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Ações afirmativas do Bahia viram exemplo para clubes brasileiros
Barros mostrou campanhas, como a contra a homofobia: 'não há nenhum impedimento'
MARCO QUINTANA/JC
Patrícia Comunello
Na noite desta segunda-feira (21), o Esporte Clube Bahia entrou em campo com uma camisa com manchas pretas e um alerta: "O problema é seu, o problema é nosso". Quem está ligado no clube baiano não se surpreende com a peça. Nesta ação, a renda da venda da série será revertida para ajudar voluntários no combate ao óleo derramado no Litoral do Nordeste. Entrar em campo ou mostrar fora dele campanhas de mobilização ambiental, contra o racismo, homofobia, assédio a mulheres, citando algumas, virou marca registrada do Bahia que já influencia outros clubes, como a dupla Grenal, de Grêmio e Inter, no Rio Grande do Sul.
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Na noite desta segunda-feira (21), o Esporte Clube Bahia entrou em campo com uma camisa com manchas pretas e um alerta: "O problema é seu, o problema é nosso". Quem está ligado no clube baiano não se surpreende com a peça. Nesta ação, a renda da venda da série será revertida para ajudar voluntários no combate ao óleo derramado no Litoral do Nordeste. Entrar em campo ou mostrar fora dele campanhas de mobilização ambiental, contra o racismo, homofobia, assédio a mulheres, citando algumas, virou marca registrada do Bahia que já influencia outros clubes, como a dupla Grenal, de Grêmio e Inter, no Rio Grande do Sul.
Para o clube baiano, que desde 2018 tem seu Núcleo de Ações Afirmativas, o impacto vai além das causas, pois aumenta a associação, que, para um time que foi bicampeão brasileiro e que não conquista o título brasileiro há 30 anos, é um caminho para captar receitas e gerar mais ativos intangíveis. Na semana passada, o gerente de Comunicação do Bahia, o jornalista Nelson Barros Neto, contou, em Porto Alegre, em um bate-papo organizado pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, no Foothub, como surgem as iniciativas, os cuidados e como buscam sensibilizar torcidas dentro de casa e até de adversários.
Ele também teve encontros com áreas do Grêmio e Inter que estão formatando ações de responsabilidade social e afirmativas. Dentro de campo, o Bahia acabou vencendo o Tricolor na Arena. O Observatório lidera a campanha #ChegaDePreconceito, cuja camiseta embalou o clima para declarações do técnico do Bahia, o gaúcho Roger Machado, sobre as desigualdades sociais e racismo no Brasil, não só no futebol. Barros avalia este momento e quanto mais mudanças podem vir por aí.
Jornal do Comércio - O que significou a declaração do Roger há mais de uma semana sobre racismo e que viralizou?
Nelson Barros Neto - A declaração de Roger foi surreal. Havíamos feito a ação com o Observatório da Discriminação Racial do Futebol antes da partida com o Fluminense, que reuniu os dois únicos técnicos negros na Série A do Brasileirão, Roger e Marcão. O próprio Roger disse que o Bahia empodera ele, o que deu a coragem e o sentimento de que podia fazer uma declaração supostamente mais polêmica ou mais profunda ou algo que não se fala porque o clube vai abraçar. Desde que ele chegou ao clube, em maio, trocamos experiências, falamos de racismo e ações afirmativas, e, com certeza, muito do que ele falou é de coisas que já conversamos no dia a dia. O fato de o Bahia participar e dar esse respaldo ajudou bastante.
JC - A manifestação do Roger foi prevista ou não era esperada com aquele conteúdo que extrapolou o racismo dentro dos estádios?
Barros - Foram as duas coisas. Com certeza, ele sabia que este assunto ia vir na coletiva, pois teve a ação pré-jogo, quando ele e o técnico do Fluminense vestiram a camiseta da campanha #ChegadePreconceito. O negro é protagonista dentro de campo como jogador - o nosso maior craque, o Pelé, é negro -, e quando chega nas funções de direção e comissão técnica há o domínio de brancos. O que ele falou mostrou que estava por dentro, que tinha dados, muito repertório. Nos surpreendeu porque ele poderia ter dado uma resposta rápida e sem tanta intensidade, mas optou por ser enfático e ainda coincidiu de entrar ao vivo no SportTV na parte mais contundente.
Roger (esquerda) e Marcão vestiram a camiseta da campanha #ChegaDePreconceito em jogo no Rio. Foto: Twitter/Reprodução
JC - Este fato pode acelerar as ações no futebol?
