, atuam diretamente no combate à violência de gênero, acolhendo mulheres em situação de violência doméstica e familiar e outros tipos de violência, incluindo a psicológica.
Algo considerado único dentro da Casa Mirabal é o atendimento direcionado para cada um dos casos. Sem um limite de tempo preestabelecido e sem a necessidade de um Boletim de Ocorrência (BO), as mulheres também podem garantir a segurança de seus filhos com uma equipe técnica de acolhimento, apoio psicológico, oficinas que auxiliam no sustento financeiro, suporte jurídico e pedagógico.
Apesar da falta de investimentos municipais, estaduais e federais, o acolhimento na Mirabal é gerenciado pelo Movimento de Mulheres Olga Benário e conta diariamente com o apoio popular. Há sete meses sem energia elétrica, a vizinhança participa ativamente, disponibilizando pontos de energia para que mulheres e crianças tenham o mínimo de estrutura para sobreviver. "As pessoas veem na mídia a importância e a necessidade da casa. Quem era para estar ajudando, não está", acrescenta a assistente social, Camila Lopes.
Já na alimentação, além do apoio dos vizinhos, o local recebe doações por meio do Mercado Público e da Banca da Reforma Agrária (Armazém do Campo). Atualmente, oito pessoas vivem na casa: quatro mulheres, sendo duas indígenas, e quatro crianças.
A luta de movimentos sociais pelo direito das mulheres
Movimentos sociais, como o que deu origem à Mirabal, impulsionam o combate à violência e desigualdade de gênero. No Brasil, outros direitos foram conquistados através da luta das mulheres, como o voto feminino, em 1932, a Lei Maria da Penha, em 2006, e dentro dessa mesma lei, a inserção do artigo penal sobre a violência psicológica em 2021.
"Com isso, conseguimos fazer com que dentro dos juizados eles consigam entender a violência psicológica como algo que é uma violência doméstica. Óbvio que a violência física é muito prejudicial, um tapa é possível comprovar com mais facilidade, já a violência psicológica tem danos irreversíveis. A mulher fica tão mal, que não consegue fazer a denúncia e acaba ficando sem perspectiva", explica Sabrina.
Conforme a especialista, quanto mais cedo a mulher tomar consciência de que está sob uma violência, maiores são as chances de evitar a violência física e até mesmo o feminicídio. Na luta pela garantia das mulheres ao acesso à justiça, a Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, criou, em 1993, um projeto para repensar o campo jurídico: as Promotoras Legais Populares (PLPs).
Capacitadas em noções básicas de direitos humanos, após uma formação de 80 horas/aula, as PLPs atuam voluntariamente em suas comunidades na defesa, prevenção de violações e promoção de direitos. Em constante crescimento, em 2013, a Themis apresentou 1.223 PLPs formadas na região sul, sendo 323 na Capital.
Atualmente, Porto Alegre, Canoas e Guaíba somam mais de 50 promotoras atuando de forma ativa. Na Capital, as PLPs se dividem nas regiões periféricas: Lomba do Pinheiro (23,3%), Restinga (23,3%), Eixo Baltazar (7%) e Cruzeiro (2,3%). Tradicionalmente realizado no presencial, o acompanhamento das promotoras passou a ser executado de forma remota devido à pandemia. Embora em situações específicas o atendimento presencial continue em andamento, o contato e a articulação dos territórios ocorrem no on-line.
"A Themis precisou se renovar criando um programa específico de ajuda emergencial, no qual apoiamos as promotoras com alimentação, cestas básicas e recargas de telefone. Tanto por conta da vulnerabilidade, quanto para estimular o ativismo delas", explica a coordenadora da área de Violência, Renata Jardim. Entre março de 2020 e maio de 2021, 54 Defensoras de Direitos Humanos/PLPs no RS foram assistidas pela Themis, 50% negras e 50% brancas.
Outra ação importante acontece na cidade de Canoas, com o acompanhamento de mulheres com Medidas Protetivas de Urgência (MPUs) deferidas pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar com a Mulher no município. A partir da ação, foram elaborados documentos de registro dos atendimentos, assim como canais de diálogos.
O objetivo dos monitoramentos é verificar as condições das mulheres, orientar e informar sobre os recursos da rede de atendimento, permitindo acompanhamento humanizado, escuta ativa e aproximação da mulher com o sistema de justiça. A ação já atingiu diretamente 251 mulheres.
Para compreender o funcionamento das Medidas Protetivas de Urgência, leia a primeira reportagem da série sobre o combate ao feminicídio, publicada pelo Jornal do Comércio no dia 24 de março. As informações sobre os projetos desenvolvidos pelo governo do Estado, por meio do comitê EmFrente, Mulher, estão disponíveis em reportagem publicada no dia 31.