A decisão do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) de manter o teor de biodiesel no diesel fóssil em 10% (o chamado B10) ao longo de 2022 representa um duro golpe aos fabricantes do biocombustível. O cálculo do setor é que a ociosidade das usinas neste ano pode chegar a cerca de 50% da capacidade instalada, o que implicará postergação de investimentos e riscos de fechamento de empresas e de postos de trabalho.
O diretor superintendente da União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Ubrabio), Donizete Tokarski, informa que o País possui hoje uma capacidade instalada de aproximadamente 11,7 bilhões de litros de biodiesel e neste ano a produção deverá ficar em torno de 6 bilhões de litros. “Isso significa uma ociosidade de praticamente 50%, que indústria sobrevive com uma ociosidade tão grande?”, indaga o dirigente.
Inicialmente, conforme a Resolução CNPE nº 16/2018, o setor do biodiesel deveria ter entrado 2022 com o B13 e em março deste ano atingir o B14. No entanto, em uma tentativa de reduzir o custo do diesel, já que o biocombustível é mais caro do que o derivado fóssil, o governo federal determinou o estabelecimento do B10. Em nota, o Ministério de Minas e Energia afirmou que levantamento da agência de preços Platts, em 12 de janeiro, mostrou o preço do biodiesel a R$ 6,70 por litro, sem frete e sem impostos, ou seja, 84% mais caro do que o preço do diesel A, cotado a R$ 3,63 por litro. Considerando essas informações, o ministério destaca que o aumento do teor do biodiesel no diesel A, de 10% para 13% até fevereiro e 14% entre março e dezembro, significaria um gasto adicional para a população brasileira de R$ 9,15 bilhões ao longo do ano.
No entanto, apesar dos cálculos do governo, os agentes do biodiesel chamam a atenção para os benefícios que a produção do biocombustível traz. Conforme Tokarski, com o B10, o Brasil irá reduzir a fabricação de biodiesel em 2,5 bilhões de litros neste ano, em relação ao que seria proporcionado com o B14 previsto originalmente. Esse volume será reposto, cita o dirigente, por diesel fóssil importado, gerando emprego e renda fora do País. Ele estima que haverá uma diminuição de, pelo menos, 30 mil empregos diretos no setor, somente em 2022, e uma queda de massa salarial de aproximadamente R$ 2 bilhões.
O diretor superintendente da Ubrabio projeta ainda dificuldades para alguns empreendedores acomodarem suas produções de biodiesel. Conforme a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), distribuidores de combustíveis contrataram junto aos produtores de biodiesel 957 milhões de litros para o abastecimento no 1° bimestre deste ano (janeiro-fevereiro), visando ao atendimento do percentual de mistura obrigatória ao óleo diesel com o B10. No entanto, ainda segundo dados do órgão regulador, a gaúcha Bianchini, por exemplo, que tem sua usina de biodiesel em Canoas, não teve volumes contratados. A reportagem do Jornal do Comércio tentou entrar em contato com a empresa, mas não obteve retorno.
Tokarski reitera que o setor já enfrentava uma elevada ociosidade de suas plantas produtivas e agora a situação se tornará mais grave. O dirigente alerta que os impactos não serão sentidos apenas pelo segmento de biodiesel, mas também na agricultura familiar. Ele afirma que, somente no Rio Grande do Sul, são cerca de 50 mil famílias envolvidas com o programa do biocombustível. Outra consequência é que a redução do esmagamento da soja para a fabricação do biodiesel vai diminuir a oferta de farelo para a produção de ração animal. A queda da produção de farelo deve ficar na casa de 7 milhões de toneladas, estima o representante da Ubrabio. “A Região Sul do País é uma forte produtora de aves e suínos e isso refletirá nessas cadeias”, adverte.
O dirigente comenta também que quando se diminui o uso do biocombustível aumenta-se as doenças relacionadas à poluição veicular. “Podemos fazer com que o uso do biodiesel seja como uma vacina, preventiva às doenças”, frisa. De acordo com ele, um documento do Ministério de Minas e Energia aponta que, na região Metropolitana de São Paulo, o uso do biodiesel, em 2018, evitou 244 mortes.
Tokarski acrescenta que reduzir a utilização do biodiesel vai contra as metas pregadas na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26) no sentido de diminuir o uso dos combustíveis fósseis. O dirigente enfatiza que esses benefícios todos justificam um incremento do percentual do biodiesel. “O governo está fazendo a conta mais simples, a mais simplória, o preço e não o valor, quando se considera somente o preço de um produto e não o valor que ele agrega, estamos diante de uma economia atrasada”, aponta.
Investimentos postergados podem ir de R$ 2 bilhões a R$ 5 bilhões
De acordo com os empreendedores do setor, os investimentos que devem ser represados no segmento de biodiesel com a fixação da mistura no B10 podem variar de R$ 2 bilhões a R$ 5 bilhões nos próximos dois anos. Um dos grupos que já comunicou que irá adiar seus planos é a empresa gaúcha BSBIOS.
O presidente da companhia, Erasmo Carlos Battistella, comenta que a BSBIOS possui propostas de expansão das suas duas unidades industriais (em Passo Fundo - RS e Marialva - PR) e na produção de óleos vegetais. “Inclusive com projetos bem adiantados de engenharia e licenciamento ambiental, mas neste momento vamos esperar, aguardar para ver qual a decisão do governo”, afirma o dirigente. Esses empreendimentos absorveriam um aporte de cerca de R$ 1 bilhão.
