A cena não poderia ser mais cotidiana. Um passageiro entra no ônibus e escolhe um assento disponível da linha D-43, em Porto Alegre. Tenta se acomodar do jeito que dá, pois mede 1,92 metro, e o espaço entre os bancos é pequeno. Durante o trajeto da avenida Ipiranga, próximo à rua onde mora, até o Campus do Vale, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), manuseia seu telefone celular e escreve no pouco espaço que resta em uma caderneta.
Se a situação parece prosaica, o que esse usuário de transporte público realiza durante cerca de 30 minutos não é nada trivial. No deslocamento até seu trabalho, Leonardo Antunes, 35 anos, traduz para o português a Ilíada, poema épico atribuído a Homero, escrito no século 8 a.C. em grego antigo.
Antunes, que leciona no Instituto de Letras da Ufrgs, integra um time que vem se destacando pela qualidade das versões em português de obras originalmente escritas em idiomas estrangeiros. Esses profissionais se somam a uma linhagem de tradutores que, embora tenham ganhado notoriedade no século XX, atuam desde o século XVII, quando Gregório de Matos traduziu textos do espanhol Luis de Góngora y Lopes.
A atividade é intensa. Antunes traduz caminhando, no banco do ônibus, no sofá ou à frente do computador instalado no cômodo onde trabalha em seu apartamento. A dificuldade do texto original define a circunstância. Em seu celular, arquiva os 15.693 versos da Ilíada. A natureza dessa obra e suas muitas repetições simplificam a tradução, por isso a viabilidade de executá-la no ônibus. O mesmo não foi possível com empreitada recente, que culminou no lançamento de Édipo tirano (Todavia, 2018), de Sófocles.
Existem várias versões da tragédia tebana, então por que outra? "Queria uma que fosse em verso, recriasse o ritmo dos coros e pudesse ser musicada em paralelo ao grego, fosse poética sem ser obscura", justifica. Para concluir o projeto, está terminando de musicar o texto. A propósito: é possível vê-lo cantando versos em grego no canal que mantém no YouTube (www.youtube.com/Anaxandron).
Na Feira do Livro de Porto Alegre do ano passado, a solicitação para que ocorresse uma sessão de autógrafos de Édipo tirano foi inicialmente recusada. Descontente, Antunes lamentou, em seu perfil no Facebook, o episódio e o caráter menor atribuído ao trabalho dos tradutores - com isso, a organização do evento voltou atrás. "Foram muito solícitos", reconhece. "Também ofereceram uma mesa para debatermos tradução, o que foi uma experiência rica."
A sessão de autógrafos se tornou possível porque Édipo tirano tem comentários de Antunes. "Fico na expectativa de que passem a oferecer essa gentileza também às traduções sem paratexto, compreendendo que o próprio trabalho tradutório já é um esforço de interpretação e de criação."
* Jornalista (Ufrgs), mestre em Comunicação Social (Pucrs) e doutorando emLetras (Ufrgs). Leciona na especialização em Escrita Criativa da Universidade Feevale. Autor de Não existe mais dia seguinte (Editora Taverna).
Sistemas literários
Situações como a ocorrida na Feira do Livro revelam o papel secundário atribuído à prática tradutória. No sentido contrário, uma das maneiras de compreender a importância das traduções é perceber o papel que elas têm na formação de sistemas literários.
Editoras e tradutores, ao decidirem que autores e obras são traduzidos, determinam a maneira pela qual uma literatura estrangeira é conhecida fora do seu sistema original. Essas questões se baseiam na noção de "sistema", desenvolvida no Brasil em termos consistentes por Antonio Candido, em seu livro Formação da literatura brasileira (1959).
Para a professora Karina Lucena, do Instituto de Letras da Ufrgs, Candido entende a literatura como uma "instituição da cultura", ou seja, em relação dialética com a sociedade. Por isso, a literatura não é uma coletânea de autores e obras, mas um sistema dinâmico em que autores, obras e público formam uma tradição. "Um autor publica um livro ou tem certa inserção em jornal, seu texto é lido pelos pares, gera algum debate, outro autor se abastece disso e escreve um novo texto, e assim vai", detalha.
