Brasileiros compraram mais livros na pandemia, mas pequenas livrarias e novo tributo preocupam

A partir de julho, mercado registra aumento em vendas, puxadas pelo meio digital

Por Patrícia Comunello

Fotos na livraria Padula
"A boa notícia: o brasileiro está lendo mais. A má notícia: está lendo mais do mesmo."
As duas constatações, feitas pelo presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), Marcos da Veiga Pereira, resumem os contrastes no mercado editorial, após sete meses de pandemia, e ganharam mais relevância nessa quinta-feira (29), Dia Nacional do Livro.
O roteiro da data neste ano ganhou duas frentes que mobilizam Snel, Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), com detalhes repassados em conversa pela ferramenta de vídeo do Zoom com o Jornal do Comércio
As principais entidades da grande cadeia do livro no Brasil buscam literalmente salvar as pequenas livrarias, que sofreram mais com a fase mais crítica do fechamento durante o distanciamento social, e tentar neutralizar uma ameaça: o fim da imunidade tributária para o papel usado para imprimir livros.
Sobre a situação do mercado, Pereira, que é sócio da Editora Sextante, diz que houve aumento da receita após os primeiros meses da crise sanitária, puxado pelas vendas on-line, que respondem por mais de dois terços do volume comprado em 2020. 
"A gente achou que o mundo ia acabar em março. De repente, o varejo on-line se prepara para fazer vendas e o brasileiro volta a ler", constata o sócio da Sextante, olhando no retrovisor, depois de ultrapassar o trajeto mais engarrafado da crise.
"Quem não repensou seu modelo de negócio não conseguiu se manter. Livrarias ficaram até 100 dias com as portas fechadas", reforça o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Vitor Tavares da Silva Filho.
A curva começou a mudar em maio e junho, diz Pereira. Segundo o Painel de Varejo dos Livros no Brasil, apurado pela Nielsen para o Snel, julho marcou a interrupção de queda e o começo da evolução positiva, sob efeito da arrancada da venda em meio digital do livro físico.
Julho teve alta de 17% no faturamento em relação ao mesmo mês de 2019 e o mais recente, que captou as compras entre 7 de setembro e 4 de outubro (a pesquisa faz confronto por semanas) assinalou alta de 7,31% nas receitas, com a venda de 3,17 milhões de exemplares. No ano, o saldo ainda é negativo devido ao impacto dos meses mais deprimidos da pandemia.
"Chegamos a ter queda de 13% no ano, que agora, neste último período de setembro a outubro, está em 5,3%", diz o presidente do Snel. Foram comercializados até agora 29,1 milhões de livros, ante 30,2 milhões no mesmo período de 2019. O faturamento até agora é de R$ 1,25 bilhão, frente R$ 1,32 bilhão do ano passado.
O acompanhamento não inclui o mercado de e-books. Pereira diz que o formato digital tem alta de 60% nas vendas frente a 2019, desempenho ligado à facilidade e conveniência de acessar, devido às contingências de logística em parte da pandemia. Também o público que prefere ler os títulos em um tablet ou outra tela cresce no País.
Vitor Tavares da Silva Filho, Marcos da Veiga Pereira e José Ângelo Xavier de Oliveira falam sobre situação do setor. Fotos: CBL/SNEL/Abrelivros/Divulgação/JC
O ano pandêmico de 2020 acabou diminuindo uma escalada de recuperação do setor. O sócio da Sextante cita que, em 2019, o setor "teve um respiro, depois de quatro anos de queda em vendas".
