Porto Alegre nasceu das águas. Foi das águas dos Açores que os 60 casais partiram. Foram as águas do Oceano Atlântico que eles cruzaram em sua aventura rumo a um novo continente. Foi junto às águas do lago que se estabeleceram, criaram raízes, progrediram e deram início à fundação de um povoado, que passou a freguesia, que se tornou vila e se transformou em cidade. Porto Alegre nasceu das águas e é para as águas que os olhos dos porto-alegrenses estão voltados hoje.
A cidade – e seus cidadãos – estão, desde sempre, intrinsecamente conectados com seu lago. Foi a partir dele que Porto Alegre cresceu, partindo do Centro e indo em direção ao Norte, ao Sul, ao Leste e ao Oeste.
Os braços de Porto Alegre se estenderam tanto que a cidade acabou por dar as costas para a sua orla. Desde junho de 2018, porém, quando a revitalização do chamado trecho 1 da orla do Guaíba foi entregue, a relação dos porto-alegrenses com o espaço voltou a se estreitar e colocar o foco sobre a região.
Para celebrar os 249 anos da capital dos gaúchos, comemorados neste sábado (27), o Jornal do Comércio fez uma enquete perguntando aos leitores qual o lugar preferido da cidade. E não deu outra: a orla faturou o primeiro lugar.
Um respiro em meio à agitação da metrópole
Ao todo, são 70 km de orla, da ponta do Gasômetro à Praia do Lami
LUIZA PRADO/JCOs 70 quilômetros, que se estendem da ponta do Gasômetro até a Praia do Lami, têm um magnetismo natural. As águas chamam, e o convite para desfrutar de seus encantos é quase que irrecusável. A cidade nasceu pertinho da orla é para a orla que se volta, mirando seu futuro nas próximas décadas.
São 70 km de orla, da ponta do Gasômetro à Praia do Lami
A orla humaniza uma metrópole viva que cresce e parece nunca parar, com suas ruas e avenidas pulsando com cada vez mais força, o vai e vem dos carros e das pessoas a passos ligeiros. A orla é um respiro, uma pausa, um descanso. Uma reconexão com as origens, uma fuga do artificial, um abraço na natureza da cidade.
É para a orla que o estudante vai com os amigos se divertir depois de uma semana dura de provas, é para a orla que o operário vai depois de um duro dia de trabalho pesado. É para lá que vai a advogada após um julgamento tenso no tribunal, e é para lá também que vai o policial que correu riscos durante a semana.
A orla reúne os diferentes, aproxima os semelhantes. A orla aceita qualquer um, sem distinções. Ali, nas margens do lago, o grande empresário e o bravo trabalhador assalariado compartilham o mesmo espaço. A orla apresenta seu espetáculo diário de luz e sombras refletidas nas águas do lago. Sem cobrar ingresso.
As bordas redesenhadas pelos aterros
Aterros foram fundamentais para o desenho da orla como se conhece
MARIANA ALVES/JCA orla como conhecemos hoje nem sempre foi assim. Ao contrário, na maior parte de sua história, ela foi bem diferente de como é. Por motivos diversos, ela foi sendo redesenhada artificialmente, pouco a pouco, até adquirir a formação que tem atualmente.
A arquiteta e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Andréa Soler Machado obteve seu doutorado em História pela Ufrgs com a tese “A borda do rio em Porto Alegre: arquiteturas imaginárias, suporte para a construção de um passado”. Segundo ela, a história de Porto Alegre, está diretamente associada à ocupação das margens do Guaíba. “A partir do princípio do século XX, a borda do rio seguirá sendo o lugar onde a cidade se reinventa, oferecendo-se como objeto de desejo das modelagens e utopias tornadas possíveis através das técnicas modernas que permitem desmontes e aterros”, destaca em seu trabalho.
Os aterros, aliás, foram fundamentais para o desenho da orla como se conhece hoje. Iniciado ainda no século 19, o aterramento do Guaíba se deu em quase todas as décadas, com o último ocorrendo no fim dos anos 1970. Além de mudar o desenho das margens, as ações ampliaram a área terrestre do município e criaram os espaços planos atuais existentes do Cais até o pontal do Estaleiro.
