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Para Lilian Dreyer, legado de Lutzenberger é buscar a natureza como inspiração
Reconhecido e criticado pelo mesmo motivo - lutar intensamente contra a destruição da natureza -, José Lutzenberger foi incompreendido em muitos momentos. Quem avalia é Lilian Dreyer, jornalista e autora de "Sinfonia Inacabada", biografia romanceada sobre a vida do ambientalista que morreu há 20 anos em Porto Alegre, cidade onde nasceu.
Lutz, como é comumente chamado, mobilizou o grupo que fundou a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e foi seu principal expoente. Travou lutas contra empreendimentos que poluíam a cidade, sendo uma das principais o enfrentamento ao mau cheiro e descarte sem controle, no Guaíba dos dejetos da Borregaard (que se transformou na Riocell, passou para a Aracruz e hoje é a CMPC).
Anos mais tarde, aceitou trabalhar como consultor da Riocell, prestou o mesmo serviço a curtumes e outras empresas, e foi secretário nacional de Meio Ambiente (equivalente hoje a ministro) de Fernando Collor (1990-1992). Estava "sentando com os pecadores", lembra Lilian sobre as críticas feitas a Lutzenberger na época.
Isso não fazia dele uma pessoa contraditória, sustenta a jornalista, e sim retrata a compreensão que teve de que não era possível "zerar" as coisas que preferia que não existissem. Para ele, "a época do puro confronto tinha passado" e "era chegado o momento de propostas".
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Lilian Dreyer recorda passagens de José Lutzenberger, apresenta a sua percepção de como ele encarava o passado de trabalho para a indústria química, na Basf, e fala do legado que Lutz deixou para a atual e as futuras gerações.
Jornal do Comércio - Como foi contar a história de José Lutzenberger em livro e qual o seu envolvimento com o personagem?
Lilian Dreyer - Eu estava terminando a faculdade de jornalismo e esses nomes começaram a pipocar toda hora na mídia, do Lutz, da Magda Renner, Giselda Castro, Augusto Carneiro, o professor Flávio Lewgoy, o Sebastião Pinheiro, a Hilda Zimmerman, sempre muito combativos, e o Lutz meio que na frente. E as pessoas tinham uma bronca: "esses caras são contra tudo, estão sempre se queixando de tudo, reclamando". Comecei a ler alguns textos e a achar uma visão tão inovadora sobre tudo, o mundo, as coisas de um modo geral, que não tinha nem coragem de me aproximar. Comecei a colecionar os textos do Lutzenberger e um dia reuni tudo, dei uma editada básica e bati na porta dele lá na (rua) Jacinto Gomes, me apresentei e disse "isso dá um livro". Não tinha nenhum livro, fora o Manifesto Ecológico. Ele gostou da ideia e a partir daí acabei fazendo a revisão e editando textos deles, fazendo contato com editoras. A gente se aproximou e nos tornamos amigos, conhecidos muito próximos.
JC - Isso foi lá pelos anos 1980...
Lilian - Isso, anos 80, principalmente depois, nos 90. E eu vinha há muito tempo falando que queria fazer um livro de memórias e ele topou, para o meu espanto, porque o Lutz era muito arredio para falar da vida pessoal. Lá pelo ano 2000 um dia encontrei com a Beth, mulher dele na época, que disse: "o Lutz não está bem, se você quer fazer alguma coisa, é agora". Levei um tranco, porque certas pessoas a gente imagina que não vão desaparecer nunca. Começamos os encontros gravando, ele contando memórias, no começo repetindo coisas que já tinha escrito, era muito panfletário, uma característica de todos, sempre dando discurso. Mas consegui aos poucos pegar memórias de infância. Só que no meio desse processo ele morreu, de repente. Quando eu voltei do enterro no Rincão Gaia, pensei: "E agora? Esse material é riquíssimo, mas não está pronto ainda para ser um livro. O que eu vou fazer agora?". E parti então para pegar a história e reconstituir, fazer uma linha do tempo e conversar com todas as pessoas com quem ele interagiu. Isso daria vários volumes se fosse colocar todas as coisas importantes que aconteceram. Mas, com as mais centrais, acabou virando uma biografia. E esse tom mais romanceado, achei que era cabível porque é uma história muito intensa. Gostei do resultado e teve uma receptividade muito boa.
