Poucos lugares de Porto Alegre têm fama comparável à do Bom Fim. Uma fama que transcende fronteiras, a ponto de atiçar a curiosidade de pessoas que nunca colocaram os pés na capital gaúcha, mas já ouviram falar da vida noturna e da efervescência artística que fizeram o nome do bairro, principalmente nos anos 1980. Quem tem uma relação afetiva com o "Bonfa", então, dificilmente consegue (ou quer) se afastar dele.
Talvez seja esse o caso do historiador Lucio Fernandes Pedroso. Hoje morador do bairro Floresta, ele frequenta a região do Bom Fim desde a pré-adolescência, morou por anos em uma república na rua Barros Cassal e transformou o velho reduto da boemia em objeto de sua dissertação de mestrado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). O projeto ganhou asas e virou livro: História de um Bom Fim - Boemia e transgressão de um bairro maldito (financiamento Fumproarte, 214 páginas), que será lançado nesta quarta-feira (18), às 21h. O local não poderia ser outro que não o Ocidente (Osvaldo Aranha, 960), um dos poucos espaços dos tempos de ouro do Bonfa que ainda se mantêm em pé.
"No dia em que não existir Ocidente e Lancheria do Parque, eu me mudo da cidade!", brinca Pedroso, referindo-se a outro ponto de referência da região. Segundo ele, a ideia do livro não era registrar a história do bairro em si, mas o momento em que se tornou palco de movimentos sociais e artísticas. "A questão da colonização judaica é abordada, mas é mais para contextualizar como o Bom Fim era e o que aconteceu a partir das transformações culturais, tentar entender de que forma as coisas convergiram até chegar àquele cenário que se formou na década de 1980", explica.
Pedroso começou a estudar o tema ainda nos tempos em que fazia a faculdade de História e morava na Barros Cassal. "Entre as pessoas que frequentavam a república estava o Ramiro, filho do Toninho, do Escaler (outro lendário bar do Bom Fim). Ele andava bem chateado com os problemas que estava tendo com a fiscalização da prefeitura, o descaso das pessoas... Uma série de coisas que acabaram levando ao fechamento do bar (em 2006). Foi aí que pensei em pesquisar sobre o assunto, a relação das pessoas com o bairro", relata. Mais adiante, descobriu que um amigo, o cineasta Boca Migotto, estava fazendo entrevistas para um futuro documentário, Filme sobre um Bom Fim (2015). "Acabei participando de algumas delas e usei como fontes da dissertação."
Embora livro e documentário (que será exibido na noite desta quarta) tenham nomes, fontes e propostas semelhantes, Pedroso destaca que há algumas diferenças entre eles. "A abordagem do filme é mais focada na parte artística. O livro fala sobre isso, porque é inevitável, mas também aborda a relação das pessoas com os espaços, uma coisa mais da rua, dos bares, da noite", compara.
Para o historiador, parte do charme do bairro se deve a seu perfil democrático e agregador, unindo "tribos" distintas em um momento em que o Brasil passava por um período de redemocratização. "Não consigo imaginar em Porto Alegre algo parecido. As pessoas se sentindo livres, na rua, na Osvaldo Aranha, usando os espaços para lazer... É algo muito diferente do que acontece na Cidade Baixa, por exemplo, onde os públicos são segmentados. No Bom Fim, vários grupos sociais, de rendas, classes e estilos diferentes, se cruzavam e se entendiam no mesmo espaço", observa.
No livro, Pedroso tenta compreender esse fenômeno, que tem como uma espécie de marco zero a chamada "Esquina Maldita" - cruzamento da Osvaldo Aranha com a rua Sarmento Leite, onde os estudantes da Ufrgs se reuniam. "Era um ponto de encontro para discutir política, na medida que o contexto da época, de ditadura militar, permitia. Mas também tinha muita gente que apenas queria curtir, que estava aberta para novas experiências comportamentais, sexuais ou com drogas. Era um espaço de liberdade. As coisas começaram ali e acabaram se expandindo conforme as liberdades individuais foram aumentando", acredita.
Liberdades que se refletiram em uma rica cena cultural, que revelou inúmeros artistas, entre cineastas, poetas, atores e atrizes - e, é claro, músicos. Alguns deles vão estar presentes amanhã no Ocidente, durante o lançamento do livro, que vai ter uma apresentação da banda Elétrica Ótica, formada por músicos da cena ou influenciados por ela: Luis Henrique "Tchê" Gomes (TNT), Carlinhos Carneiro (Bidê ou Balde/Império da Lã), Zé Natálio (Papas da Língua), Leonardo Boff (Ultramen) e Rodrigo Fischmann (Dingo Bells). Além deles, Carlos Gerbase (Replicantes), Frank Jorge (Graforréia Xilarmônica) Julia Barth (Replicantes) e Flavio "Flu" Santos (De Falla) devem dar uma canja, em um repertório de clássicos do rock gaúcho que marcaram os anos 1980 e 1990. Os ingressos, entre R$ 10,00 e R$ 20,00, estão à venda pelo site
Sympla.