Karina observa que "nos acostumamos a pensar essa dinâmica em termos nacionais, o que faz todo sentido: se a ideia é entender a literatura em sua relação com a sociedade, a sociedade que temos é a brasileira, com todas as suas divisões e tensões internas, mas ainda assim brasileira". Ocorre que "esse sistema literário de autores, obras e público se alimenta também de outras tradições, e é aí que entra a tradução".
Diferentes percepções, mesmo sentido
Segundo Karina, o contato com o texto literário estrangeiro ajuda na construção de estilos locais
LUIZA PRADO/JC
O professor Andrei Cunha, da Ufrgs, observa que nenhum autor ou literatura são representados no exterior da mesma maneira que em seu país. Os anglófonos não valorizam a poesia do argentino Jorge Luis Borges, por exemplo.
"No Brasil, acreditamos que Mishima era primariamente um romancista, quando, no Japão, ele é, talvez, mais lembrado por sua obra teatral. E Mishima é o autor japonês mais traduzido no Brasil, o que não está de acordo com o seu sistema de partida (o Japão), onde autores como Kawabata e Shûsaku Endô são mais admirados."
Trata-se de uma situação contra a qual não há nada a fazer, reconhece Cunha, pois diferentes sistemas vão absorver diferentes autores de maneiras distintas. Além disso, as percepções mudam com o tempo. "Editores e tradutores são elementos importantes dessa recepção diferente que as obras literárias têm em lugares distantes de sua origem."
Um problema que o professor percebe nesse contexto, em especial, no Brasil, é que há pouquíssima poesia traduzida, pois os editores seguem à risca o senso comum de que prosa vende mais. "É uma pena. Não raro foi a poesia - e, muitas vezes, a poesia traduzida - a responsável pelas grandes renovações literárias."
Conforme Karina Lucena, o escritor brasileiro lê autores nacionais que vieram antes dele, mas também lê franceses, ingleses, espanhóis etc. "Esse contato com o estilo e a matéria estrangeiros ajuda a fundar os estilos locais, ilumina e contrasta com a matéria local", detalha.
"Em que língua os escritores brasileiros acessam esses livros fundamentais para sua formação como escritores?" Se o autor integra uma elite cultural, pode dominar as línguas hegemônicas de seu tempo, mas ainda assim é difícil que não tenha conhecido algo em tradução. "Nesse sentido, uma primeira forma de ver o impacto da literatura traduzida em sistemas locais é nesse âmbito da construção do estilo de um escritor."
A literatura traduzida impacta bastante também o público, na outra ponta do processo. "À medida em que o sistema se consolida, o público se amplia, imprensa e editoras se estabelecem, e a tradução passa a ocupar lugar central nessa dinâmica."
O resultado, resume Karina, "é que livros traduzidos dividem espaço com livros nacionais, autores nacionais trabalham como tradutores, leitores definem seu gosto com base nessa oferta heterogênea". A noção de sistema fica ainda mais dinâmica se for compreendido "o triângulo autor, obra e público fundando uma tradição da qual participa também a tradução".
Um processo artístico e criativo
Botelho lembra de metáforas que explicam o processo de tradução
/CLAITON DORNELLES/JC
Leonardo Antunes define tradução como "um esforço dialético que busca estabelecer possibilidades de (re)significação e derivação estética". Gosta desse conceito, pois derivar significa tanto "ficar à deriva" quanto "ter origem em algo, do qual ao mesmo tempo se diverge em algum grau".
O professor Guilherme Gontijo Flores, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), entende o processo "como uma experiência limítrofe de linguagem que é, ao mesmo tempo, uma das mais comuns e recorrentes da história da humanidade".
