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reportagem cultural

- Publicada em 28 de Junho de 2019 às 03:00

A literatura de Altair Martins

Enquanto prepara novo livro, Martins também ensina escrita criativa na Pucrs

Enquanto prepara novo livro, Martins também ensina escrita criativa na Pucrs


VALMIR MICHELON/DIVULGAÇÃO/JC
Aos 44 anos, casado com a arquiteta Márcia Oliveira de Souza Martins, mãe de seus filhos adolescentes (Santiago, 17, e Manuela, 14), Altair Martins leva a vida fazendo dois trabalhos - lecionar e escrever - que na realidade constituem o exercício da literatura num dos mais altos graus de sofisticação. Doutor em Letras pela Ufrgs, ele começou a vida como professor em cursinhos pré-vestibulares em Porto Alegre, chegando a dar aulas para turmas de 300 alunos "nos bons tempos" em que alguns praticantes dessa especialidade de magistério já haviam saltado das salas de aula para o picadeiro político - caso do ex-deputado e depois senador e prefeito José Fogaça.
Aos 44 anos, casado com a arquiteta Márcia Oliveira de Souza Martins, mãe de seus filhos adolescentes (Santiago, 17, e Manuela, 14), Altair Martins leva a vida fazendo dois trabalhos - lecionar e escrever - que na realidade constituem o exercício da literatura num dos mais altos graus de sofisticação. Doutor em Letras pela Ufrgs, ele começou a vida como professor em cursinhos pré-vestibulares em Porto Alegre, chegando a dar aulas para turmas de 300 alunos "nos bons tempos" em que alguns praticantes dessa especialidade de magistério já haviam saltado das salas de aula para o picadeiro político - caso do ex-deputado e depois senador e prefeito José Fogaça.
Hoje, após uma dezena de livros e premiações em concursos literários, Martins leciona uma vez por semana num cursinho em Caxias do Sul e dirige oficinas de escrita na Pucrs, onde desfruta de excepcionais condições técnicas para dar aulas com modernos recursos audiovisuais. Nessa roda-viva de atividades em salas envidraçadas, são raros os momentos de visibilidade pública, como se deu de 3 a 9 de junho, quando o escritor foi o patrono da 30ª Feira do Livro de Guaíba, a cidade onde viveu desde os três anos de idade até a maturidade. "Minha ligação com Guaíba é de memória: tudo o que escrevo está irremediavelmente ligado à cidade", diz Martins, que mora há mais de 10 anos na sua Porto Alegre natal.
Tocar a sineta de patrono na cidade-berço da Revolução dos Farrapos foi uma espécie de consagração pública após mais de 20 anos de carreira como escritor, mas ele mesmo admite que seria mais feliz se tivesse tantos leitores quanto amigos - ou alunos. Martins ainda se surpreende quando antes de uma aula um aluno traz um livro para autógrafo. "Isso não é comum", disse ele numa noite do início de junho, ao escrever uma dedicatória na primeira página de Enquanto água, livro de contos de 2011 comprado por um dos 22 primeiranistas do curso de criatividade literária da Pucrs - o único curso brasileiro de graduação do ramo, liderado pelo romancista Luiz Antonio de Assis Brasil, o mais antigo e festejado dublê de escritor e praticante de oficinas literárias.
Contista desde criança, Altair Martins vem se aventurando no romance, na poesia e no teatro. Em qualquer modalidade de escrita seu estilo tem altas doses de lirismo e dor. "Acho que literatura é tragédia, dilaceramento humano", explica. Vinte anos mais velho, o contista pelotense-brasiliense Lourenço Cazarré, rico em prêmios literários, reconhece: "O guri tem café no bule", embora admita que, "às vezes", acha seu estilo "louco demais para a minha caretice". Outro escritor e professor, o gaúcho Charles Kiefer considera Altair o melhor escritor brasileiro da atualidade. Martins reconhece em Kiefer seu inspirador: "Eu decidi ser escritor depois de ler Caminhando na chuva", romance de estreia (1982) do colega agora licenciado da Pucrs para uma pesquisa sobre a kaballah (tema de seminário anunciado para novembro Porto Alegre).
O crítico José Castello, editor do jornal literário Rascunho, de Curitiba, não se cansa de elogiar a criatividade de Martins, mas outros professores ou críticos o apontam como um artista que ainda não deu tudo que teria para dar.
O professor Sergius Gonzaga diz ter indicado para publicação o primeiro livro de Altair, no fim do século XX, mas se desculpa por não ter lido Terra avulsa, o romance de 300 páginas editado pela Record em 2014. De qualquer modo, Gonzaga coloca Altair Martins entre os três escritores (com menos de 50 anos) mais promissores da literatura gaúcha - para ele, os outros são Daniel Galera e outro gaúcho, Michel Laub. "Eles são bons, mas nenhum deles criou até agora aquela atmosfera referencial que caracteriza os grandes romancistas como Erico Verissimo e Jorge Amado, por exemplo", radicaliza o atual diretor do departamento de literatura da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.
Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Ufrgs, gosta do que Martins escreve, mas diz que não chega a se envolver com suas narrativas, cujo rebuscamento formal lhe parece mais atraente ao leitor acadêmico do que ao público comum, justamente aquele que deveria se identificar com seus personagens, quase todos pobres, esforçados e trabalhadores, quando não miseráveis.
Impõe-se aqui uma pergunta relacionada ao futuro: por conta de seu vanguardismo, terá o escritor se colocado involuntariamente num beco sem saída? Fischer torce para que ele encontre o caminho, agora que ele embala para entrar na reta final de sua carreira: "Ele é um escritor relevante, que dá a cara a tapa, esteticamente falando, e isso é decisivo (quando) o cara é correto e sincero em buscar formas novas", afirma Fischer.

