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Memória

- Publicada em 15 de Junho de 2020 às 22:25

A Gripe Espanhola no RS e em Porto Alegre

Enfermaria do Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre, recebeu doentes da pandemia

Enfermaria do Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre, recebeu doentes da pandemia


MUSEU DA BRIGADA MILITAR/DIVULGAÇÃO/JC
A Gripe Espanhola de 1918 foi a maior tragédia sanitária do século passado. Por volta de 50 milhões de pessoas morreram acometidas pelo vírus da influenza H1N1. Há apontamentos que indicam que o total de óbitos pode ter sido o dobro. Não há estatísticas oficiais a respeito da mortalidade da doença no Brasil. Enquanto alguns pesquisadores apontam que foram na casa de 35 mil vítimas fatais, outros falam em até 300 mil óbitos causados pela doença.
A Gripe Espanhola de 1918 foi a maior tragédia sanitária do século passado. Por volta de 50 milhões de pessoas morreram acometidas pelo vírus da influenza H1N1. Há apontamentos que indicam que o total de óbitos pode ter sido o dobro. Não há estatísticas oficiais a respeito da mortalidade da doença no Brasil. Enquanto alguns pesquisadores apontam que foram na casa de 35 mil vítimas fatais, outros falam em até 300 mil óbitos causados pela doença.
O Brasil entrou no mapa da pandemia em setembro de 1918, quando, o navio inglês Demerara, vindo de Lisboa, desembarcou doentes em Recife, Salvador e Rio de Janeiro - que, na época, era a capital federal. Não tardou para a doença chegar em solo gaúcho. "A espanhola chegou ao porto de Rio Grande na manhã de 3 de outubro de 1918, no vapor Itajubá, com 38 tripulantes doentes, que foram recolhidos ao lazareto. No dia 12, o vapor Itaquera, com 32 tripulantes com influenza, atracou no porto de Rio Grande. O vapor Mercedes aportou em Porto Alegre em 16 de outubro, com sete tripulantes doentes", aponta, em artigo, o historiador Moacyr Flores.
O Rio Grande do Sul, na época, tinha um presidente, que se chamava Antônio Augusto Borges de Medeiros. Com o agravamento do quadro, o governo pediu que não se fizesse romaria aos cemitérios para evitar contaminação, e os enterros passaram a ser realizados à noite para não provocar o pânico.
"Em novembro fecharam os cinemas, cassinos, teatros, bares. A Rua da Praia ficou vazia, o tráfego de bondes diminuiu e o silêncio era quebrado pelos uivos dos cães e pelo dobrar dos sinos das igrejas. Faltavam pão e leite, que eram distribuídos de casa em casa por entregadores em carroça. Os alimentos e a lenha, principal combustível da época, dobraram de preço. O limão, o quinino para baixar a febre, e o óleo de rícino para limpar o doente internamente, rarearam e encareceram. Até o frango que se criava no quintal das casas e servia para preparar a canja, alimento tradicional dos doentes, ficou com o preço nas alturas", registra Flores.