O escritor e tradutor José Francisco Botelho tenta uma definição mais subjetiva, lembrando a existência de várias metáforas que explicam o processo de tradução. Ele adota uma que pinçou da Odisseia, de Homero:
"Um tradutor é como Ulisses descendo ao mundo dos mortos. Na orla do Hades, as almas acorrem e o cercam, mas perderam a memória e nada conseguem lhe dizer. Para devolver voz e memória aos mortos, Ulisses precisa verter sobre a terra o sangue de uma vítima sacrificial. O tradutor, contudo, deve verter seu próprio sangue e dá-lo de beber aos mortos. E assim os mortos falam, mas a voz que deles vem também traz o ressaibo do sangue que beberam".
Uma primeira questão que se impõe para o tradutor é a maneira de lidar com o texto a traduzir. "A variedade de abordagens distintas contribui para a própria grandeza do original: ele se torna maior e mais vibrante pela multiplicidade de reflexos distintos que vai ganhando com o tempo. Cada nova tradução traz novas possibilidades de diálogo com as anteriores e com o original", afirma Antunes.
Ao refletir sobre o texto de partida, o professor Rodrigo Tadeu Gonçalves, da UFPR, não consegue pensar em uma relação que deva existir, pois há diferentes modos de traduzir, todos válidos. Há traduções concebidas para serem mais "transparentes" e "claras", atendendo a uma expectativa do mercado, em que o tradutor se esconde por trás do texto. Isso cria "a ilusão de que o texto de chegada é igual ao de partida, só que em outra língua". Nessa situação, o tradutor produz um texto que não apresenta barreiras ao leitor, como se tivesse, de fato, sido escrito na língua de chegada, mas Gonçalves adverte: "Trata-se de uma ilusão".
Quando o mercado editorial sustenta essa ilusão, que a tradução deve visar à fidelidade irrestrita, o mais usual é que contratos firmados com tradutores ou com editoras estrangeiras que adquirem os direitos de publicar uma tradução apresentem cláusulas proibindo que o texto seja alterado, diminuído ou aumentado.
"Por um lado, claro, isso garante o máximo de fidelidade ao texto original e faz com que o leitor saiba que não vai ler uma adaptação, uma reescrita", ressalta Gonçalves. "Por outro lado, por definição, esse contrato é impossível de se cumprir, porque uma tradução, só por ser uma tradução, é necessariamente diferente do texto original, e, por definição, altera, diminui, aumenta."
A invisibilização do tradutor não é a única possibilidade de se verter um texto para outro idioma. Gonçalves esclarece que "a tradução literária pode fazer questão de mostrar a estranheza do texto e da língua originais, criando formas, padrões, ritmos, produzindo um texto em que o tradutor não se apague, e que diga o tempo todo que está lá, e que o texto é uma tradução, desestabilizando a ilusão de igualdade, propondo com ousadia que a tradução é e não é igual ao texto original ao mesmo tempo".
Não há regra, mas tradutores evitam certos pressupostos
Andrei Cunha afirma que, ao contrário de muitos de seus colegas, não acredita que haja regras definitivas ou que algumas formas de traduzir sejam hierarquicamente superiores a outras. "Um texto japonês da Antiguidade não é o mesmo tipo de desafio que um romance policial mexicano dos anos 1960", compara.
"Outros fatores entram em conta: posso traduzir o mesmo clássico grego mantendo a métrica, pensando em uma edição em prosa para um grande público, com vistas à encenação teatral, para um livro didático etc., e cada uma dessas traduções vai ser diferente, e - que é mais importante nesta minha argumentação - nenhuma delas intrinsecamente melhor."
No seu entendimento, os prêmios de tradução no Brasil valorizam mais um ideal de "tradução artística", mas mesmo essa categoria estreita abre lugar para um vespeiro de possibilidades. "Existem traduções que precisam de uma linguagem mais simples - por exemplo, quando associadas à arte sequencial ou audiovisual. Quando traduzindo para a televisão, o número de letras da legenda é um fator importante. E sim, eu considero a tradução de legendas e de histórias em quadrinhos como sendo tradução literária."