Ação em sala de aula

Atividades com Altair Martins incluem aulas de intertextualidade na Pucrs

Atividades com Altair Martins incluem aulas de intertextualidade na Pucrs


CLAITON DORNELLES /JC
Durante três horas, na noite de 7 de junho, o repórter que assina esta reportagem acompanhou duas aulas seguidas do professor Altair Martins no curso de pós-graduação em escrita literária da Pucrs, em andamento desde 2016. Eram 22 alunos, a maioria jovens com formação superior e atividades profissionais em áreas afins; eles são da turma que faz o primeiro de cinco semestres do curso. Nessa primeira rodada, há sete matérias a escolher. Se frequentar todas as aulas, o aluno pagará pouco mais de R$ 1 mil/mês (maiores detalhes no site da Pucrs).
Na aula iniciada às 19h30m, o professor - responsável pelo Laboratório de Intertextualidade, esse o nome da matéria - controla um laptop que joga imagens sobre a parede branca. Ele fala rápido, mas a turma parece acostumada com seu ritmo de passador de matéria de cursinhos.
Ricardo, um dos alunos, é instado a ler em voz alta o capítulo que escreveu para encerrar uma narrativa coletiva que se arrasta desde março. O texto é exposto na parede. São duas páginas. A personagem central é Natália, moça deprimida que, três meses atrás, decidira ir à Polônia procurar a mãe sumida desde a morte do marido, pai da guria que não sabe uma palavra da língua polonesa...
Finda a leitura, o professor diz que o rapaz resolveu bem o quiprocó recebido dos narradores anteriores: "A verossimilhança te salvou", afirma Martins, descambando para um processo de revisão que, a bem da clareza e da sintaxe, leva a ligeiras alterações na narrativa.
Revendo o texto, o professor faz comentários sobre o quanto "é difícil sustentar o fantástico" numa narrativa. Aponta "vacilos no vocativo", elogia a pontuação e ensina a diferença entre "onde" e "aonde" - este só usável em situações de movimento.
Volta ao começo para questionar o uso de dois palavrões na mesma frase inicial dita pela personagem central da história. "Basta um", ensina. Corta o "c..." e deixa o "merda". E a aula se encerra com a decisão sobre o título da narrativa coletiva.
As sugestões vão sendo anotadas na lousa. Surgem 10 títulos, desde A busca de Natália até Corredor polonês. Por 11 votos, ganha Meu nome é Natália e não consigo estar sozinha. Sem dúvida, o melhor.