Barros - Acredito que sim, sempre que voltar este tema, a entrevista dele será lembrada, pois ela é muito emblemática. O Roger mesmo comentou depois comigo, por WhatsApp, que achava estranho tanta repercussão, pois ele só havia falado verdades. Mas justamente por isso é mais difícil de ouvir tão direto como o Roger foi. Ele sabe que está sendo um agente transformador e que sua voz pode ser mais ouvida que os nossos dirigentes ou nossas ações. Ele é um jogador vitorioso, com muitos títulos e hoje treinador de Série A, fazendo uma boa campanha com um time do Nordeste.
JC - Essas ações emplacam por que tem o apoio dos baianos. Daria certo em outros clubes ou regiões do País?
Barros - Com certeza o fato de estar na Bahia, no Nordeste, lugares que hoje em dia viraram a resistência em termos políticos no Brasil, ajuda. Se a gente estivesse em um ambiente mais hostil, teríamos mais dificuldade. Não sei se outros clubes em outros estados conseguiriam fazer isso. O fato é que mesmo tendo o apoio da maioria fomos ganhando novas adesões, não necessariamente de quem tinha o mesmo pensamento.
JC - Outros clubes do Brasil poderiam seguir o exemplo?
Barros - A gente quer que todos façam. Temos percebido que, graças às nossas ações, vários clubes estão aos pouquinhos realizando ações em parceria e nos procurando. O Grêmio está com um projeto de responsabilidade social. O Inter lançou uma diretoria de inclusão. Aos poucos, algumas coisas estão surgindo, assim a gente ajuda a mudar o mundo.
JC - Como surgiu esse movimento dentro do clube?
Barros - O Bahia lançou o Núcleo de Ações Afirmativas (NAA) em janeiro de 2018, mas a iniciativa só ganhou uma dimensão maior em novembro do ano passado, quando fizemos a campanha do Novembro Negro, que foi um divisor de águas e que repercutiu muito na mídia. As ações só cresceram e fomos ganhando admiradores e simpatizantes. As pessoas se referiam ao segundo time, o Bahia. A partir de abril deste ano, teve outro momento importante, pois foi quando começamos a fazer os vídeos mais elaborados, mais cinematográficos, contratamos uma pessoa específica para isso. O primeiro foi o abril indígena em defesa dos povos indígenas. Logo depois, em maio, fizemos um vídeo que considero o mais importante, pois ataca todos os grandes temas. O abril indígena repercutiu, mas recebeu muitas críticas de parte da torcida, ligada a questões políticas e ideológicas. No trabalho seguinte, nos preocupamos em fazer um vídeo usando crianças, que deixa o público naturalmente mais admirado e com boa vontade, já que é algo mais bonitinho e mais fofo. Gravamos em uma favela em Salvador e foi tudo muito espontâneo. As falas ficaram muito bonitas. A partir daí conseguimos amaciar quem havia criticado o anterior. Brincamos na hora de fazer o briefing, antes de da gravação, que era como no período da ditadura, quando os artistas tinham que ser muito criativos nas músicas: Chico Buarque, por exemplo, compôs Cálice, que, na verdade, era Cale-se. Então, decidimos que íamos tentar fazer algo mais sutil para driblar as críticas e os preconceitos para emplacar. Continuamos a ter críticas, mas a maioria das pessoas abraça as ações, protegem e defendem o que o Bahia faz e rebatem os críticos. O fato de ser de Salvador, da Bahia, do Nordeste, influencia positivamente, pois é um lugar que está tendo mais resistência no País, com pensamento mais progressista.
JC - Muitas reações são associadas a este contexto político?
Barros - Com certeza. Um internauta conhecido no estado criou um perfil chamado Endireita Bahia, insinuando que o clube é supostamente de esquerda. Só que os temas que abordamos não pertencem à esquerda. Se for isso, tem algo errado, pois educação é para todo mundo e a demarcação de terras indígenas está prevista no artigo 237 da Constituição Federal. A gente defende causas humanitárias. O presidente do clube, Guilherme Bellintani, faz questão de dizer nas entrevistas: 'a gente não está tentando colocar o Bahia para um lado ou outro nessa disputa desse fla-flu eleitoral que o Brasil está se tornando ou já se tornou há muito tempo'. O clube defende as causas porque acreditamos que o futebol é um canal de potencialização de intolerância, violência e ódio, mas também do amor e de muitas coisas boas e preferimos escolher este lado.
JC - O nível de adesão às vezes surpreende já que o futebol mistura sentimentos tão díspares?