Battistella prefere não detalhar as iniciativas, porém adianta que elas serão retomadas se o governo decidir pelo aumento da mistura do biodiesel no diesel. Segundo dados da ANP, cada uma das plantas da BSBIOS tem capacidade para a produção diária de 1,3 milhão de litros e as duas têm processos em andamento para chegar até 1,5 milhão de litros ao dia. Ainda de acordo com a agência, o Brasil conta hoje com um parque industrial de 53 usinas com autorização para produção de biodiesel. Outras 12 unidades estão em construção (capacidade de cerca de 5,6 milhões de litros ao dia) e mais cinco plantas que estão em processo de ampliação (em torno de 1,2 milhão de litros diários).
Para Battistella, foi equivocada a decisão do governo federal pelo B10. “Fazer uma conta simplesmente que o biodiesel está um pouco mais caro na bomba, na nossa avaliação, não é a interpretação correta, por isso o setor acredita que o governo precisa rever essa posição”, afirma. Ele recorda que havia, inicialmente, a previsão de entrar em março deste ano com uma mistura de 14% (conforme a Resolução CNPE nº 16/2018). Dentro dessa perspectiva, o presidente da BSBIOS comenta que muitas companhias fizeram investimentos e agora estão tendo que reavaliar suas estratégias com a instituição do B10.
O dirigente enfatiza que, quando ocorre uma redução compulsória de mercado, como é o caso, as empresas não têm motivos para investir. “A cadeia como um todo da indústria do biodiesel, infelizmente, está congelando os investimentos”, reforça. Battistella ressalta que o impacto do custo do biodiesel é diluído no preço final do diesel por constituir um pequeno percentual na mistura. “Não se pode mudar a estratégia de um setor que está sendo construído com muito suor e trabalho há quase 20 anos por uma questão de alguns centavos”, defende o presidente da BSBIOS.
Quebra da previsibilidade gera insegurança no setor
O fato de há pouco mais de três anos ter sido publicada uma resolução (CNPE nº 16/2018) que determinava que em janeiro de 2022 estaria valendo o B13 e em março a mistura seria elevada para B14, mas na prática está sendo exercido o B10, causa muita apreensão aos investidores no biodiesel quanto ao que esperar para o futuro. O presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), André Nassar, destaca que a estipulação do B10 mudou completamente as expectativas do setor.
“Ia para B14, depois B15, teve todo um investimento feito em capacidade de produção de biodiesel que de certa forma está comprometido, as empresas ficarão com capacidade ociosa, algumas mais e outras menos”, lamenta o dirigente. Nassar argumenta que os projetos de ampliação e construção de novas usinas que estão próximos de serem concluídos deverão ser terminados. Porém, as ações que estão em estágio inicial deverão ser paralisadas até ter uma situação de mercado mais consolidada. Ele ressalta ainda que a menor demanda por biodiesel também afetará a produção brasileira de óleo vegetal.
Sobre a perspectiva de o B15 ser estabelecido em março de 2023, conforme consta na Resolução CNPE nº 16/2018, o presidente executivo da Abiove argumenta que, se em 2022 o B10 for mantido, e dependendo dos patamares de preço do biodiesel em relação ao diesel, dificilmente será feita a passagem de B10 para B15 abruptamente. Nassar acredita que a decisão será vinculada à conjuntura de momento, levando em conta fatores como a quantidade de produção de soja, volume de óleo vegetal, entre outros pontos. “De toda forma, um governo que tenha interesse em aumentar a mistura de biodiesel, interesse político, ele faria em uma escadinha, um pouco mais gradual”, prevê. Segundo o representante da Abiove, o setor buscará uma reversão do B10 e que no próximo ano seja possível alcançar, pelo menos, o B13 e, posteriormente, chegar ao B15.
Já o presidente do Conselho de Administração da Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio), Francisco Turra, frisa que a Frente Parlamentar Mista do Biodiesel está atuando para levar informações precisas para o presidente da República, buscando assim que a decisão seja revertida. “Também trabalhamos para estabelecer em lei datas de vigência de cada mistura, além de estabelecer o marco regulatório para os biocombustíveis avançados que garanta uma segurança jurídica ao setor para manter investimentos no presente e para crescer no futuro”, informa o dirigente.
Para Turra, com o B10, o governo descaracteriza a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) como modelo de uma política de Estado e quebra a segurança jurídica e a previsibilidade para o setor que vinha investindo muito para se capacitar e atender ao aumento progressivo da mistura. O presidente do Conselho de Administração da Aprobio sustenta que os biocombustíveis não podem ser utilizados como política de preço, até porque a medida (o B10) não impactou positivamente no valor do diesel na bomba.
“Nós sabemos qual é a principal razão do aumento do combustível: segundo a ANP, de dezembro de 2020 a dezembro de 2021, o aumento do diesel fóssil poluente foi de 57,12%, enquanto o biodiesel B100 sustentável teve uma variação de 6,38%, inferior à inflação do período”, salienta o dirigente. Turra sustenta que é preciso deixar de olhar apenas para preço e focar no valor agregado do biodiesel. Ele enfatiza que se trata de um produto de origem renovável e que reduz a emissão dos gases de efeito estufa em até 80% quando comparado ao concorrente fóssil.