Cuidados com o texto

Em continuação, às 21h, começa a aula seguinte sobre intertextualidade, termo criado pela teórica Julia Kristeva para explicar a presença de um texto em outro. Também se usa a palavra transtextualidade. Segundo outro teórico, Gérard Genette, há oito tipos ou formas de intertextualidade: epígrafe, alusão, citação, tradução, paráfrase, paródia, colagem e pastiche.
Altair Martins explica cada um dos tipos, dando exemplos concretos e lembrando que em muitos textos, sobretudo na internet, os autores costumam usar erroneamente a palavra "referência" em substituição a algumas das categorias acima, o que não é correto nem preciso. A advertência é importante para quem pretende ser profissional da escrita. Último recado do professor: plágio não é intertextualidade - é crime.
Pensam que a aula terminou? Nada disso. Enquanto alguns alunos se retiram, a maioria aprende um pouco sobre modalidades de intertextualidade. A saber:
Paratextualidade: (em livros) são os títulos, subtítulos, prefácio, posfácio, notas de rodapé, epígrafes, ilustrações;
Metatextualidade: é quando o assunto de um texto é o comentário sobre outro texto (exemplo: "D. Casmurro" de Machado de Assis);
Arquitextualidade: classificação de textos por "gavetas";
Hipertextualidade: quando um texto deriva de outro e vão se formando o que na internet é chamado de rizomas (ocorre no Google, Wikipédia etc.);
Tarefa para a próxima aula: fazer uma paródia de algum texto, nem que seja da Canção do exílio, de Gonçalves Dias: "Minha terra tem palmeiras/onde canta o sabiá...".
 

Leitura poética de pinturas

Martins transpôs para texto tela de Angelo Guido

Martins transpôs para texto tela de Angelo Guido


FERNANDO ZAGO/STUDIO Z/SMC/PMPA/JC
"Essa exposição foi uma das coisas mais expressivas que fiz até agora. Trabalhei muito nos textos e na observação das obras", disse Altair Martins ao Jornal do Comércio, referindo-se à curadoria artística que realizou na virada de 2018/2019 a convite de Flávio Krawczyk e Adriana Boff, da Secretaria da Cultura de Porto Alegre.
O trabalho, sem remuneração, consistiu em selecionar obras da Pinacoteca Rubem Berta e sobre cada uma delas escrever um texto. Nasceu assim a exposição O que nos vê, o que nos fala. Martins escreveu 20 poemas expostos entre fevereiro e março passados ao lado das telas selecionadas. O último quadro da exposição foi Ribeirinha, de Angelo Guido (1893-1969), acima, que inspirou o poema Porto Alegre ontem e de hoje.
(Porto Alegre ontem e hoje)
Uma paisagem não tem pressa.
Uma paisagem não chega: sua malha fica,
cores de fruta capazes de eternizar as sombras.
Também a ribeira da memória sabe as horas.
Encostávamos o barco na beirada da tarde,
e as pedras reluziam como se fosse riso.
De certo a terra falava com a água,
que contava do muito peixe para pouca mesa.
As casas bailarinas tiravam o rio pra dançar
e, no tempo em que as roupas secavam nos varais,
também o vento parecia o rapaz bonito
que vinha da cidade com modas de estrangeiro.
Não havia vida fora do tempo espaçado,
dos dias de sol imenso e nuvens como faixas,
porque a vida, na ribeira, era a vida
ao ritmo das comidas que têm seu tempo de cozer.
A cidade nasceu assim, como pincéis
que, sem contorno, dão forma às casas e barcos,
e ao rio com sua paisagem de muita cor tudo
sem que cercas separassem a vida dos vizinhos.
A pressa acabou com as casas, com suas tintas
e seus telhados de barro. A pressa apodreceu
as roupas do varal, roeu os cordões do poste,
fez desmoronar o banheiro flutuante.
A pressa encardiu o céu, passou dedos de graxa
nas nuvens e árvores que se educavam no espaço.
A pressa envenenou os peixes, puiu o rio,
que agora dorme como se estivesse em coma
 

Trecho do novo romance de Altair Martins, 'Os donos do inverno', a ser lançado no segundo semestre

1. As fotografias
O inverno teve um pátio. Dá pra ver na fotografia que não sabemos quando, mas onde aconteceu. Ali estamos nós, os pilotos do avião, no canteiro de obras da casa do Fernando. Ele recém chegou com a família do norte, e ainda não somos irmãossó o Elias e o Carlos. Estamos bem agasalhados para o frio das alturas, prestes a decolar com sucata: uma hélice de ventilador, um cavalete, um assento de cadeira, dois tamboretes, uma tábua. O Carlito, com óculos de natação, confere os equipamentos. O Elias segura a metralhadora que é só um tubo de pvc. No meio do avião, com as asas nos ombros, o Fernando dá estabilidade àquele voo movido a crença. É a primeira vez que brincamos juntos.
Um ano depois, o inverno vai precisar de casa nova, quando a mãe do Fernando morre e o Elias e o Carlito ficam sem pai. Viúvos no mesmo mês, Seu Liandro e Dona Marlene, que já eram vizinhos, se juntam para criar os três filhos. Nos reencontramos na casa de madeira, dividindo o quarto de paredes azuis, o frio das frestas e uma única janela. De resto, uma cama e um beliche, um roupeiro parecido com um confessionário, um espelho grande decorado de figurinhas do campeonato brasileiro e o porta-retratos para aquela fotografia, a do último inverno antes de nos tornarmos irmãos de criação.
E há aquele fotochart recortado da contracapa do jornal. Dois cavalos quase juntos, cabeça a cabeça, e o olhar da égua Onesita, redondo e brilhante, nunca mais tão brilhante e tão redondo como naquela vitória em que o jóquei C. Martins, o nosso irmão Carlito, levanta a mão pela última vez. Um dia perguntamos a ele como os cavalos correm, se só olham pros lados. Pra ganhar uma carreira, os cavalos só precisam dar voltas e chegar sempre ao mesmo lugar. São puros-sangues. Nós é que ficamos olhando pra frente e pra trás. Foi mais ou menos isso que o Carlito disse.