Barros - Sim, a gente não consegue ficar insensível. Ficamos muito honrados com as histórias de vida que são contadas nos comentários nas redes sociais. Vira e mexe tem torcedor do Vitória, que é o nosso maior rival, que nos encontra e se manifesta dizendo: "estou odiando isso, pois tô quase virando Bahia" (risos) e "meu time não faz nada assim". Não só na Bahia, em outras regiões do País e estados do Nordeste, também recebemos estas manifestações. Tem muita rivalidade da Bahia com Pernambuco no futebol, como com o Sport de Recife, cujos torcedores também dizem que simpatizam com a gente. Isso é muito forte. Como se fosse torcedor do Inter em relação ao Grêmio. Quando fizemos um vídeo como o de pessoas sem paternidade, abordando casos de filhos sem pais registrados, recebemos uma chuva de mensagens de histórias verdadeiras, de pessoas que se viram retratadas na campanha e que choraram.
JC - Essas ações estão influenciando outros times ou o ambiente do futebol é muito conservador e resiste a encarar seus preconceitos?
Barros mostrou campanha que combate o assédio a mulheres nos estádios. Foto: Marco Quintana/JC
Barros - O ambiente do campo de futebol é refratário. Por exemplo, as mulheres sofrem muito assédio. Elas acabam indo acompanhadas aos jogos porque, se forem sozinhas, são muito abordadas. Pior ainda em relação à homofobia. Ouve-se muitos cânticos homofóbicos o tempo todo nos estádios. O racismo está presente, principalmente se o jogador negro faz um gol, e a torcida adversária reage com xingamentos. A Sociologia e Antropologia estudam esses ambientes, que seriam locais onde as pessoas despejam suas mazelas e agruras como se supostamente fossem legitimados. Não queremos proibir xingamentos ou insultos nos estádios, mas que isso não passe por manifestações de racismo, homofobia etc, que seja apenas de crítica ao desempenho do jogador. Por que pode tudo no futebol? Estamos questionando isso.
JC - Faltam iniciativas? As que surgem são mais reativas, porque algum fato colocou o racismo, por exemplo, na pauta?
Barros - Com certeza. Em vez de algo sistemático, as campanhas são motivadas por um fato específico no jogo ou na arquibancada. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), ligado à CBF, lançou uma cartilha proibindo os cantos homofóbicos nos estádios. Para algo acontecer mesmo, tem de ameaçar com punição. Se houver alguma situação, podem tirar pontos, etc. Infelizmente, precisamos ainda que tenha punição para que se faça alguma coisa. No Bahia, achamos que não tem de esperar por punição, temos de agir, pois acreditamos no mundo com essa diversidade. Mas temos visto evolução sim, e temos o caso da dupla Grenal no Rio Grande do Sul. Os times começaram a se movimentar. Conversei com as pessoas que estão trabalhando nas iniciativas, já teve ação do Grêmio e Inter com o Bahia este ano com apoio do Observatório de Racismo. Há outros pelo Brasil. Espero que as campanhas aconteçam.
JC - Como são boladas as campanhas?
Camisa simulando manchas de óleo terá receita da venda revertida para ações de voluntários. Foto: Twitter/Reprodução
Barros - Em regra, pensamos e debatemos muito antes de colocar uma campanha na rua. Tentamos vislumbrar as reações, para evitar o que não seria positivo. É o que vale para outros temas que o clube pode divulgar. As áreas de comunicação têm o cuidado de fazer postagens com a mínima chance de gerar polêmica. Sabemos quais palavras devem ser usadas e o que pode gerar confusão com o rival. Da mesma maneira, com as ações afirmativas. Claro, que muitas vezes temos de ter coragem para enfrentar esses temas. Também tem as sacadas de oportunidade que fazemos no improviso e que são normalmente as mais legais.
JC - As ações afirmativas impactam as receitas do clube, como aumentam o número de sócios?
Barros - Não adianta ser só bonitinho, amoroso e não ter patrocinador. Temos de agir comercialmente, captar patrocínios. O Bahia consegue mais sócios e vende mais camisas por causa das campanhas. Muitas pessoas de outros estados que nem são torcedores falam que estão comprando camisetas da coleção casual que traz a temática Clube do Povo. Tem este retorno e ainda o ganho intangível ligado à imagem institucional que não temos como medir. Inclusive, em função disso, as Casas Bahia lançou um vídeo do Dia dos Pais semelhante à nossa campanha. A rede viu uma proximidade com a gente e nos procurou para fazer algo conjunto. Claro, que queremos. A Casas Bahia já coloca bastante dinheiro em patrocínio de futebol. E temos tudo a ver, do nome às cores, né (risos). Trocamos figurinha. No Dia dos Pais, entramos em campo com a camisa da rede. E já está certo que o mobiliário do novo centro de treinamento do Bahia, para onde vamos nos mudar em 2020, será todo mobiliado pela rede. Eles se comprometeram devido às causas sociais.