Fughetti Luz: do Liverpool ao Bixo da Seda, uma vida dedicada ao rock

Aos 73 anos, eterno rebelde continua enfeitiçando novas gerações com o poder de suas canções

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Aos 73 anos, eterno rebelde segue enfeitiçando novas gerações com sua mensagem libertária
A casa localizada no número 35 da avenida Alberto Pasqualini, Zona Norte de Porto Alegre, conserva-se intacta desde que Marco Antônio Figueiredo, o lendário Fughetti Luz, fez dela sua morada durante 20 produtivos anos de música, arte e poesia. Fughetti mudou-se para o endereço após o término do Bixo da Seda, em 1980. Até 2000, quando então rumou para Tapes, onde vive até hoje a "baia" serviu de incubadora para bandas primordiais do rock gaúcho. Entre elas, Bandaliera, Guerrilheiro Anti-Nuclear e Taranatiriça. Na casa da Pasqualini também nasceram inúmeras (e emblemáticas) canções como, por exemplo, Campo minado, Nosso lado animal, Solitário rocker e Nova pulsação. A época do bucólico Jardim Itu-Sabará, recorda Fughetti, foi de muita criatividade. "Montei um estúdio na casa, que tinha um enorme pátio, levei um monte de músicos para lá e o som rolava até altas horas".
Pode-se dizer que a casa da Pasqualini foi uma espécie de "enclave temporal", demarcando territorialmente um período fundamental da vida e da obra de Fughetti Luz. Antes disso, nos tempos do Liverpool e Bixo da Seda, suas bandas primevas, "Fugha" viveu entre São Paulo, Rio de Janeiro e Europa. O ponto de partida dessa história, porém, são os recantos da Vila do IAPI, onde cresceu entre as escadarias, praças e jardins do bairro industriário. No IAPI viveu também Elis Regina, a Pimentinha, uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, que, além de vizinha de Fughetti, também fazia parte da turma.
Espírito indômito, a paralisia infantil que acometeu Fughetti, aos três anos de idade, nunca se tornou impedimento para que, desde cedo, ele plantasse as sementes que iriam brotar "detonando o rock'n'roll". Na biografia Fughetti Luz - O Rock Gaúcho, assinada pelo jornalista Gilmar Eitelwein, ele se define como um "eterno rebelde", inclusive em relação à sua deficiência. "Tudo que não me deixavam fazer [quando criança], eu fazia. Não podia jogar bola, eu jogava futebol nos campos do IAPI. Diziam para não andar de bicicleta, então aprendi a andar com uma perna só, ia tomar banho no Guaíba com um monte de moleques. Sempre fui perturbador, só fazia arte. A paralisia foi um presente na minha vida, me ensinou a ser mais legal e mais maluco".
Tal maluquez também lhe aproximou de seus futuros parceiros musicais: os irmãos Marcos e Mimi Lessa, Edinho Espíndola e Wilmar Santana, o "Peco", com os quais formaria sua primeira banda, o Liverpool. Ao lado deles, em 1969, Fughetti fez sua estreia discográfica com a gravação do fundamental Por favor, sucesso. O LP, que amalgama tropicalismo e psicodelismo de forma absolutamente sui generis, converteu-se, desde sempre, num dos mais cultuados álbuns do rock brasileiro. "Por favor, sucesso significou, para mim, uma grande abertura de portas. Foi através desse disco que vislumbrei a possibilidade de, por meio da música, levar alegria, arte e rock and roll para um grande número de pessoas", avalia Luz.
Rock'n'roll que Fughetti e companhia também botaram para ferver no Bixo da Seda (antes ele fez os grupos Bobo da Corte, Laranja Mecânica e Trilha do Sol), um dos grupos de maior prestígio do rock nacional. Em 1976, o Bixo deixou seu primeiro e único registro em vinil - por sinal, um dos únicos álbuns de rock lançados por uma banda gaúcha nos anos 1970. O pesquisador e historiador carioca Nelio Rodrigues, autor de A História Secreta do Rock Brasileiro, atenta que, tal qual o Liverpool, o Bixo da Seda foi o conjunto favorito de muita gente na época. E, a propósito, continua sendo até hoje. "Esses dias, durante as entrevistas que estou fazendo para meu novo livro, sobre O Terço, tanto o Sérgio Magrão quanto o Sérgio Hinds e o Flávio Venturini, ex-integrantes do grupo, declararam-se eternos fãs do Bixo. O mais incrível é que os três disseram isso sem se combinarem entre si", admira-se Nelio.
Diretamente de Tapes, onde, há 20 anos, Fughetti Luz vive retirado do mundo ("mas não das pessoas", distingue), sem nunca abrir mão da positividade que lhe é tão peculiar, considera-se um homem feliz e realizado com tudo que viveu. Uma das forças-motrizes dessa felicidade, ele acredita fielmente, sempre foi a música. Música que, em suas palavras, possui "propriedades mágicas". Curativas. "A música une as pessoas como nenhuma outra arte. Ela nos leva adiante e desperta sentimentos profundos. Faz a gente rir e também chorar. Então, sou feliz de fazer música. E, sobretudo, de ter o privilégio de poder distribuí-la a todos."

