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Especial enchente de 1941: Por que Porto Alegre alaga?
Fortes chuvas e vento sul fizeram nível do Guaíba quase duplicar na maior enchente da história de Porto Alegre
Enquanto diminuíam as águas da enchente de 1941 – cujas inundações se estenderam de 22 de abril a 14 de maio –, um repórter do Diário de Notícias se fazia as mesmas perguntas que todos os porto-alegrenses: que circunstâncias fizeram a cheia daquele ano ser a maior da história de Porto Alegre? Por que a cidade alagava com uma frequência cada vez maior?
Para responder a essas questões, ele procurou um especialista, o engenheiro civil Carlos Teles. “O Dr. Teles quis esquivar-se, alegando seu alheamento a toda espécie de publicidade, mas, ante a insistência do repórter, prontificou-se afinal a fazer-nos uma interessantíssima apreciação sobre o problema das inundações”, relatou o próprio jornalista. Finalmente, a entrevista foi publicada em 15 de maio e, para a frustração do repórter, o engenheiro disse que era impossível dar uma resposta categórica naquele momento, devido à falta de um estudo sobre o regime das águas na bacia hidrográfica do Guaíba. O especialista explicou, ao longo de duas páginas, quais os seis aspectos que deveriam ser analisados para entender as enchentes na Capital. Contudo, esse levantamento só seria concretizado décadas mais tarde.
Embora tenham sido desenvolvidos vários estudos sobre a bacia do Guaíba e as cidades da região, foi só em 1998 que um levantamento completo foi consolidado em uma única publicação – o Atlas Ambiental de Porto Alegre. Certamente, esse livro deixaria Carlos Teles satisfeito, pois reúne conhecimento sobre os pontos que ele considerava importantes: a planta da bacia do Guaíba; a permeabilidade do solo nas diferentes regiões; a análise da temperatura das camadas geológicas; a quantidade e localização da vegetação; a medição da quantidade e intensidade da chuva; e a influência dos ventos e das marés no Guaíba. O Atlas traz ainda conhecimento sobre muitos outros aspectos da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Esse esforço científico permitiu que hoje, 80 anos depois de Carlos Teles ter sido entrevistado pelo repórter do Diário de Notícias, o coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, o professor da Ufrgs Rualdo Menegat, explicasse ao repórter do Jornal do Comércio efetivamente por que Porto Alegre alaga. E, claro, por que o Guaíba subiu à marca de 4,78m em 1941.
Primeiramente, Menegat deu uma noção da dimensão da enchente de 1941: “O Guaíba tem, em média, 2,5 metros de profundidade. Tem um quilômetro cúbico de água. O nível do lago quase duplicou, ficando com dois quilômetros cúbicos. Então, é como se tivessem empilhado dois Guaíbas, um em cima do outro. É muita água”.
Em 1941, a chuva foi intensa na região metropolitana e na região dos afluentes do Guaíba – os rios Taquari, Jacuí, Caí, Gravataí e do Sinos. Por exemplo, em Porto Alegre, a precipitação foi de 619,4 mm ao longo de 22 dias (de 10 de abril a 14 de maio); em Taquari, de 623,6 mm em 19 dias; em Caxias do Sul, de 545,6 mm em 19 dias; e em Soledade, de 895 mm em 19 dias.
Para ter uma noção do quanto a chuva foi intensa naquele ano, o geógrafo climatologista do Centro Polar e Climático da Ufrgs Pedro Valente – outro especialista consultado pela reportagem – menciona que, em 20 dias, choveu metade da média anual em várias cidades do Rio Grande do Sul.
Valente ressalta ainda que a precipitação extrema teve influência do fenômeno climático El Niño. “A Agência Administrativa Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos categoriza o período de dezembro de 1939 a janeiro de 1942 como o El Nino mais forte da primeira metade do século XX”, mencionou.
Toda essa chuva chegou com muita velocidade ao Guaíba, devido ao desnível entre a região metropolitana e o Planalto Meridional. A altura média da Capital é 10 metros acima do nível do mar. A serra gaúcha está a 855 metros acima do mar. Além disso, o desmatamento, tanto do planalto quanto da planície, contribuiu para acelerar a rapidez com que as águas escorreram ao Guaíba.
