Existe uma frase famosa que diz que "na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade". Há controvérsias em relação à autoria, atribuída ao senador norte-americano Hiram Johnson, mas a qual ele poderia ter buscado em Ésquilo, o dramaturgo grego. Pois, no Brasil, na guerra contra o novo coronavírus, a verdade a respeito da real situação da pandemia tem sido uma vítima.
Desde sexta-feira, o governo federal passou a omitir informações essenciais, no site oficial onde divulga dados, para a compreensão da pandemia no País. Com a reformulação, a plataforma não mostra mais quantos casos e óbitos totais a doença já causou. Além disso, retirou os gráficos com dados diversos acerca da progressão da Covid-19 e o detalhamento do quadro nos estados.
A alteração no portal veio depois de o governo passar a divulgar a atualização diária somente às 22h. No início da pandemia, a divulgação ocorria às 17h e, depois, passou para as 20h. O objetivo dos atrasos foi revelado pelo próprio presidente da República em uma de suas conversas à porta do Palácio do Alvorada: "acabou a matéria no Jornal Nacional", disse Jair Bolsonaro, admitindo que a intenção dos atrasos era evitar que a informação fosse transmitida pelos noticiários televisivos da noite, principalmente no jornal da TV Globo. Ontem, após pressão, a divulgação se deu às 18h.
A alteração na divulgação das estatísticas começou a mudar na medida em que técnicos da área da saúde foram sendo substituídos por militares no ministério, a começar pelo posto de ministro, antes ocupado pelos médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, e agora sob às ordens do general Eduardo Pazuello.
O ocultamento de informações veio na esteira da intenção de recontar os mortos causados pela pandemia, possibilidade que revoltou o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Em nota, a entidade repudiou "com veemência e indignação" a afirmação do empresário Carlos Wizard, que atuava junto à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, e disse que os secretários estaduais e municipais falseavam os números de óbitos para poderem receber mais recursos federais.
"A tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela Covid-19, não prosperará. Nós e a sociedade brasileira não os esqueceremos e tampouco a tragédia que se abate sobre a nação", afirmou o Conass em nota assinada pelo seu presidente, Alberto Beltrame. Após a péssima repercussão de sua fala, Wizard deixou a função junto ao ministério.
Foi do Conass, inclusive, que partiu a iniciativa de disponibilizar um painel independente com dados atualizado da Covid-19. As informações são liberadas, diariamente, até as 18h30min, no site http://www.conass.org.br/painelconasscovid19/.
A omissão de dados no portal oficial do governo sobre a pandemia no Brasil gerou uma onda de manifestações críticas. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, disse, em suas redes sociais, que "brincar com a morte é perverso". "Ao alterar os números, o Ministério da Saúde tapa o sol com a peneira. É urgente resgatar a credibilidade das estatísticas. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos", afirmou o deputado. Conforme ele, a comissão externa da Câmara que trata da Covid-19 vai se debruçar sobre as estatísticas. "É urgente que o Ministério da Saúde divulgue os números com seriedade, respeitando os brasileiros e em horário adequado. Não se brinca com mortes e doentes", completou.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, por sua vez, disse que a "manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários". "Tenta-se ocultar os números da Covid-19 para reduzir o controle social das políticas de saúde. O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio", enfatizou.
Além de suprimir informações, pasta divulga números divergentes
Nesta segunda-feira, além de ocultar informações, o Ministério da Saúde confundiu a imprensa e a população ao divulgar dados diferentes a respeito da mesma questão. Para a imprensa, por meio de arquivos colocados na plataforma Dropbox, o governo apontou o registro de 1.382 novas mortes causadas pela Covid-19 no domingo. No site oficial, porém, o número era outro: 525. Na tarde de ontem, o governo afirmou que os dados corretos são os divulgados no portal e a diferença se deu por duplicidade de registros, que foi corrigida posteriormente.
A omissão dos dados fez a Defensoria Pública da União (DPU) entrar, no sábado, com um pedido de liminar na Justiça Federal de São Paulo para obrigar o ministério a divulgar atualizações diárias e integrais do avanço dos casos e mortes de Covid-19. Também no sábado, o Ministério Público Federal instaurou um procedimento extrajudicial para apurar os motivos que levaram á exclusão de dados.
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, também reagiu à medida. "O Ministério da Saúde não adverte mais. Acéfalo e militarizado, presta-se ao papel de empoeirar e retardar informações sérias sobre a pandemia, apenas para satisfazer o apetite conspiratório do presidente e sua batalha pessoal contra a imprensa livre. Um perigoso e letal vexame."
Responsável por comandar a pasta nos meses iniciais da pandemia e demitido por se contrapor às ideias do presidente, que exigia o fim do isolamento social e a indicação do uso da cloroquina para o tratamento da Covid-19, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta chamou de "tragédia" e de "pior dos mundos" a alteração da forma de divulgação dos dados. "Me parece que estão querendo fazer uma cirurgia nos números dos protocolos públicos. Não informar significa o Estado ser mais nocivo do que a doença", disse.