Lindo sonho delirante

Depois do grupo Liverpool - que inaugurou o rock no Rio Grande do Sul junto a bandas como os Cleans e Os Brasas - vencer o II Festival Universitário da Música Popular Brasileira, em Porto Alegre, o tema Por favor, sucesso (de autoria de Carlinhos Hartlieb) foi classificado para as eliminatórias do IV Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, em setembro de 1969. Os guris do IAPI não arrebentaram prêmio algum, mas, ao invés disso, ganharam um contrato com a gravadora Equipe, para produzir o primeiro - e único - LP do Liverpool, o homônimo

Crazy People do Bixo da Seda

Os rapazes do Liverpool voltaram anos depois de Por favor, sucesso, em 1973, com outro nome: Bixo da Seda. O som também era outro. Estava mais pesado, somando ao rock'n'roll tradicional a influência de progressivo, hard rock, com mudanças de andamento e harmonias complexas. O quinteto formado por Fughetti, Renato Ladeira (ex-A Bolha), Mimi Lessa, Marcos Lessa e Edinho Espíndola vivia o auge da forma e do entrosamento. Chegavam a ensaiar durante oito horas por dia e rapidamente adquiriram a fama de "destruir" os shows nos quais tocavam - frequentemente tinham de fazer sessões extras para conter a gurizada que tinha ficado do lado de fora. Em 1976, embebidos na sonoridade de grupos como Genesis, King Crimson e Pink Floyd, lançam seu único álbum, homônimo, que trazia eternas gemas do cancioneiro rocker nacional, como Já brilhou, Trem, Sete de ouro, Uma abraço em Brian Jones e Gigante.
Fughetti Luz recorda que o LP do Bixo (também conhecido por Estação Elétrica), produzido por Alfeu Junges, foi registrado nos estúdios da gravadora Som Livre em apenas duas semanas. Celeridade, Luz enfatiza, com a qual, desde os tempos do Liverpool, eles estavam acostumados. "Sempre trabalhamos muito. A gente acordava às 7h da manhã para ensaiar. Éramos legítimos 'operários do som'". Mas nem tudo era somente labor. No Rio, durante as gravações do LP, o grupo estabeleceu-se entre os bairros de Ipanema e Leblon. E, nas folgas, lembra Fugha, todos "pegavam uma praia 'bonito'" no Arpoador. "Nós morávamos todos no mesmo apartamento. Fazíamos música e nos divertíamos juntos. Era uma boa confusão", relembra, saudoso.
 

