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Romance gráfico sobre Porto Alegre dos anos 1920 tem lançamento nesta terça-feira
A história em quadrinhos 'Beco do Rosário' foi contemplada pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018
A arquiteta e ilustradora porto-alegrense
Racismo como chave de compreensão da realidade e história brasileiras
Doutoranda no Programa de Planejamento Urbano e Regional (Propur) da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs, Ana Luiza Koehler respondeu questões do Jornal do Comércio sobre a publicação Beco do Rosário.
JC - A contribuição desta publicação para o campo da história e patrimônio é muito valiosa. Desenhas desde cedo, mas tua formação acadêmica é toda no campo da Arquitetura e Urbanismo. Fazes inclusive ilustração científica para Arqueologia. Quando tiveste o ‘insight’ de juntar tua arte com tua pesquisa?
Ana Luiza Koehler - Uma das minhas principais intenções em fazer histórias em quadrinhos sobre Porto Alegre é justamente poder divulgar essa problemática do patrimônio e da memória urbana, saindo dos monumentos e narrativas oficiais e ampliar o debate público. Foi justamente quando estava trabalhando com ilustração arqueológica - que, afinal, é uma forma de visualizar o passado, seja nos seus objetos ou na sua paisagem urbana já desaparecidos - que me perguntei: 'se estou produzindo essas ilustrações para museus alemães, por que não poderia fazer o mesmo para o Brasil, e para Porto Alegre?' Daí veio a ideia de pesquisar para recriar essa cidade de quase 100 anos atrás, dar-lhe vida novamente para instigar nossa memória coletiva.
JC - Porto Alegre é uma cidade cheia de particularidades, e deves ter estudado essa evolução urbana por diversas perspectivas. Como se deu teu recorte histórico para Beco do Rosário?
Ana - O principal recorte foi cronológico e relacionado a uma primeira fase de modernizações pivotais para a cidade, na década de 1920. Foi na gestão de Otávio Rocha (1924-1928) que se decidiu finalmente implementar o Plano Geral de Melhoramentos do engenheiro e arquiteto Moreira Maciel, feito ainda em 1914, mas que não havia sido viabilizado, entre outras razões, pelos custos das obras vultuosas que propunha.
E quais obras eram essas? Entre muitas propostas, duas em especial que realmente mudaram a fisionomia urbana do centro histórico: a abertura do Beco do Rosário e sua conversão na avenida Otávio Rocha, e a abertura da rua General Paranhos (que compreendia os Becos do Poço, do Meirelles e do Freitas) para a hoje icônica avenida Borges de Medeiros. Ou seja, essas grandes avenidas, às quais também se poderia acrescentar a Júlio de Castilhos, junto ao porto, é que realmente começaram a mudar a estrutura viária de Porto Alegre, até então praticamente inalterada em seu traçado colonial português. Resumindo, a cidade que conhecemos hoje como moderna começa a ser construída aí, e eu quis saber quais foram os destinos e relações entre as pessoas que a habitavam num momento de tantas transformações.
JC - Quais os desafios que encontraste na pesquisa histórica para, através do traço e das cores, recriares a cidade desta época, a década de 1920?
Ana - Talvez o principal desafio tenha sido encontrar registros do processo de remoção dos moradores comuns e pobres dos antigos becos para as então periferia da cidade. Encontrei muito poucas descrições na literatura das remoções feitas no Rio de Janeiro pelo prefeito Pereira Passos, e algumas notas de imprensa a respeito deles, mas que falavam com um enfoque estigmatizante e condenatório, destacando a criminalidade e a falta de asseio destes espaços.
Em seguida, a escassez de registros de imagem destes becos em si. Embora se tenha algumas fotografias boas e que permitam ver o aspecto destes antigos espaços, há ainda muitas lacunas. As cores foram particularmente difíceis, pois a imensa maioria dos registros da época que encontrei são em preto e branco. Mas consegui encontrar algumas informações pontuais sobre cores de prédios da época, uniformes de polícia, roupas e interiores.
JC - Nesse período, POA era mais Belle Époque ou já era mais moderna?