JC - O jornalista Fernando Albrecht me disse que o Lutzenberger foi muitas vezes incompreendido. Como ele era tratado na época?
Lilian - Muita coisa eu vim a entender do Lutzenberger depois que ele morreu, quando fui fazer essa pesquisa da vida dele. Até então, vários anos de convivência, eu não tinha noção do que tinha sido a vida dele antes desse cometa aparecer aqui no movimento ecológico, e no mundo todo ele rapidamente conquistou muita visibilidade. Só depois eu vim a descobrir como tinha sido complicado todo esse processo de passagem de executivo de multinacional muito bem remunerado, levando uma vida tranquila, e abrir mão disso tudo para vir para o Brasil, na época sob ditadura, para tomar frente de um movimento como esse. Foi realmente uma ruptura dentro dele, o Lutz não conseguiu mais viver a contradição que tinha vivido até então. Ele disse numa ocasião: "Chegou um momento que eu não consegui mais aceitar que eu levantava todos os dias para envenenar as pessoas que eu dizia que gostava e que estava defendendo". No Rio Grande do Sul ele viu coisas muito graves acontecendo, espécies de pássaros estavam, já naquela época, desaparecendo em função do tipo de veneno que se usava. Isso deixou o Lutz muito impactado. Ele era destemido, essa é uma coisa notável neles todos, como iam de peito aberto para esses confrontos que acabaram enfrentando. E a gente pensa: poxa, e hoje, o que restou disso tudo? Quanta coisa eles impediram que acontecesse, quanta coisa ruim poderia ter se tornado muito pior ou não teria melhorado se eles não tivessem tido essa ação tão corajosa.
JC - Um enfrentamento que marcou foi contra a empresa Borregaard.
Lilian - Isso, a própria Borregaard, que era uma coisa terrível para a cidade toda, para toda a região, eles conseguiram reverter. Conseguiram inclusive uma coisa notável na época, trazer lideranças de diferentes partidos políticos para essa causa, que aderiram ou pelo menos parcialmente defendiam determinados aspectos. O Rio Grande do Sul foi muito privilegiado desses cometas terem passado aqui. Foi um período curto, mas foi uma coisa muito intensa, necessária e importante.
JC - Que antecipou debates da pauta ambiental hoje…
Lilian - Sim. A própria arborização urbana, Porto Alegre era considerada uma das cidades com melhor índice de árvores por habitante e isso hoje precisa ser retomado, aliás sempre. Era uma das grandes bandeiras do Carneiro também. Se esses caras não tivessem se mexido lá atrás, coisas muito irreversíveis teriam acontecido. Essa história e as bandeiras deles tem que ser retomadas. Com um acréscimo muito importante: o Lutz nos últimos 15, 20 anos de vida, sempre era muito claro a respeito de que a época do puro confronto tinha passado, que era chegado o momento de propostas, que quem queria um outro modelo, baseado na convivência ecológica e equilibrada dos seres, precisava ter também propostas.
JC - Isso rendeu críticas a ele?
Lilian - Isso foi outra fonte de incompreensão. Naquela época muita gente falava: "o Lutz sentava com os pecadores". Ele se sentava com as pessoas a quem criticava, empresas, indivíduos, tanto faz. Ele dizia como fazer e alguns disseram: "então vem fazer". E ele foi, e foi duramente atacado.
JC - No trabalho de consultoria a empresas como a antiga Borregaard e junto ao governo Collor?
Lilian - O fato de ter ido para o governo, o fato de ter dado consultoria para empresas, várias, curtumes também, para dizer: "vocês não precisam poluir dessa maneira". O que que ele compreendeu? Que não daria para simplesmente "zerar" tudo. Algumas dessas coisas que ele preferiria que não existissem, mas existiam, eram a fonte de subsistência de muita gente, fonte de riqueza de outras pessoas também, e isso não ia simplesmente acabar porque alguém queria que acabasse. Teria que fazer um processo de conscientização, de mudança paulatina, e trabalhar dentro do que havia para tornar menos ruim, e aí sim começar a trazer novas propostas. Um texto primoroso, que saiu num dos primeiros livros dele, Do Jardim ao Poder (L&PM), sugere que a gente se espelhe nos sistemas naturais, porque ali não existe hegemonia, não existem dominações. O que existem são constelações de equilíbrios e esse era o sonho dourado do Lutzenberger, que a gente começasse a imitar a natureza ao construir os nossos processos. Que não se produzisse lixo - resíduo vai ter, mas não lixo. Não era simplesmente minorar a poluição, era tirar ela do caminho. Não se poderia fazer isso de um dia para o outro, mas poderia ir refazendo processos, redesenhando, redimensionando. Essa era o grande desejo do Lutz e que ele mais batalhou para a gente entender.