Isa Mendes Vitagliano é mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). Em sua dissertação, ela abordou as intervenções ambientais ocorridas no processo de aterramento do Guaíba. Conforme a pesquisadora, os aterramentos de partes da orla se deram por razões distintas. “Os trechos aterrados nas margens Norte e Central, realizados nas décadas finais do século 19 e iniciais do século 20, tinham como razão prioritária o favorecimento das relações comerciais de Porto Alegre com outras cidades”, aponta. A própria construção do cais e dos armazéns ocorreu em áreas aterradas. Já o aterramento das margens Sul, localizadas além do arroio Dilúvio, se deu com objetivos mais imobiliários, além de ter sido planejado.
As modificações na fotografia da orla são um exemplo de como a cidade que ali nasceu se transforma a partir daquele ponto. “A borda do rio Guaíba é o horizonte do viajante e a linha de contorno, frase especial de abertura no texto da cidade de Porto Alegre, moldura de sua natureza e de sua arquitetura, lugar querido e simbólico da capital”, aponta Andréa
Um passeio do Gasômetro ao Lami
Usina do Gasômetro (ao fundo) é uma das obras arquitetônicas mais conhecidas do município
LUIZA PRADO/JCNo atual momento da pandemia do novo coronavírus, o passeio às margens do Guaíba se dá de carro, sem aglomerações, e tem de começar por onde a cidade floresceu: o Centro Histórico. É ali que está o Cais Mauá que, após ser fundamental para o desenvolvimento econômico do município, foi perdendo seu brilho e que, agora, com inauguração do Cais Embarcadero cada vez mais próxima – ainda sem data definida, dependendo apenas do fim da bandeira preta no Estado em razão da pandemia do novo coronavírus -, deve voltar a ser destino dos porto-alegrenses e turistas. O espaço deverá contar com restaurantes, cafés, fast-foods e serviços de passeio pelo Guaíba.
Ainda na região Central, é impossível não dar uma conferida naquela que deve ser a obra arquitetônica mais conhecida do município. Inaugurada em novembro de 1928, a Usina do Gasômetro, que outrora iluminou as noites da cidade com a energia produzida em suas caldeiras, foi desativada em 1974 e voltou a ganhar vida em 1991, quando foi transformada em centro cultural. O prédio com sua chaminé de 117 metros forma com as águas do lago um dos mais belos e marcantes cartões postais porto-alegrenses. Fechada desde 2017, a Usina está em obras, tocadas em ritmo lento, desde janeiro do ano passado. O atual prazo para a conclusão dos trabalhos é fevereiro de 2022.
Primeira parte revitalizada se tornou queridinha da população
Seguindo em direção à zona Sul, o trecho 1 da nova orla é parada obrigatória. Daqui a três meses, o espaço irá completar três anos de inauguração e é um sucesso absoluto. No período pré-pandemia, chegou a receber quase 60 mil pessoas em um único fim de semana.
Novo espaço irá completar três anos de inauguração em 2021. Foto Luiza Prado/JC
A urbanização do espaço intensificou a afinidade de Porto Alegre com sua orla. As festas de Réveillon de 2019 e de 2020, com shows e queima de fogos, por exemplo, aconteceram ali. Projetada pelo arquiteto paranaense Jaime Lerner, a área, que vai do Gasômetro até a Rótula das Cuias, é ponto de lazer, de descanso, de conversas e de chimarrão, de selfies e fotos para as redes sociais, de paquera e namoro, de encontros e reencontros.
Em seu 1,3 quilômetro de extensão, o espaço conta com ciclovia para quem quer dar uma volta sobre duas rodas contemplando o lago, mirantes para quer prefere apenas bater um papo em um final de tarde, quadras esportivas para quem gosta de se exercitar, ancoradouro para quem quer olhar a cidade por um ângulo diferente - do meio das águas do Guaíba -, quatro bares para quando a a fome ou a sede baterem e um restaurante panorâmico que já faz parte da nova paisagem da Capital.
Focado no lazer, trecho 3 deve ser entregue em agosto
A viagem pela orla prossegue, passando pelo trecho 2 – entre a Rótula das Cuias e o Anfiteatro Pôr-do-Sol –, cujo projeto de concessão passa por ajustes e avaliações de mercado e que, conforme a prefeitura, deve ser lançado ainda neste ano. O edital foi suspenso em março do ano passado em razão da chegada do novo coronavírus, o que retraiu os investimentos em projetos grandes como esee. O espaço tem 134,4 mil metros quadrados e 850 metros de extensão e deverá contar com trapiches e uma marina pública, e terá os esportes náuticos como um dos focos.