Cunha lembra que um texto japonês publicado no Brasil terá mais notas de rodapé do que um texto de língua inglesa, "pois a praxe da comunidade leitora é diferente: o consumidor de romances japoneses, muitas vezes, busca esse tipo de texto porque deseja entrar em contato com aspectos da cultura e da sociedade do Japão, o que nem sempre é o caso com relação a outras culturas".
Não existem regras, mas tradutores evitam ou observam determinados pressupostos. Guilherme Gontijo Flores, embora reconheça as dinâmicas do mercado editorial que exigem o contrário, defende que não haja pressa, pois "o tradutor precisa viver um tempo o texto para traduzir melhor".
Leonardo Antunes, lembrando a natureza artística e criadora da tradução, entende que ela precisa ser livre: "Não sei se há algo que não deva ser feito ou testado". Para ele, mesmo projetos que pareçam fracassados apresentam potencial didático: "No mínimo, nos mostram o caminho que não serve a nós, mas que pode servir a outros".
Quanto ao que é indispensável, Flores é taxativo: "Uma relação de afeto profundo com a língua de chegada". A maioria das pessoas pensa que o tradutor precisa apenas dominar duas línguas, o mais importante, no entanto, "é ter um domínio profundo da língua em que escreverá a tradução", pois "um tradutor que escreve mal é mau tradutor".
Rodrigo Gonçalves aponta como fundamental que um tradutor tenha "bom domínio da língua de chegada e de partida, perseverança e bom ouvido para ler a tradução em voz alta". Isso permite perceber se a tradução "soa bem, se não soa só como uma versão do outro texto na sua própria língua, com os cacoetes, trejeitos e sotaques da outra língua".
No Brasil, há ótimos tradutores em ação
Nomes como dos irmãos Campos, José Paulo Paes, Décio Pignatari e Guilherme de Almeida se notabilizaram
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Na atualidade, há vários tradutores celebrados no Brasil, mas essa fartura de bons profissionais não é recente. Guilherme Gontijo Flores remonta a Gregório de Matos, no século XVII, "já que no corpus atribuído a ele temos versões de Góngora e de outros autores".
Rodrigo Tadeu Gonçalves acredita que "essa é nossa vocação há muito tempo". Lembra que dom Pedro II era tradutor de várias línguas (grego, hebraico, latim), e o século XIX viu também o nascimento de uma tradição brasileira de tradução criativa com Manoel Odorico Mendes, tradutor de Homero e Virgílio.
É no século XX que se estabelece, de fato, uma tradição, ressalta Flores. "No caso da poesia, que é o que mais me interessa, o trabalho dos poetas concretos com tradução foi fundamental para estabelecer uma série de pressupostos e levantar o nível geral do que consideramos ser uma boa tradução."
Para Leonardo Antunes, no século passado, não faltaram excelentes tradutores e teóricos da tradução no País. "Além dos nomes mais óbvios, como o dos irmãos Campos, José Paulo Paes, Décio Pignatari e Guilherme de Almeida, citaria, ainda, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Carlos Alberto Nunes, o próprio Manuel Bandeira e toda uma leva de tradutores ainda vivos e atuantes, como Jaa Torrano, João Ângelo Oliva Neto, Marcelo Tápia, Donaldo Schüler etc."
Antunes considera Haroldo de Campos o mais notório: "Além de ter sido exímio tradutor e poeta, propôs ideias radicalmente novas no campo dos Estudos da Tradução. Algo semelhante só surgiria cerca de 20 anos mais tarde na França, com Henri Meschonnic".