Lado animal

Desde os anos 1950, o rock'n'roll dos pioneiros Elvis, Little Richard e Chuck Berry (que ouvia nos discos do irmão mais velho), entre inúmeros outros daquela primeira geração, fez a cabeça do infante Fughetti Luz. "Quando esses caras todos entraram em minha vida, fissurei", pontua.
Autodidata, nessa época Fughetti passou a reproduzir as melodias simples, de poucas notas e acordes, no violão que carregava sempre consigo mesmo antes de saber tocar. E, participando das rodas de som no bairro IAPI, aproximou-se dos amigos com os quais formaria o Liverpool, em 1965. Ele conta: "Quando ouvi Chuck Berry pela primeira vez ressoando, elétrico, do toca-discos me deu um estalo: 'É isso aí que eu quero fazer da vida: rock'n'roll!'". Daí em diante, ele diz ter ouvido "tudo que tinha direito".
Depois da descoberta do rock, arrebatou-se profundamente pela música brasileira: "Caetano, Gil, Chico Buarque, tropicália, jovem guarda, festivais", cita. Embora rocker até os ossos, Fughetti considera a música brasileira um precioso "xodó" mundial. "A harmonia da música brasileira não tem outra igual no mundo!", defende, ferrenhamente.

Tempo feiticeiro

Com produção do guitarrista Marcelo Truda, discípulo de Fughetti desde os 12 anos e integrante do Taranatiriça, o disco

Brincando de rock'n'roll

O músico e produtor Duca Leindecker tomou contato com a obra de Fughetti Luz quando, aos 15 anos, o "menino prodígio" da guitarra (ao lado do igualmente lendário Marcinho Ramos) ingressou na Bandaliera, com a qual gravaria dois álbuns. Foram dias em que Duca pôde haurir do afetuoso paternalismo de Fughetti. Ele reconhece a oportunidade única: "Aproveitei tudo que pude aprender com o Fugha. Nem preciso dizer que ele é um cara genial. Que, de forma muito simples, toca fundo com a força e a intensidade de suas palavras. O nome dele já diz tudo: é muita luz".
Duca diz que não só tocou como também foi tocado pela força poética do cancioneiro fughettiano. Mais do que isso, ele atribui ao compositor a construção de sua personalidade musical em sua fase de iniciação. Daí para frente, afirma o guitarrista, essa relação apenas evoluiu: "Eu tive a honra de produzir os dois primeiros discos solo dele [do Fughetti]. Depois, quando fiz a Cidadão Quem e em seguida, no meu trabalho solo, ele continuou sendo uma referência pra mim. Meu disco mais recente, Baixar armas, tem muito dele. É só ouvir Espinho e flor, por exemplo, cuja abordagem da letra é descaradamente Fughetti Luz".
O baterista Edinho Espíndola, que era menor de idade quando entrou para o Liverpool, também teve uma relação quase paternal com Fughetti Luz. Ele conta que Fughetti sempre teve com ele - e todo mundo que o cercava - uma personalidade "ultra-agregadora". Edinho enaltece a generosidade do velho amigo: "O Fughetti me deu a maior força no começo. Serei sempre grato a ele por isso. Naqueles dias, eu era apenas um guri aprendendo a tocar 'no tranco'. Mas, graças ao seu incondicional apoio, consegui superar as adversidades", reconhece.

Circuito emocional

Marcos Lessa (que, após o fim do Bixo da Seda, tocou com artistas como Raul Seixas e Zé Ramalho) revela que o cantor e compositor Cazuza, com o qual desenvolveu forte uma amizade, a partir dos anos 1980, um dia lhe contou sobre o impacto que o Liverpool exercera em sua decisão de se tornar um artista. Conforme Lessa, o adolescente Cazuza teve uma epifania ao ser capturado pela magnética performance de Fughetti Luz durante um show do "Liverpool Sounds" (nome assumido pela banda em sua última fase), em 1973.
O espetáculo, realizado na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, mesmo tendo sido interrompido pela repressiva polícia da época, conta Lessa, ficou marcado na memória do público: "E foi ali, em meio aquele caótico show, disse-me o Cazuza, que ele resolvera ser cantor. Ao lembrar essa história, Fughetti Luz mareja os olhos e embarga a voz: "É uma honra e uma grande emoção saber que servi de inspiração para um artista como Cazuza, uma alma tão única e especial".
 