Em obras, o trecho 3 tem previsão de entrega para agosto deste ano. O espaço de 1,6 quilômetro de extensão, localizado entre a foz do Arroio Dilúvio e o Parque Gigante, terá um investimento de R$ 50,6 milhões e se destinará principalmente ao lazer, com 27 quadras esportivas, ciclovia, três bares, estacionamento para 150 veículos e a maior pista de skate da América Latina, que terá um total de 6.268 metros quadrados e visa tornar a cidade um polo de eventos internacionais do esporte.
"Em nível de atletas, com certeza Porto Alegre, se não é a principal, é uma das principais (cidades do país). Temos alguns skatistas, não só de Porto Alegre, mas do Rio Grande do Sul, fazendo parte da seleção brasileira de skate, outros figurando nos principais eventos do mundo. Porto Alegre estava precisando. Se sem essa estrutura conseguimos produzir tantos bons skatistas no cenário brasileiro e mundial, imagina a partir de agora", afirma o presidente da Federação Gaúcha de Skate (FGSKT), Régis Lannig.
Na zona Sul, as praias em uma cidade com ares do passado
Na sequência do passeio, uma olhadela para a esquerda para ver o estádio Beira-Rio renovado para a Copa do Mundo de 2014 e a Fundação Iberê Camargo, com seu imponente prédio branco, aproveitando para dar uma paradinha na prainha em frente ao museu para contemplar o pôr do sol depois de visitar as obras do artista gaúcho em exposição do outro lado da avenida.
Fundação Iberê Camargo, com seu imponente prédio branco às margens da orla. Foto: Luiza Prado/JC
Enquanto uma volta de bicicleta na ciclovia da avenida Diário de Notícias ou um passeio de catamarã a partir do píer do BarraShoppingSul ainda não são aconselhados devido à pandemia, a volta de carro continua em direção às praias da zona Sul.
Em Ipanema, os banhos nas águas ainda poluídas do Guaíba não são recomendados, mas isso não afasta os públicos de todas as idades que para ali convergem para aproveitar ao ar livre a brisa do lago, praticar esportes, preparar um churrasco, matear à sombra de uma árvore ou simplesmente dar uma caminhada com os cachorros.
Com potencial enorme, a área ainda é pouco explorada e necessita de mais investimentos em infraestrutura, além de aguardara tão esperada balneabilidade para poder se tornar, também, um local em que os porto-alegrenses possam estender usas toalhas na areia, passar o protetor solar no rosto e correr para dar um mergulho sem riscos de se contaminar com a água poluída.
Em Ipanema, os banhos nas águas ainda poluídas do Guaíba não são recomendados. Foto: Mariana Alves/JC
Mais adiante, seguindo, agora, rumo ao extremo-Sul, a cara da cidade começa a mudar, parecendo cada vez menos uma capital importante com quase 1,5 milhão de habitantes e lembrando aquela Porto Alegre de outrora, mais serena, silenciosa e rural, onde o concreto cede espaço para o verde e o tempo passa mais devagar. As praias de Belém Novo e do Lami costumam atrair aqueles que, no verão, não podem ou não querem ir ao litoral. As águas balneáveis permitem que os porto-alegrenses se refresquem com um banho de lago pertinho de casa, sem ter de enfrentar os infindáveis congestionamentos nas rodovias nos fins de semana ou feriados.
O passeio pela orla, já sob o luar, chega ao fim. Muita coisa ficou para trás. Uma foto com a estátua da Elis, uma volta no Cisne Branco, uma corrida no parque Marinha, um jantar no restaurante panorâmico, uma tarde de brincadeiras com as crianças no parque Pontal ou uma velejada nos clubes náuticos.
Praias de Belém Novo costumam atrair quem não pode ou não quer ir ao litoral. Foto: Mariana Alves/JC
Muita coisa ficou para trás, mas, essa é uma das maravilhas da orla do Guaíba: ela está sempre ali. À espera de mais uma visita.