O começo deste ano vinha bem até março, puxado pelo livro didático, que concentra maior volume até fevereiro, diz o presidente da Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), José Ângelo Xavier de Oliveira.
O setor de publicações didáticas vive agora a incerteza sobre o começo do ano letivo de 2021, devido à suspensão de aulas presenciais, inadimplência de escolas e crise econômica. "De maneira geral, as editoras revisaram planos de lançamentos, que chegavam às escolas no começo do segundo semestre", atesta Oliveira.
A frente de lançamentos, importante combustível para mover a máquina de autores, editores, distribuidores e livreiros, vive um apagão. Pelo menos 10 mil novos títulos deixaram de ir ao mercado este ano devido a restrições de eventos presenciais, estimam as entidades.
No ano, são 15 mil novos títulos que costumam ser lançados. Uma marca muito distante de países como França e Alemanha, com mais de 106 mil e 60 mil livros novos, respectivamente, segundo dados de 2018.
O cancelamentos de bienais do livro, como a de São Paulo e Rio de Janeiro, e feiras físicas de livros - muitas ganharam versões on-line como a de Porto Alegre, que começa nesta sexta-feira (30) e vai até 15 de novembro -, também contribuiu para o enredo do apagão.
Pereira diz que as ações presenciais não voltaram ainda e que as editoras estão começando a liberar novos títulos usando estratégias de promoção em meio digital.
Contato e cheiro do livro são experiências possível apenas nas livrarias, dizem entidades. Foto: Joyce Rocha/JC   
Mas a preocupação, mesmo com o fluxo de vendas melhorando, é com o segmento de comércio físico. O que mais cresceu e sustentou o setor foi o front do comércio digital.
"Nas livrarias, a queda é de 60% a 70% nas vendas", diz Tavares, da CBL.
Tavares conta que, diante da situação dos pequenos estabelecimentos e para evitar que ocorram mais 'mortes' no setor, distribuidores, editoras e grandes redes puxaram uma campanha de financiamento coletivo com arrecadação que chegou a R$ 500 mil, repassados a 53 pequenas livrarias das 213 que se habilitaram à ajuda. Cada uma recebeu R$ 10 mil. 
"A arrecadação ajudou a pagar algumas contas e a corrida agora é para não fechar", observa o presidente da CBL. "Nos unimos para ajudar o menor. Quando fecha uma livraria, apaga uma luz na cidade, é um serviço cultural", resume Tavares.
Segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC), o número de estabelecimentos no País passou de 73,7 mil, em 2007, a 52,6 mil, em 2017, com extinção de mais de 21 mil pontos de venda. Reportagem do JC mostrou a situação no mercado gaúcho.
Este quadro e ainda a busca para equilibrar as vendas no fechamento de 2020 fizeram as três entidades se unirem para lançar iniciativas para fomentar os livros como presente de Natal e ainda mais: motivar leitores a irem ao varejo físico comprar os exemplares.
"As livrarias sempre foram muito fortes. É o lugar da descoberta do livro", valoriza Pereira.
"O e-commerce é conveniência para quem pode esperar e sabe o que quer. Mas se a pessoa tem prazer de encontrar um bom livreiro, descobrir um lançamento, ter a experiência tátil - tem pessoas que gostam do cheiro do livro - o lugar é a livraria", arremata o editor.