Ana - Eu diria que a Porto Alegre dos anos 1920 era muito mais Belle Époque do que moderna, no sentido que sua paisagem ainda era muito mais constituída por edificações procedentes do século XIX, e décadas anteriores do século XX. Quer dizer, casarões coloniais com fachadas modificadas, palacetes art nouveau, sobrados da época imperial...
O estilo construtivo da década de 1920 ainda era, até onde pude apurar, mais próximo do ecletismo historicista, com frisos decorativos, medalhões de máscaras de teatro, compoteiras e estatuária do que o que hoje conhecemos como o art déco, com suas linhas retas, decoração sóbria e simplificação de formas. Este vai começar a predominar a partir dos anos 1930, muito embora jornais de 1929 já registrem a construção de "arranha-céus" em estilo mais próximo ao art déco. A verticalização (construção de edificações cada vez mais altas) da paisagem também vai ser mais marcada a partir da década de 1930.
Por outro lado, no campo dos costumes e sociabilidades, a Porto Alegre dos anos 1920 já acompanhava as tendências mais cosmopolitas urbanas: possuía bondes e carros trafegando em suas ruas (com frequentes acidentes); os cafés haviam se tornado espaços masculinos de socialização para discussões políticas, esportivas, etc., assim como as confeitarias, só que mais voltadas para um público familiar e feminino; o cinema já havia se tornado uma presença inquestionável nas sociabilidades urbanas; as primeiras transmissões de rádio eram ensaiadas e a imprensa inovava com a expansão das revistas ilustradas.
JC - Nas referências ao final do livro, há destaque para a obra Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Ela te ajudou a criar o foco para a problematização do racismo local, que parece destacada na história?
Ana - Na verdade, este livro não foi o único consultado para a pesquisa, ele está listado no final do quadrinho pois é referenciado numa das páginas. Este livro de Irene Santos acompanhou e acompanha até hoje minhas investigações pois traz registros fotográficos da história da comunidade negra de Porto Alegre, que é quase que sistematicamente invisibilizada em diversos aspectos da história e dos registros urbanos. No meu entender, o racismo é uma questão que permeia a história brasileira de modo que eu não vejo como falar da formação de qualquer cidade do País de forma completa sem tocar no racismo. E o racismo está intimamente relacionado ao modo como as cidades se formam e se modificam ao longo do tempo. Para mim, ele é (infelizmente) uma chave de compreensão indispensável da realidade e história brasileiras.
JC - Uma questão importante é o protagonismo de personagens negras na narrativa. O livro começa pelo olhar de uma menina negra que tem destaque na sala de aula, a Vitória. E depois vai trazer ainda o artista Fabrício... Podes comentar esta opção de construção da história?
Ana - A escolha de destacar personagens negras visa reiterar a importância da presença e contribuição negras na construção do País, muito embora, assim como nos anos 1920, as classes médias e altas brasileiras ainda se queiram ver como brancas e europeias, não negras e africanas. E isso é revelador de uma mentalidade profundamente racista, e da falta de uma ruptura com o passado escravista do Brasil, que se continua até hoje. Por isso, durante muito tempo, a presença negra e a herança africana estiveram "apagadas" de muitas de nossas narrativas, ou, se apareciam, eram para evocar a escravidão, a servitude e a pobreza. Eu busquei sair desta senda batida e mostrar histórias de pessoas negras que fizeram suas narrativas, sua arte, ainda que não sejam lembradas hoje.
JC - Quanto tempo passaste desenhando todas as páginas do livro? O que vem antes, o traço ou a palavra?
Ana - Primeiro vem sempre a palavra. A história escrita é onde tudo começa. Escrevi o roteiro, já fazendo a divisão por quadros e páginas, ainda em 2014, e depois esbocei cada página a lápis numa folha A4 para inserir textos e balões de diálogos.
Cada etapa foi feita em diferentes momentos, com muitas interrupções, infelizmente, entre 2015 e 2019, mas o processo era sempre o mesmo: após serem feitos os storyboards, ou seja, os esboços de cada página em tamanho A4, fiz o desenho a lápis de cada página em tamanho A3, que é o definitivo, e sobre o qual passo o bico de pena e, depois, pinto com aquarela. Cada página leva umas boas horas para ficar pronta, então, sim, é um trabalho de vários meses. Isso sem contar a inserção digital dos balões, textos, diagramação geral do livro, capa...