"Há algo como um padrão em culturas que querem construir sua identidade nacional através da tradução, incorporando obras e gêneros do outro ao seu tesouro nacional", lembra Gonçalves. Isso aconteceu na criação da literatura em Roma nos séculos 3 e 2 a.C., por exemplo, quando a literatura latina nasceu como um conjunto de obras traduzidas do grego, e na Alemanha dos séculos XVIII e XIX, com o Idealismo e o Romantismo, que tinham um componente identitário forte que buscava construir sua tradição e literatura a partir da tradução de tudo que fosse importante e relevante, explica, sugerindo que o Brasil tem essa mesma vocação.
"Há muitas traduções diretas de várias línguas, e seria injusto citar nomes, mas basta olhar anualmente as listas de finalistas dos grandes prêmios de tradução para se ter uma ideia da diversidade e do impacto dessas obras", afirma Gonçalves. Ele estabelece um contraponto a esse panorama, que é o mercado dos Estados Unidos: "Muito pouco se publica em tradução, relativamente ao total de publicações. Uma cultura mais monolíngue, talvez, ou mais próxima do bilinguismo com o espanhol, mas essa é outra história".
Andrei Cunha destaca o trabalho de Mamede Mustafa Jarouche, "que teve uma trajetória quase heroica no mundo acadêmico brasileiro, em defesa do ensino da língua árabe, e assinou a tradução do Livro das mil e uma noites (Globo, 2005)". Cunha ressalta que não se deve esquecer que o árabe não é, historicamente, uma língua de prestígio no País.
"Uma decisão de traduzir um livro do árabe encontra muito mais resistência do que de outras línguas percebidas no Brasil como detentoras de status cultural. Esse tipo de cálculo, infelizmente, ainda é decisivo para a publicação de uma tradução." Ele define o trabalho de Jarouche como um ato de coragem. "Essa tradução das Mil e uma noites é uma das melhores e mais modernas do mundo. No Brasil, emprestou legitimidade e incentivo a traduções de fora do círculo estreito das línguas indo-europeias."
Estratégias distintas conforme o projeto
Cada projeto demanda do tradutor estratégias e decisões distintas. Em Contos da Cantuária (Penguin - Companhia das Letras, 2013), primeira tradução integral em português dos versos de The Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer, José Francisco Botelho criou uma Idade Média ficcional com toques linguísticos brasileiros, recorrendo à poesia oral popular, especialmente o cordel nordestino e a trova gaúcha.
De William Shakespeare, traduziu Romeu e Julieta (Penguin - Companhia das Letras, 2016) e Júlio César (Penguin - Companhia das Letras, 2018), "utilizando diferentes tipos de versos para dar conta da imensidade de significados que o texto do Bardo nos propicia".
Antes de verter para o português os Fragmentos completos de Safo (Editora 34, 2017), Guilherme Gontijo Flores precisou aprender e dominar um grande número de metros e ritmos da poesia grega arcaica, que tradicionalmente era cantada, para depois traduzir segundo esses ritmos. Isso foi necessário porque almejava "que o texto em português fosse potencialmente cantável nos mesmos metros e ritmos".
Também se empenhou "para limpar do texto certa dicção esperada em textos clássicos". Pretendia que Safo aparecesse viva, "um convite ao canto, para nos lembrar que os fundamentos da literatura ocidental estão na voz, e não na folha de papel".
A versão para o português de O paraíso reconquistado, de John Milton (Cultura, 2014), demandou 10 mãos: Guilherme Gontijo Flores, Adriano Scandolara, Bianca Davanzo, Rodrigo Tadeu Gonçalves e Vinicius Ferreira Barth. O grupo traduziu em decassílabos. "Nos encontrávamos com frequência para ler a tradução de cada trecho e suavizar diferenças, dando a ilusão de um texto construído por um único tradutor", conta Flores.
Percurso formativo
Cada tradutor percorre um percurso próprio antes de começar a verter um texto de um idioma para outro, oscilando entre a satisfação de um prazer e estudos formais. “Eu me tornei tradutor porque amo poesia, porque queria traduzir os poemas que amo nas línguas em que consigo ler”, recorda Guilherme Gontijo Flores.