Sem controlar a situação, Borges de Medeiros determinou censura a publicações

O Relatório da Diretoria de Higiene do Rio Grande do Sul apontou que o total de óbitos decorrentes da pandemia no Estado foi de 3.971. Para se ter uma noção do número, é preciso levar em consideração a população gaúcha na época, que girava na casa de 2,1 milhões de pessoas. Ou seja, a gripe espanhola causou a morte de 0,18% da população do Estado. Trazido para os dias atuais, esse percentual representaria 20,7 mil mortes no Rio Grande do Sul.
A sociedade se organizava de uma forma diferente em 1918, e os hábitos de saúde também eram distintos. As pessoas evitaram hospitais, pois havia um receio de que o ambiente disseminasse doenças. "Os doentes procuravam os médicos que atendiam em casa, nos consultórios particulares, nas clínicas e, raramente, nos hospitais. Consultavam curandeiros, benzedeiras e até mesmo alunos de Medicina e farmacêuticos recrutados", ressalta o infectologista Stefan Cunha Ujvari.
Porto Alegre contava com sete cemitérios: Santa Casa de Misericórdia, São Miguel, Protestante, São José, Beneficência Portuguesa, Espanhol e o Municipal da Tristeza. "Os coveiros adoeceram, e os corpos se acumulavam no cemitério da Santa Casa. Abriram-se quatro valas, onde enterraram 258 corpos", aponta Moacyr Flores.
A fim de conter a epidemia, Borges de Medeiros dividiu a Capital em 25 quarteirões sanitários e criou, em 30 de outubro, o Comissariado de Abastecimento e Socorros Alimentícios. Cada quarteirão possuía um médico, auxiliado por estudantes de Medicina, que visitavam os doentes.
A pandemia chegou ao ápice em novembro daquele ano. "No auge da crise, foram criados postos de socorro provisórios em algumas escolas; as associações civis e militares ofereceram as suas sedes para serem transformadas em hospitais", destaca Janete.
O recrudescimento do quadro - com o governo perdendo o controle da situação e com o desabastecimento - levou Borges de Medeiros a emitir uma circular determinando a censura policial às publicações referentes à gripe.
Janete reproduz em sua obra uma passagem do jornal O Independente de 1º de novembro de 1918, mostrando como o cotidiano de Porto Alegre mudou. "A cidade tem, durante o dia, um aspecto doloroso e à noite este aumenta, tornando-se fúnebre (...), as casas de diversões fechadas, os cafés, os bares, tudo escuro, dando à capital a forma de uma cidade morta, sem vida (...), raro é o transeunte que anda (...), o êxodo das famílias já é notável, apresentando o centro da capital desolador aspecto."
O clima fúnebre era reforçado pelo dobrar dos sinos das igrejas pelos finados, o que obrigou o vigário geral monsenhor Mariano da Rocha a proibir a prática com vistas a não chamar atenção para a quantidade de mortos.

Precariedade das condições sanitárias da cidade foi fundamental para o impacto da pandemia

No livro "Banalização da morte na cidade calada: a Hespanhola em Porto Alegre, 1918" (Edipucrs, 1998, 162 páginas), a doutora em História Contemporânea Janete Abrão reproduz uma passagem do jornal Gazeta do Povo, em 11 de novembro de 1918, que mostra como os produtos encareceram na Capital. "Desde a luz até o leite, artigos de primeira necessidade, tudo está pela hora da morte, deixando o povo debatendo-se numa série de dificuldades."
Os tratamentos indicados envolviam desde lavagens estomacais, purgantes, infusões de folhas, chá de eucalipto, cachaça com mel e limão, gargarejos, e, principalmente, o quinino, que era recomendado por dois dos mais conceituados médicos da cidade na época e que hoje são nome de rua e avenida: Mario Totta e Protásio Alves.
A pandemia enfraqueceu no começo de dezembro. A movimentação na Capital começou a voltar ao normal; o comércio, a reabrir; e a Rua da Praia, a receber os caminhantes nas tardes do verão. "Analisando a trajetória da epidemia em Porto Alegre, pode-se afirmar que o impacto da Gripe Espanhola de 1918 na cidade foi, em boa parte, resultado da precariedade das condições sanitárias que prevaleciam na capital do Estado", afirma Janete.
Na pesquisa para a sua obra, a historiadora pôde comprovar como a estrutura de saúde da cidade era ruim e como isso, somado a todas as outras precariedades de infraestrutura - saneamento, recolhimento de lixo, abastecimento e tratamento de água, entre outros -, influenciou no impacto da pandemia. "Em 1918, a cidade de Porto Alegre dispunha de seis estabelecimentos (de saúde), entre instituições oficiais e particulares. (...) O funcionalismo estadual contava com 4.732 pessoas. Na área da saúde, este número era de 56 indivíduos, um dos menores quadros de funcionários dentre todas as esferas governamentais", salienta. O resultado foram 57 de dias de horror.
Foram 1.316 óbitos atribuídos à influenza na Capital durante a pandemia. À época, Porto Alegre tinha uma população de 192 mil habitantes. Ou seja, a Gripe Espanhola matou 0,68% da população da cidade. Se fosse hoje, seriam 10,1 mil vítimas fatais em Porto Alegre.