JC - Você disse que era difícil o Lutzenberger falar da vida pessoal, principalmente do passado. Isso refletia uma vergonha ou receio de ser julgado pelo que fazia antes?
Lilian - Eu me perguntei muitas vezes isso, e é uma pergunta que não pude fazer a ele. Acredito que não. Ele dizia: "eu nunca olho para trás, eu sempre olho para frente". Acho até que ele tentava evitar que se fizesse uso de qualquer natureza disso. Ele não saiu (da Basf) brigado com ninguém. Simplesmente foi uma coisa dele com ele, com a família. Poderia inclusive ter feito um uso político a seu favor, dizendo "larguei tudo, larguei uma grana…", e não fez isso. Mas não, ele não se envergonhava, pelo contrário, acho que ele se orgulhava da coragem que teve, da decisão que tomou.
JC - O período trabalhado nessa indústria ajudou a formar a compreensão para a luta que ele manteve depois?
Lilian - Certamente. Quando ele foi trabalhar na Basf, era a época do adubo químico, e naquele tempo não tinha grande crítica, embora ele começasse a questionar se era necessário, se era uma boa prática produzir adubo sintético, transportar para outros continentes e explorar petróleo em função disso. Ele logo conectou pontinhos. O grande problema surgiu na década de 1960, quando a Rachel Carson publicou "Primavera silenciosa" e ele viu o quanto ela estava sendo perseguida por combater o DDT, que hoje está banido no mundo todo. Ele tinha um conhecimento muito bom de química e rapidamente entendeu que não ia dar coisa boa. Foi bem difícil dar esse salto da vida tão confortável que ele tinha com a família para o desconhecido. Acho que ele mais se orgulhava, mas não gostava mesmo de misturar a vida pessoal. Ele já estava muito exposto, imagina se começasse a abrir o passado.
JC - Você falou das críticas que ele recebeu por prestar consultorias para as empresas que criticava. Ele não era contraditório?
Lilian - Não, não, de maneira alguma. A Magda Renner, por exemplo, quando ele disse que ia dar consultoria para a Riocell, que estava jogando aquele lodo no Guaíba, me parece que foi nesse episódio que ela disse: "tu não podes fazer isso", e o Lutz respondeu: "mas eu tenho que fazer". A mesma coisa quando ele assumiu o Ministério. Hoje vejo como o Lutz tinha uma mente focada. Ele pensava naquele objetivo final, por exemplo: "quero impedir que o Guaíba vire um poço de lama, o que tenho que fazer para isso? Vou ter que passar por cima de algumas coisas para chegar mais adiante nesse resultado…". Ele fez isso com os curtumes, com várias coisas. Acredito que ele às vezes deve ter se arrependido. Ele confiava nas pessoas de uma maneira indevida e talvez tenha pensado: "puxa vida, era melhor que eu não tivesse feito tal coisa". Não sei, pra mim ele nunca falou. Mas contraditório ele nunca foi. Tudo que eu pude testemunhar e todas as pessoas com quem conversei, até as que não gostavam muito dele, ninguém percebeu nunca esse tipo de contradição.
JC - Você sabe disso pela convivência?