Na graduação, teve acesso a textos teóricos sobre tradução e acompanhou de perto o trabalho do professor Raimundo Carvalho. Depois disso, fez mestrado, quando traduziu as Elegias de Sexto Propércio (Autêntica, 2014).
Leonardo Antunes começou a se aventurar na tradução na mesma época em que esboçou seus primeiros versos. “Lembro de ter traduzido The first kiss of love, de Lord Byron, enquanto esperava o início do meu primeiro ano na faculdade.” Admite que foi pura petulância. “Não tinha treinamento. Esse só veio depois, durante a graduação, quando tive a felicidade de estudar com grandes tradutores e tradutoras.”
A história de José Francisco Botelho parece um tanto folclórica, mas ele garante a veracidade. Quando era criança, leu Historia de la noche, de Jorge Luis Borges, onde havia um poema chamado El caballo, que descrevia um cavalo. No meio do detalhamento, o autor argentino comenta: “Me lembrava aquele estranho verso de Chaucer, a very horsely horse”. Botelho sabia inglês o bastante para perceber a estranheza do verso. “Fiquei meio obcecado com aquele ‘very horsely horse’ e decidi encontrá-lo no livro”, conta.
Ele leu a tradução de Paulo Vizioli para o escritor inglês, mas não achou essa linha e pensou que podia ser consequência da passagem da poesia à prosa. Anos depois, consultou uma tradução em inglês moderno (o original é em inglês médio) e seguiu sem localizar o verso. “A coisa estava ficando meio pessoal, e resolvi fazer o que qualquer pessoa normal faria: estudar inglês médio e ler o original de Chaucer.”
Passaram-se alguns anos até Botelho ler os Canterbury Tales no inglês do século XIV para finalmente descobrir que Borges fizera uma citação errada. Aquele verso não existia. “Fiquei tão furioso que resolvi enfiar o verso inexistente na obra existente”, admite. Botelho compôs a linha “era um cavalo muito cavalar” e a introduziu no Conto do escudeiro.
Depois traduziu o restante da estrofe em decassílabos rimados, a partir daí o conto todo, até concluir o livro inteiro, que acabou lançado pela Penguin – Companhia das Letras em 2013. Nesse percurso, Botelho estudou teorias da tradução no mestrado em Letras, com as professoras Sara Viola Rodrigues e Patrícia Lessa Flores da Cunha.
Textos clássicos e remotos
A tradução de uma obra clássica, ou distante no tempo, estabelece questões específicas para o tradutor. Por exemplo: o aqui e agora deve ser considerado, assim como a linguagem contemporânea? A tradução dos clássicos é feita em diálogo com os tempos atuais? Como isso ocorre?
José Francisco Botelho tenta alcançar um equilíbrio, ou uma simbiose, entre o estranho e o familiar. “Quero transmitir ao leitor uma estrangeiridade, uma distância, mas ao mesmo tempo enredá-lo em sons, referências e atmosferas que lhe sejam – estranhamente – familiares”, propõe.
Guilherme Gontijo Flores leva muito em conta a linguagem e a poesia contemporâneas, mas desconfia que a imensa maioria dos tradutores de obras clássicas considera que isso rebaixa o clássico. “É um triste erro de julgamento”, lamenta.
“Horácio, ao longo de suas obras, vai do xingamento mais baixo às formulações mais sublimes; Dante, na Divina comédia, usa palavrões quando descreve cenas do Inferno; Camões mistura a linguagem elevada e o registro coloquial de seu tempo; Rabelais é um mestre da fala das ruas, misturada a termos técnicos eruditíssimos.”
Ressalta ainda que os clássicos não surgiram nesta condição, mas se tornaram. “Eles nascem da língua de seu tempo, e quase nunca tiveram pudor de usá-la muito plenamente. Por que não deveríamos fazer o mesmo ao traduzi-los?” “Faço tradução para o momento atual, pois é o momento de que faço parte”, resume Leonardo Antunes. “Busco uma estética que, em primeiro lugar, me agrade.