Conteúdo de três anos a jato

Este ano, a Pucrs envolveu alguns professores como voluntários num projeto social em benefício de estudantes carentes que frequentam o curso supletivo do Ensino Médio (EJA) e estão dispostos a fazer o exame do Enem e, depois, tentar entrar na universidade.
No final da tarde do dia 5 de junho, Altair Martins deu a quase 20 jovens uma aula sobre a evolução histórica da literatura brasileira desde o Descobrimento. É uma exposição a galope, pois é preciso condensar em um ano o conteúdo de três anos do Ensino Médio. Um resumo:
I - De 1500 a 1601: Quinhentismo, constituído apenas por documentos históricos informativos e de formação, estes criados pelos jesuítas.
II - De 1600 a 1700: Barroco, calcado na emoção, cujas maiores expressões foram Gregório de Matos na poesia e o padre Antônio Vieira nos sermões (literatura conceptista). Aqui o estilo é rebuscado, explorador de contrastes.
III - De 1700 em diante: Arcadismo, influenciado pelo iluminismo europeu, calcado na razão, daí a tendência a fazer resumos compactos dos conhecimentos existentes, a exemplo dos enciclopedistas franceses, cujos esforços para combater as forças absolutistas resultaram na Revolução Francesa (1789) e na Independência Americana (1766).
Citando o professor Antonio Candido, "a história da literatura começa nesse período", lembra Altair Martins, "porque pela primeira vez há livro, autor e leitor" brasileiros, especialmente em Minas Gerais, onde profissionais liberais idealizam o rompimento com Portugal, do que resulta a condenação de alguns à forca, destaque para o alferes Joaquim José da Silva Xavier, que fazia bicos como "Tiradentes".
Os maiores artistas desse período são os poetas Tomás Antônio Gonzaga (1720-1789) e Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), o escultor mestiço Aleijadinho (1730/38-1814) e o pintor Manuel Athaíde (1762-1830).
A aula fartamente ilustrada com fotos projetadas na lousa dura 50 minutos. O resto da matéria virá nas próximas aulas.
 

Obras de Altair Martins

  • Como se moesse ferro (contos). Porto Alegre: WS Editor, 1999 (Prêmio Açorianos de 2000; finalista do Prêmio Jabuti de 2001);
  • Dentro do olho dentro (conto). Porto Alegre: WS Editor, 2001 (1º lugar no Prêmio Luiz Vilela, da UEMG, de 2000);
  • Se choverem pássaros (contos). Porto Alegre: WS editor, 2002 (finalista do Prêmio Jabuti de 2003);
  • A parede no escuro (romance). Rio de Janeiro: Record, 2008; (Prêmio São Paulo de Literatura de 2009; finalista do Prêmio Jabuti, 2009; Livro do Ano do Prêmio Açorianos de 2012);
  • Enquanto água (contos). Rio de Janeiro: Record, 2011; (Prêmio Moacyr Scliar de 2013);
  • Dicionário amoroso de Porto Alegre (crônica). Anajé: Casarão do Verbo, 2013;
  • Terra avulsa (romance). Rio de Janeiro: Record, 2014 (Prêmio AGES 2015);
  • Guerra de urina (teatro). Porto Alegre: EdiPucrs, 2018.
 

assinatura

*Geraldo Hasse é jornalista desde os 18 anos. Nascido em Cachoeira do Sul, formou-se em Pelotas e passou a maior parte da vida profissional em cidades do Sudeste, onde trabalhou em diversos veículos da mídia impressa. Escreveu uma dezena de livros sobre agricultura, economia, história e meio ambiente.