Lilian - Acontece uma coisa tão estranha, à medida que o tempo passa é que eu tenho a noção do privilégio de ter tido esse tempo de convivência. E como às vezes não se percebe que os grandes mestres estão à volta. Ele mudou minha visão de mundo. Não me tornou menos crítica em relação a ele, no meu trabalho como jornalista eu tinha que puxar isso. Mas na época eu não tinha ainda percebido o quanto ele era inspirador para mim. Hoje tenho essa clareza que ele foi um mestre mesmo, ele é um mestre, ainda tem muito a ensinar. Faço muita questão de que a figura dele, o que ele disse e escreveu continuem vivos, não por um culto à personalidade, que era uma das coisas que ele mais detestava, mas pelo que tem de vivo nisso, pelo que tem de importante. Depois daquele grupo não surgiram mais pessoas tão destemidas, grupos assim que enfrentam tudo para recolocar algumas coisas importantes em foco, com essa intensidade.
JC - Qual é a validade do trabalho que Lutzenberger e o movimento fizeram naquela época?
Lilian - O Lutz mesmo dizia que estamos andando numa rota de exclusão, ou a gente muda ou a gente muda. Porque na natureza, nenhuma espécie se torna tão proeminente, se multiplica tanto e consome tanto o seu ambiente. Nesse aspecto, ele temia não pela sobrevivência do planeta, que tem bilhões de anos pela frente e se regenera, mas a humanidade corre risco. Ao mesmo tempo, achava que não é possível que o ser humano, que desenvolveu uma mente tão fantástica, se autocondene à extinção. Então eles tinham também esperança. Dessas pessoas com quem eu convivi, nenhuma foi realmente catastrofista. É uma herança bendita que nos legaram, não só do que sacaram e nos contaram, mas também desse exemplo de coragem, de saberem superar diferenças individuais em função de compor para conseguir ter as conquistas que tiveram. Sob todos os aspectos, devemos nos mirar no exemplo. E continuar, não temos muita outra opção.
JC - Como Lutzenberger poderia avaliar algumas das pautas atuais?
Lilian - Todo este grupo, não vejo exceção, seria hoje completamente contrário a essa proposta de mineração em terras indígenas, eles seriam completamente contrários à Mina Guaíba, e todos certamente estariam muito engajados na luta contra a destruição da Amazônia. Eram pontos centrais para esse grupo.
JC - O que você aponta como o legado de Lutzenberger para a sociedade hoje e para as gerações que estão por vir?
Lilian - Pessoas com essa coragem pessoal não são muito comuns, isso por si só as destaca. E não é que todo mundo tenha que ser assim, mas o Lutzenberger tinha muita coragem, ele e outros que o acompanharam. E cada um adaptar isso à coerência. Era essa a palavra que eu buscava para o que tu me perguntaste antes. Ele era muito coerente, pelo que conheci dele, pelo que pude perceber a partir de todas as pessoas com quem conversei. Não necessariamente tem que ter a mesma coragem de enfrentar de peito aberto desafios terríveis, mas saber defender aquilo que realmente sente como uma verdade. Ele teve um legado como um ser humano muito diferenciado, e talvez a principal mensagem seja de nos espelhar mais na natureza que nos deu origem para criar novos modelos de fazer as coisas. A natureza não cria lixo, o dejeto de um sistema é alimento do outro. Não são coisas tão difíceis de replicar se a gente observa. Esse profundo amor que ele tinha tanto à natureza quanto a todos os seres da natureza, inclusive o ser humano, ele e o grupo que o acompanhou deixaram muito forte esse legado, talvez o principal de tudo.
Perfil
Lilian Dreyer é jornalista e escritora. Formada em Jornalismo pela UFRGS, tem trajetória profissional ligada a recursos audiovisuais para educação e desenvolvimento cultural. Roteirista e diretora de vídeos, editora de jornais e livros e coordenadora de projetos culturais, assinou iniciativas como os Calendários da Agricultura Ecológica (2001/02) e a Ecofesta - a Marca da Ecologia na Cultura Gaúcha (2005), na Feira do Livro de Porto Alegre. Em 2006 recebeu o título de patrona da Feira do Livro do município de Picada Café, no Rio Grande do Sul, festival cultural que culminou com a inauguração da Biblioteca José Lutzenberger, localizada dentro do parque de preservação ambiental da cidade. Tem diversos livros publicados, dentre os quais Sinfonia Inacabada (Vidicom Edições/Minc), biografia do ecologista José Lutzenberger, e Depois de Tudo (PeloPlaneta), retrato biográfico do livreiro e ativista gaúcho Augusto Carneiro. Os seus livros podem ser encontrados em livrarias virtuais.