Essa estética é atual na medida em que é minha e eu faço parte do aqui-agora.” Mesmo quando foge da linguagem mais atual, isso é feito em um jogo dialético com seus contemporâneos, pensando em como essa estranheza vai ser assimilada, nos efeitos que terá na experiência estética do leitor.
“De resto, creio que fazer o diálogo com o presente não só é inevitável como extremamente positivo. Alienar os clássicos do presente só cabe a uma abordagem que busque alienar também o próprio leitor.” Antunes defende que o tradutor atente para as potencialidades de sentido de um texto dentro do contexto em que vive.
Para Rodrigo Tadeu Gonçalves, existem várias maneiras de se traduzir um clássico. “Mesmo que não se vise, por exemplo, recriar um clássico num contexto que faça mais sentido para a contemporaneidade em um tipo de equivalência cultural (penso, por exemplo, em boas ideias de oralização de Homero, em versões possíveis puxando para o hip-hop ou para o repente), os bons tradutores de textos clássicos tendem a se afinar com a poética contemporânea – um dos preceitos de Haroldo de Campos – para que sua tradução seja literária dentro do contexto do que se considera boa literatura no momento.”
Não se trata de modernizar locais, personagens ou costumes – o que não seria proibido, ressalva Gonçalves, dependendo do projeto –, “mas sim de escrever em uma linguagem poética atinada com o que se pratica hoje tanto na literatura nacional quanto na boa literatura traduzida”. Para que isso ocorra, é necessário que o tradutor seja “um leitor voraz de muitos estilos, gêneros e épocas”.
A tradução de textos clássicos ou de datação remota estabelecem, por vezes, outro tipo de problema, quando há expressões e contextos desaparecidos. É o que se percebe, por exemplo, com os trocadilhos usados por Shakespeare, que buscava humor por meio de jogos de palavras. “Ocorre que a semelhança entre palavras é uma coincidência da língua e muito raramente se repete em outro idioma”, pondera Botelho. “Além disso, há piadas que envelhecem rápido e se tornam incompreensíveis.”
A solução praticada pelo tradutor é recriar o efeito cômico em outros termos, que funcionem em português, no Brasil, hoje. “Se em Shakespeare há um trocadilho envolvendo peixes e sexo, farei uma piada sobre peixes e sexo em português – mas talvez troque os nomes dos peixes ou a parte do corpo”, propõe. “O importante é que o leitor ou o espectador sorria, ao menos, sem ter que olhar a nota de rodapé.”
Antunes tenta solucionar essa questão de diversas maneiras: “Às vezes busco uma equivalência, às vezes procuro explicar dentro da própria obra, às vezes ponho uma nota e outras vezes deixo o leitor se virar com uma experiência de alteridade radical, algo que também julgo muito interessante”.
Em geral, Flores opta por notas, mas depende do projeto tradutório: “Elas sempre são necessárias, ou pelo menos bem-vindas”. Entende que, com o texto, existe um contexto, então por que não trazer parte dele junto com a obra? “Eu era parcimonioso com notas, mas hoje anoto quase tudo, embora tente sempre ser realmente conciso.”
Botelho compara suas notas às do historiador inglês Edward Gibbon: equivalem a uma conversa após o jantar. “Adoro escrever notas, assim como adoro lê-las. Mas tento recriar os efeitos desejados no próprio texto”. Já Antunes é mais parcimonioso. “Notas também são parte de um projeto maior, de uma abordagem de trabalho. Pessoalmente, não gosto delas”, opina. Prefere colocá-las no final, para não poluir o texto. “Mas, como disse, isso é parte do projeto: quero meu texto como um objeto estético bem-acabado. As notas de rodapé, a meu ver, dão ao texto um aspecto de objeto dissecado sobre a mesa de trabalho.”
