Jorge Amado dizia acreditar nos milagres do povo. Militava no comunismo sim, desde jovem, mas acreditava em deuses que chegaram ao Brasil no porão dos navios negreiros - e que ainda hoje vêm dançar diante dos homens.
Filho de Oxóssi, o orixá das matas, ele é um dos autores brasileiros de maior sucesso comercial dentro e fora do País. Não é a à toa que a imagem que o Brasil construiu de si - e a que o mundo tem dele - passa em parte pelos seus livros. Amado deixou uma obra solar, sensual e bem-humorada, que toma como matriz a cultura popular - em especial, a herança africana.
O escritor ganha, agora, uma biografia de fôlego, escrita pela jornalista e pesquisadora Joselia Aguiar. Trata-se de uma pesquisa de sete anos, com acesso a depoimentos e documentos inéditos.
Um dos mitos que Jorge Amado - Uma biografia (Todavia, 640 págs., R$ 79,90) tenta desfazer é o de que Jorge Amado só alcançou o sucesso por causa de suas ligações com o comunismo internacional. Ele contaria, segundo essa crítica, com o lobby do partidão a seu favor.
Mas ele, desde sempre, trabalhou conscientemente para ter esse sucesso, mostra a pesquisa. E só foi traduzido na Rússia no fim dos anos 1940, depois de ter saído na França e nos Estados Unidos - país que podia ser acusado de tudo, menos de socialista. É só então que o público da cortina de ferro vai se encantar com uma prosa que fugia aos ditames do realismo soviético.
"Alguém poderia argumentar que a Gallimard tinha pessoas de esquerda, mas não era o caso da Alfred A. Knopf", diz Joselia. O lugar de Amado na literatura brasileira, até hoje, continua em disputa - em certos segmentos, o autor é diminuído como um reles contador de histórias, em outros, é acusado de criar uma imagem muito exótica do Brasil.
Um trabalho histórico com esse escopo serve para ver que o mundo não foi inventado ontem. Amado enfrentou essas críticas desde cedo. Na eclosão do romance da década de 1930, regionalista, o autor vai ser acusado de não explorar a psicologia de seus personagens, de fazer uma literatura documental e até de ter um texto excessivamente oral, quando não com erros de gramática.
Altivo diante das críticas, só mais velho, já debilitado, Amado vai dar sinais de irritação com elas. A biógrafa traça um amplo panorama dessa recepção ao longo dos anos - que atinge o auge com Gabriela cravo e canela e as sucessivas adaptações de sua obra para o cinema e a TV.
Entre os documentos revelados por Joselia está o romance inédito Rui Barbosa nº 2, escrito em 1932. A obra já tinha um personagem chamado Archanjo, o que sugere um rascunho do Pedro Archanjo de Tenda dos milagres. A data do manuscrito mostra que o interesse de Amado pelo candomblé vinha desde jovem - e não só depois de sua desilusão ao descobrir os crimes de Stálin.
O autor via no candomblé uma forma de resistência política e cultural. Isso em uma época na qual terreiros eram duramente perseguidos pela polícia. Tanto que Amado, quando foi deputado, nos anos 1940, criou a lei de liberdade religiosa, até hoje em vigor. "O pessoal de esquerda mais ortodoxo sempre achou isso esquisito. Mas a escolha dele por histórias afro-baianas é uma decisão política", afirma Joselia.
O primeiro casamento do escritor, com Matilde Garcia Rosa, também é esmiuçado na biografia. E a autora revela um diário inédito da filha que o baiano teve nessa união, Lila, morta aos 15 anos. Joselia também se baseia nas fichas do autor nas polícias políticas do Brasil e de Portugal - onde sua obra chegou a ser proibida -, além de cartas com outros intelectuais e com políticos.
O livro apresenta uma narrativa que mistura política, fé, literatura, amores - aí incluído o encontro com Zélia Gattai - e amizades. Quando morreu, em 2001, o escritor teve em seu velório 15 mil pessoas. Estava traduzido para 49 idiomas e vendera 80 milhões de livros pelo mundo.
Feito o axexê, a cerimônia do candomblé para os mortos, as cinzas de Amado foram descansar entre as plantas de sua casa em Salvador. No lugar onde elas ficam, até hoje, lê-se uma frase dele: "Aqui, neste recanto de jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis o meu testamento".