“Uma coisa é ter uma forte precipitação em uma zona fortemente vegetada por florestas. Outra é essa mesma precipitação em uma zona onde a floresta foi cortada. Ao longo do tempo, na região do Planalto Meridional e das partes mais planas da baixada de Porto Alegre, as matas foram sendo removidas. A vegetação hoje está praticamente só nas escarpas. Tudo isso ajuda a água a escorrer com maior velocidade”, comparou Menegat.
Entretanto, o professor avaliou que só a velocidade das águas e a intensidade das chuvas não seriam suficientes para quase duplicar o nível do Guaíba. Junto a isso, a influência do vento sul foi decisiva na enchente de 1941. O vento, vindo da Lagoa dos Patos, empurrou as águas do lago contra a cidade. Isso não só atrasou o escoamento, como também elevou o patamar na margem de Porto Alegre.
“O Lago Guaíba é como se fosse um pires cheio de água. Se você soprar a água do pires de um lado, o nível da água sobe no outro. Foi o que o vento sul fez com o Guaíba em 1941”, ilustrou o professor da Ufrgs – argumentando que foi a convergência de vários fatores naturais que criou a maior enchente de Porto Alegre.
Contudo, fez questão de ressaltar que alguns elementos artificiais, por assim dizer, também contribuíram para aumentar os transtornos na cidade. Por exemplo, a urbanização sem planejamento em uma área que sempre alagou – como é o caso de boa parte da região metropolitana. “Toda essa antropização da paisagem, sem planejamento urbano, sem entender os fluxos das águas, faz com que as inundações tenham um impacto negativo maior na vida das pessoas. O fato é que essas cidades se estabeleceram na boca de um funil (onde quatro rios desaguam no Guaíba) e não pensaram o seu planejamento urbano”.
Para Rualdo Menegat, hoje não há desculpa para a falta de planejamento urbano. Afinal, ao contrário de 1941, quando o engenheiro Carlos Teles reclamou da falta de estudos sobre a bacia do Guaíba, atualmente esse conhecimento já existe. “Na verdade, muitas cidades não quiseram pensar no seu planejamento urbano. Hoje já temos conhecimento para isso, que demonstra o que significa habitar uma região inundável.”
Chuvas como a de 1941 tendem a se tornar mais frequentes
Chuvas fortes, como a de 1941, devem se tornar mais frequentes devido às mudanças climáticas. É o que indica a pesquisa do geógrafo climatologista Pedro Valente, que conduz um estudo sobre as anomalias nas precipitações gaúchas, no Centro Polar e Climático da Ufrgs. Valente fez um levantamento das chuvas ocorridas no Rio Grande do Sul de 1901 até hoje.
“A principal característica das mudanças climáticas é a intensificação de eventos extremos. No caso das precipitações no Estado, uma chuva que ocorria a cada cinco anos está ocorrendo, agora, em um intervalo menor”, ponderou o pesquisador. Ele citou ainda algumas projeções sobre a frequência de chuvas como a de 1941. “O Departamento de Esgoto Pluvial (DEP, hoje extinto) estimava em 370 anos o retorno (de um evento como a enchente de 1941). Existem estudos que falam em 120 anos. Outros, em 180. Mas são estimativas.”
Contudo, o pesquisador salientou que uma nova precipitação extrema não causará necessariamente outra enchente como a de 1941. Afinal, não foi só a chuva que causou a maior cheia da história de Porto Alegre, mas também outras anomalias, como o vento sul. Além disso, hoje a cidade possui um sistema de proteção contra inundações.
“Existem outros episódios de precipitações similares à de 1941 – como em 1972-1973, 1987-1988, 1997-1998, 2009-2010, 2015-2016. Mas esses fenômenos não geraram enchentes da mesma magnitude. Por quê? Em parte, pelo fator humano. A cidade aprendeu com a cheia (e construiu o sistema de proteção às cheias). E, em parte, porque a enchente foi uma combinação de fatores. As anomalias de vento podem não ter sido as mesmas de 1941, por exemplo”, explicou Valente.