O que se discute na atualidade
O debate contemporâneo sobre a prática da tradução abarca um punhado de temas. O que mais interessa a José Francisco Botelho são os conceitos de traduzível e intraduzível. Ele cita o filósofo francês Paul Ricoeur, segundo o qual, “pela lógica, a tradução deveria ser impossível, já que os termos de uma língua não podem ser reduzidos integralmente aos termos de outra”.
Contudo, esse “impossível” acontece por meio de uma “hospitalidade linguística”, ou seja, uma língua acolhe em si algo que lhe é estranho, e torna-o familiar, explica Botelho. “[A professora de literatura comparada] Emily Apter, no livro Against world literature, aponta o Intraduzível como centro da atividade tradutória, que seria, sempre, uma espécie de fracasso.”
Para avançar neste tema, Botelho recorre a Guilherme Gontijo Flores, que no livro Algo infiel, escrito em parceria com Rodrigo Tadeu Gonçalves (n-1 edições, 2017), “defende com muita propriedade o argumento oposto, de que nada é intraduzível, de que a tradução transforma o inefável em efável”.
Flores estimula um debate que lhe parece fundamental, “que é o da tradução em performance vocal, ou seja, a tradução de canções, hip-hops, filmes etc., para entender o que acontece quando as vozes se alteram junto com o texto”. Outro assunto que figura entre seus interesses e que aponta como fundamental é “tentar entender como traduções são, também, modos de agir sobre o mundo, quando tomam posições políticas, tanto na escolha das obras a traduzir, quanto nas escolhas tradutórias”.
As questões mais relevantes da atualidade têm a ver com política, defende Antunes. “A liberdade que damos ao tradutor é reflexo de como enxergamos nossa cultura em relação à cultura do texto a ser traduzido. A fidelidade e subserviência que geralmente se esperam do tradutor têm uma forte correlação com o papel periférico que ainda temos com os centros de poder.”
Existe muita oferta de pesquisas na área de tradutologia ou estudos da tradução. “Há pesquisas mais voltadas à performance tradutória, ao desempenho, ao processo. Há pesquisas centrados no produto, na tradução literária e na tradução técnica”, detalha Gonçalves.
“Quem mais tem coisas interessantes a dizer sobre tradução são figuras como Haroldo de Campos e Henri Meschonnic.” Ressalva, no entanto, que é importante ouvir e ler os grandes tradutores em atividade no Brasil, entre eles Denise Bottmann, Paulo Henriques Britto, Caetano Galindo e Guilherme Gontijo Flores.
No passado, o principal debate acerca da tradução era a obsessão pela fidelidade ao original. “Essa discussão, por ociosa e irresolvível, acabou virando apenas matéria para provérbios e blagues”, resume Botelho. “Era um desejo de entender certo purismo do significado. No fundo, era um sonho de pensar cientifica e idealizadamente a tradução”, comenta Flores. “Prefiro pensá-la decaída, como ato humano.”
Alguns temas do passado permanecem. “Qual é o papel do tradutor?, qual seu grau de liberdade?, deve-se domesticar ou estrangeirizar o texto?, quais os limites entre tradução, adaptação e recepção?”, pontua Antunes. Reconhece que são temas instigantes e que nenhum caducou, pois ganharam novas dimensões sob a ótica política.
Era comum que as discussões sobre o ofício de tradutores aparecessem na própria obra deles e na de críticos. “Hoje, o corpo de conhecimento se constitui como disciplina, com seus meandros, brigas, vertentes, paradigmas”, afirma Gonçalves. O importante “é que mais pessoas de fora da academia possam pensar sobre o processo de tradução, sobre a importância e complexidade do processo e dos fazeres”. Só assim, garante, “sairemos da armadilha de pensar que só há um modo de traduzir: o certo”.
'Garota de Ipanema' versus 'The girl from Ipanema'
O professor Leonardo Antunes publicou em sua página no Facebook, no dia 31 de janeiro, uma pequena aula sobre tradução a partir da comparação entre os versos de Vinicius de Morais para Garota de Ipanema, sobre música de Tom Jobim, e a tradução feita por Norman Gimbel.
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