Imunidade tributária sob ameaça: como o setor pretende bloquear novo tributo

A mesma paixão pelos livros, que editores, distribuidores e livreiros apontam como oxigênio para não perder pontos de venda, é apontada como arma contra outro o temor que ronda o setor.
A proposta de reforma tributária levada ao Congresso Nacional pelo atual governo incluiu os livros na incidência da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), novo tributo que seria criado substituindo as contribuições para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e para os programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep).
A imunidade atinge o papel usado na impressão de jornais, periódicos e livros. A condição foi inserida em duas Constituições da República.
A primeira foi na Carta Magna de 1946, durante o segundo governo de Getúlio Vargas. Na época, a proposta foi defendida pelo escritor Jorge Amado, que era deputado pelo então Partido Comunista Brasileiro. A medida buscava impulsionar a produção do livro nacional.
A isenção foi mantida em cartas seguintes. A Constituição de 1988 traz a condição no artigo 150. Mas, na prática, a tributação só foi zerada em 2004, com a Lei 10.865, que regula a incidência da PIS/Cofins para compra de papel usado na impressão.
A efetivação da imunidade, ameaçada pela reforma do governo Jair Bolsonaro, foi precedida pela Lei 10.753, de 2003, que instituiu a Política Nacional do Livro, com uma lista de iniciativas para impulsionar a leitura entre os brasileiros, e que tem uma justificativa robusta no inciso 2 do artigo 1º, que estabeleceu, citada pelas entidades na atual companha contra a CBS para o setor:
"O livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida."
Pós-isenção, o setor registrou queda no preço do livro e maior acesso para faixas de renda mais baixa. Estes dois itens são usados agora pelos dirigentes do Snel, da ABL e da Abrelivros para contrapor a declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, que disse que usaria a arrecadação com o fim da imunidade para aumentar o valor do Bolsa Família:
"Outra coisa é você, a título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar".
No mesmo dia, em 5 de agosto, mas horas antes da declaração de Guedes, as três entidades  lançaram o Manifesto em Defesa do Livro, que acabou sendo uma resposta predestinada ao ministro e que encerra com o argumento:
"Ainda não se descobriu nada mais barato, ágil e eficiente do que a palavra impressa – em papel ou telas digitais – para se divulgar as ideias, para se contar a história da humanidade, para multiplicar as vozes da diversidade, para denunciar as injustiças, para se prever as mudanças futuras e para ser o complemento ideal da liberdade de expressão."
Pereira, do Snel e da Sextante, avalia que o Manifesto, publicado antes do ministro se pronunciar, fortaleceu ainda mais o movimento. "Se tivesse sido lançado depois da fala dele, pareceria apenas uma resposta." 
Um abaixo-assinado na internet contra a proposta da CBS, criado antes mesmo do manifesto, obteve mais de um milhão de apoiadores em em 15 dias no ar.
As entidades também reforçaram nas últimas semanas a pressão e articulação no Congresso Nacional para impedir a inclusão do setor na CBS. A previsão é que o relatório final da reforma seja apresentado no começo de dezembro.
Pereira diz que os autores das duas Propostas de Emenda Constitucional (PECs), a 45, de Baleia Rossi (MDB-SP), e 110, de Marcos Pereira, estariam garantindo que a condição atual do livro não vai mudar.
"Os 12% da CBS vão aumentar em 20% o preço das publicações", alerta Tavares, da ABL, como razão para manter tudo como está.
Argumentos não faltam para defender a condição da isenção e estão em documento que tem sido usado pelas entidades para convencer os congressistas sobre a importância da medida:
"Apenas 56% dos brasileiros leram pelo menos um livro inteiro ou em partes nos últimos três meses, sendo que 42% dizem que leram a Bíblia; cerca de 30% dos brasileiros jamais comprou um livro e apenas 56% dos brasileiros leram pelo menos um livro inteiro". 
"Enquanto o Brasil tiver déficit de leitura, a imunidade é uma conquista que não podemos perder", adverte o presidente da Abrelivros.

Isenção, leitura e acesso ao livro no Brasil

 
Preço médio do livro passou de R$ 29,30, em 2006, para R$ 19,00 em 2019. Foto: Joyce Rocha/JC
  • Lei 10.865, de 2004, zerou a alíquota da PIS/Cofins.
  • Após a isenção, o preço dos livros reduziu 33% e resultou na venda de 90 milhões de exemplares entre 2006 e 2011.
  • O preço médio do livro passou de R$ 29,30, em 2006, para R$ 19,00 em 2019: queda de 35%
  • Famílias com renda abaixo de R$ 5.724,00 respondem por 45% do consumo de livros no Brasil: o grupo representa 74% do total das famílias no Brasil.
  • Apenas 56% dos brasileiros leram pelo menos um livro inteiro ou em partes nos últimos 3 meses, sendo que 42% dizem que leram a Bíblia.
  • Cerca de 30% dos brasileiros jamais comprou um livro.
  • 67% dos brasileiros não contou com uma pessoa que incentivasse a leitura durante toda a sua trajetória.
  • Apenas 56% dos brasileiros leram pelo menos um livro inteiro.
Fonte: Snel, CBL e Abrelivros