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Uma nova lei para os prédios históricos de Porto Alegre
Projeto da prefeitura altera critérios e pode provocar modificações no atual inventário
As primeiras sessões plenárias da Câmara de Porto Alegre em 2019 devem debater uma proposta de grande impacto no futuro dos imóveis de interesse histórico na Capital. O projeto de Lei nº 7/18, referente à nova Lei de Inventário da cidade, abre margem para alterações na situação de cerca de 5,5 mil imóveis listados no município, sendo também de interesse para futuros empreendimentos na área da construção civil.
Encaminhado pelo Executivo em junho, o texto para regulamentação do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis da Capital chegou a entrar na ordem do dia no último dia 17 de dezembro, mas não chegou a ser votado antes do recesso. Assim, salvo uma pouco provável convocação extraordinária durante as férias, as possíveis mudanças devem ser aprovadas (ou não) em fevereiro, quando a Câmara retorna aos trabalhos.
A necessidade de um novo regramento cresceu a partir do ano passado, quando a legislação anterior do município foi revogada. A alegação dos vereadores, que aprovaram a medida por 24 votos a três, é de que a Lei Complementar nº 601, que estava em vigor desde 2008, era inconstitucional por vício de iniciativa, além de gerar confusões e prejuízos pela falta de mecanismos claros de implementação. Embora o fim da lei não tenha afetado a proteção já aplicada aos imóveis inventariados, a cidade vive uma espécie de vácuo desde então, sem diretrizes para a proteção de suas edificações históricas.
A nova proposta legislativa é específica para os mecanismos de proteção na esfera municipal, sem influenciar nos pouco mais de 100 imóveis tombados como patrimônio histórico, que são protegidos por lei federal. As estruturas listadas como de estruturação se mantêm merecedoras de proteção e conservação, enquanto os itens de compatibilização seguem cumprindo a função de preservar as características da paisagem onde o imóvel tombado ou inventariado está inserido.
A diferença é que, pela proposta, os imóveis de compatibilização poderão ser derrubados e substituídos por outras edificações, utilizando a volumetria respectiva ao imóvel original. Há também a possibilidade de flexibilizar esses parâmetros, através de projeto especial, desde que as contrapartidas resultantes sejam aplicadas na manutenção, preservação e valorização de imóveis listados como de estruturação. Assim, a proposta a ser examinada na Câmara eliminaria, na prática, os limites de altura hoje previstos para imóveis de compatibilização.
Quanto aos itens estruturantes, o proprietário poderá realizar, caso aprovada a lei, a transferência do potencial construtivo que poderia ser exercido no terreno, caso não tivesse ocorrido a inclusão no inventário. Além disso, há previsão de incentivos construtivos para projetos em terrenos onde exista alguma estrutura inventariada, desde que a nova construção não prejudique a preservação do imóvel protegido, além da inclusão em programas de incentivo à cultura.
Para inclusão no inventário, cinco critérios técnicos serão avaliados, levando em conta instâncias históricas, técnicas, morfológicas, paisagísticas e de conjunto. A Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) deve ter seis meses para o estudo prévio, prorrogáveis por igual período. Encerrado esse prazo, o imóvel fica de fora da proteção, e não poderá ser reavaliado antes de 48 meses. Também é prevista a possibilidade de revisão dos imóveis inventariados até agora, a partir de solicitação dos proprietários.
O novo texto também estabelece obrigações para os proprietários de imóveis inventariados, além de punições para os que não fizerem a conservação ou descaracterizarem, no todo ou em parte, as estruturas. No momento, o projeto lista 18 emendas, que também serão votadas quando o tema retornar à pauta da Câmara.
Possível mudança em imóveis de compatibilização é um dos principais pontos da proposta
"A iniciativa do inventário é boa, mas o mecanismo foi usado de forma desmedida", afirma Nelson Marisco, procurador-geral adjunto do município e um dos principais responsáveis pela proposta de nova lei. Em sua visão, a ausência de critérios objetivos e a falta de contrapartidas efetivas redundaram em uma situação que, na prática, inviabilizava a preservação. "Apenas ia-se congelando imóveis, com uma varinha mágica, sem oferecer benefícios como (isenções de) IPTU e índices construtivos."
Embora admitindo que há associações ligadas ao patrimônio histórico que se mostram "reticentes" com algumas mudanças, Marisco acentua a necessidade de critérios mais claros para a inclusão e manutenção no inventário. "Ouvi mais de uma vez que o fundamento (para compatibilização) é um sujeito de estatura mediana olhar para o imóvel, levantar o braço em uma linha imaginária rumo ao horizonte e dizer que é até aquele ponto que pode ser construído. Acho muito frágil", argumenta.
Marisco cita como exemplo o antigo Cine Astor, no bairro São Geraldo. A fachada do imóvel, construído em 1922, será preservada, enquanto o restante do terreno abrigará um hotel. A licença de instalação foi liberada em janeiro de 2018 pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade, mas as obras do novo complexo, que será administrado pela Endutex Hotéis, avançaram pouco desde então.
"Nossa avaliação é que essa lei tem alguns problemas graves, que podem inclusive fazer com que ela seja declarada ilegal, caso aprovada", afirma Rafael Pavan dos Passos, presidente da seção gaúcha do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS). Entre os problemas, ele afirma que o texto não foi devidamente apreciado pelo Conselho Municipal de Patrimônio, além da falta de audiências públicas. Pavan também critica a mudança nos critérios de compatibilização. "Se essa lei vigorar, vamos começar a ver aquelas loucuras do bem tombado estar bonito, mas inserido em um contexto urbano completamente absurdo", critica.
"Porto Alegre é muito cruel com sua história. Para mim, tinha que inventariar mais. Vários lugares, como a Vila João Pessoa, não estão no inventário, e as pessoas estão modificando as residências à revelia", diz Frederico Bartz, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e que pesquisa imóveis associados ao passado operário da Capital. Ele critica a possibilidade de mudança no status protetivo dos imóveis de compatibilização. "Me agrada saber que estamos em uma cidade em que ainda se consegue enxergar processos arquitetônicos, expressos em suas ruas. Trocar isso por um espigão pós-moderno é uma desgraça."