"O lance dele era ser músico 24 horas por dia." Assim o baterista Alexandre Barea define o amigo e ex-colega de Cascavelletes Flávio Basso, em trecho da biografia Júpiter Maçã - a efervescente vida e obra (Plus, 420 págs., R$ 68,00 até o dia 9; depois, R$ 88,00), de Cristiano Bastos e Pedro Brandt. Composta por 27 capítulos e cerca de 50 fotos, a publicação revela pormenores da trajetória do porto-alegrense - desde o ingresso no mundo do rock, de forma tão intensa e precoce que quase o impediu de concluir o segundo grau, até sua morte, aos 47 anos, em 2015.
Para marcar o lançamento e celebrar a produção do homenageado, dois eventos acontecem nesta semana. Nesta quarta-feira (5), uma festa com show da Império da Lã e de ex-parceiros do músico é atração no Ocidente (Osvaldo Aranha, 960), a partir das 22h, com ingressos a R$ 30,00. No domingo (9), às 18h30min, a Cinemateca Capitólio Petrobras (Demétrio Ribeiro, 1.085) promove uma sessão gratuita com exibição de registros raros e históricos de Júpiter Maçã, como Flávio ficou conhecido quando ingressou em carreira solo. Em ambas ocasiões, o livro será vendido e autografado.
O volume é fruto de mais de dois anos de apuração e consulta de reportagens, resenhas, vídeos, arquivos familiares e de fã-clubes, além da realização de uma série de entrevistas com colegas, parentes e amigos que permearam a órbita do músico. O próprio A odisseia - memórias e devaneios de Jupiter Apple (2016), livro de memórias realizado por Juli Manzi a partir de conversas com o artista, serviu como fonte.
O trabalho da dupla por vezes até contrapõe alguns dos casos narrados por Flávio Basso para o livro de 2016, através das versões de outros personagens das mesmas histórias. Bastos e Brandt não ouviram diretamente o protagonista ao longo desse processo: quando começaram a desenvolver o projeto, o biografado já havia falecido, vítima de um infarto agudo do miocárdio. Um dos episódios, por exemplo, envolve um homem armado que invadiu as gravações de A sétima efervescência, primeiro disco de estúdio do músico sob o pseudônimo de Júpiter Maçã. "Em A odisseia, o Júpiter nem dá tanta importância ao fato. Mas, depois disso, ele ficou paranoico", compara Bastos, um dos autores de Gauleses irredutíveis: causos e atitudes do rock gaúcho (2001), livro para o qual entrevistou o ícone.
Todas as diversas facetas musicais de Basso estão em pauta no lançamento. Entre outros tantos momentos, são narrados o início de percurso com a banda TNT, a qual abandonou mesmo estando às vésperas de uma grande oportunidade, e a criação e o fim dos Cascavalletes - incluindo passagens sobre a origem da canção Sob um céu de blues. Além da participação nos dois grupos, fundamentais na história do rock gaúcho, a trajetória solo, claro, também tem destaque. O produtor Egisto dal Santo esmiúça o desenvolvimento do já citado A sétima efervescência, por exemplo. Flávio Basso determinou que músicos e produtores voltassem no tempo para 1969 para entrar no clima da obra - no fim, o registro psicodélico virou clássico cult e foi incluído na lista de 100 melhores discos brasileiros da revista Rolling Stone.
Se, por um lado, o livro funciona como material de pesquisa sobre a música independente produzida nas últimas décadas em Porto Alegre, por outro, destaca um personagem além do estereótipo reducionista muitas vezes atrelado ao artista - o de roqueiro bêbado e drogado. O retrato destacado pelos autores apresenta um homem cheio amores, desamores, inseguranças, perfeccionismos, aventuras e, sim, também com problemas com o álcool que marcaram especialmente seus últimos anos. O livro, considera Bastos, apresenta bem o sofrimento nessa fase final de sua vida - com as tentativas de intervenção dos amigos, o alento dos períodos de sobriedade e as frequentes recaídas. "Tem um ponto bastante crucial. Um salto no alcoolismo dele foi quando do falecimento do seu filho (em 2001, quando o garoto tinha 11 anos)", afirma. "Mas a música dele consegue sobrepujar a questão do 'mito alcoólico'. Acho que, nas músicas dele, é mais 'mito erótico' e 'psicodélico'. Pornográfico lá no começo. Juvenil".
A semente para que Júpiter chegue a novos públicos, acredita o escritor, já foi lançada. "É impressionante como ele é amado, apesar de todas as polêmicas de quando, no final, ele teve uma decadência e as pessoas meio que o tiraram para um personagem, um clown. Isso já está começando a se reverter", observa. "A tendência é que comecem a enxergar o artista. A obra só tende a germinar, porque ele fez muita coisa, e isso é inegável".