Sabedoria Fughettiana

"Não conquistei bens materiais, apenas espirituais."
"A morte faz parte da vida, mas a vida não faz parte da morte. Não acredito em morte, acredito que a gente se renova." 
"Eu me orgulho de ser hippie, quem viveu a década de 1960 jamais esquecerá. Foram os anos mais importantes do século XX, quando a cultura emergiu para fora do planeta."
"O pensamento positivo: não guardar rancor e não querer mal a alguém por mais que você fique de cara com esse alguém."
Frases do livro Fughetti Luz - O Rock Gaúcho, de Gilmar Eitelwein
 

 

Um amável Fughetti

Por Nenung Seronato*
O primeiro contato que tive com o trajeto desse foguete feito gente foi no colégio. Eu devia ter 14 anos quando ouvi ressoar, do K7 gravado por um amigo, o fantástico rock’n’roll que dava nome à sua banda seminal, Bixo da seda. Um choque de alegria me atravessou. Até hoje considero a trama de riff, groove e letra dessa canção a mais linda, louca e descolada de meu mundo. Autêntica como nunca havia ouvido soar em português.
Alguns anos depois, eu estava com os amigos rodando estradas para beber das vibrantes e alegres celebrações da Bandaliera. Que tinha em sua primeira formação gênios como Bebeto Mohr junto das guitarras de um Duca Leindecker adolescente e do inigualável Marcinho Ramos. Mas o grande momento do show era a entrada sempre surpreendente do bruxo risonho de cabelos longos e barba grisalha, que transcendia a limitação demarcada, aos três anos de idade, por uma paralisia infantil, dançando feito uma entidade da floresta e soltando a voz num urro de poesia, a fé encarnada no poder transformador da música: Fughetti Luz. Nosso lado animal, Xeque- mate, Mudou o vento, Campo minado: todas composições suas com a intensidade e a sensibilidade que se tornaram sua marca. Amor, coragem, resistência e revolução.
Inspirado pela magia daqueles dias, eu deixei a timidez de lado e tirei da garagem a Barata Oriental, um bando de garotos do interior com muita gana, talento latente e ingenuidade. Com generosidade, Fughetti me incentivava a escrever respeitando minha verdade e a confiar no poder da palavra, transmitindo mandingas como, por exemplo, sempre cantar rock em pé e com as mãos livres para dançar. Dicas preciosas.
Quando decidimos gravar o LP da Barata Oriental, em 1988, Fugha deu a direção para que a gente não desperdiçasse aquele momento mágico. A ideia inicial era a de que ele seria nosso mentor durante todo o trajeto, mas, uma noite, após o fim de uma sessão, anunciou que, a partir dali, sentia que podíamos seguir sem ele. E despediu-se encerrando um ciclo, deixando sua benção de xamã poético.
Em 2017, a pedido de Marcelo Truda, Fugheti novamente surpreende aceitando gravar um novo álbum, Tempo Feiticeiro, seu testemunho de amor ao rock e à sua mensagem libertária. Com energia e disposição inacreditáveis, registrou sua voz em pé – como tem de ser –, de forma potente e vibrante. E o velho bruxo segue por aqui, sem dar trégua para caretice, confirmando, a cada dia dessa vida, o valor de acreditarmos na verdade que trazemos dentro de nós. Longa vida, mestre do rock’n’roll!
*Barata Oriental, Os The Dharma Lóvers

* Cristiano Bastos é jornalista. É um dos autores do livro Gauleses irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Escreveu Julio Reny – Histórias de amor e morte, Júpiter Maçã: A efervescente vida e obra, Nelson Gonçalves: O rei da boemia e o livro de reportagens Nova carne para moer. Também dirigiu o documentário Nas paredes da pedra encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho.