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Publicada em 05 de Julho de 2018 às 21:57

De Bagé para o mundo: os homens que revolucionaram as artes plásticas no RS

Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues e Carlos Scliar formaram o Grupo de Bagé

Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues e Carlos Scliar formaram o Grupo de Bagé

MONTAGEM SOBRE FOTOS DE GABRIELLA DI BELLA/ARQUIVO/JC, MARCO QUINTANA/JC, REPRODUÇÃO FILME GLAUCO DO BRASIL/JC E DIVULGAÇÃO/JC
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Paula Sperb, especial para o JC
Paula Sperb, especial para o JC
Em meio ao verde do pampa gaúcho, liderando mais de 400 homens com espadas em punho, o general Antônio Netto proclamou a República Riograndense após vencer uma das inúmeras batalhas da Revolução Farroupilha (1835-1845), conduzida por Bento Gonçalves. "Em todos os ângulos da província não soa outro eco que o de independência, república, liberdade ou morte. Este eco, majestoso, que tão constantemente repetis, como uma parte deste solo de homens livres, me faz declarar que proclamemos a nossa independência província", disse Netto aos soldados na manhã de 11 de setembro de 1836, em uma região de campanha que pertencia a Bagé.
Na mesma cidade, em 1905, nascia Emílio Garrastazu Médici, general que presidiu o Brasil de 1969 a 1975, em plena ditadura militar. Sob o comando do bageense, o Brasil conheceu a censura aos meios de comunicação, a tortura aos opositores e a campanha de marketing conhecida pelo slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o", que apelava para o patriotismo para melhorar a imagem do governo repressor.
Curiosamente, a mesma Bagé que foi campo de batalha entre índios charruas, espanhóis e portugueses, onde os farrapos venceram os imperialistas e que é cidade natal de um dos presidentes da ditadura brasileira, gerou frutos menos bélicos e mais líricos. A 380 km de Porto Alegre, mais próxima de Montevidéu e Buenos Aires do que de São Paulo e Rio de Janeiro, a pacata cidade da década de 1940 possuía uma cena cultural movimentada com expoentes na literatura, jornalismo, música e artes plásticas. Nesse último campo, rapazes autodidatas viriam a ser alguns dos artistas mais conhecidos do País, com reconhecimento internacional.
Há exatos 70 anos, em 1948, esses garotos, que há pouco haviam terminado o que hoje chamamos de Ensino Médio, deixaram momentaneamente Bagé para expor suas obras em Porto Alegre. O poeta e crítico de arte Clóvis Assumpção, conterrâneo dos rapazes, foi o encarregado de apresentar os artistas em uma conferência na vernissage na capital gaúcha.
"É a primeira vez que os pintores da cidade de Bagé expõem. A sua mostra é de primeira qualidade, guardando, naturalmente, as proporções do estágio da pintura moderna no Rio Grande do Sul e do fato de serem todos novos. Mas, do nível de suas experiências e da excelência de suas realizações, podemos afirmar que com eles começa uma nova fase da pintura rio-grandense e uma grande fase", disse Assumpção aos convidados.
Depois da exposição instalada no auditório Caldas Júnior, do jornal Correio do Povo, e da apresentação do crítico ressaltando "o fato de serem todos novos", os jovens passaram a ser chamados de Novos de Bagé. Em seguida, foram naturalmente batizados da forma como são conhecidos até hoje, o Grupo de Bagé - formado por Danúbio Gonçalves, de 93 anos, Glauco Rodrigues (1929-2004) e Glênio Bianchetti (1928-2014). Logo, eles receberam o reforço de Carlos Scliar (1920-2001), nascido em Santa Maria, mas com laços em Bagé.

Força da arte na vida campeira

Autor de ObraSesta (foto), Carlos Scliar foi pintor, gravador, desenhista, ilustrador e cenógrafo

Autor de ObraSesta (foto), Carlos Scliar foi pintor, gravador, desenhista, ilustrador e cenógrafo

REPRODUção/JC
As obras dos quatro de Bagé podem ser vistas nos principais museus do Brasil como a Pinacoteca de São Paulo, por exemplo, na qual há 126 trabalhos dos integrantes do grupo no acervo. Existe, entretanto, um local adornado com quadros de Glênio Bianchetti e Carlos Scliar em que apenas autoridades de alto escalão têm acesso. Trata-se do gabinete do atual presidente da República, Michel Temer (MDB). "Pedi à minha equipe que colocasse em meu gabinete obras de cores e perspectivas serenas. As obras dos autores gaúchos, além de belíssimas, trazem suavidade ao ambiente de trabalho, em que passo longas horas do dia e onde recebo muitas pessoas", respondeu Temer por meio de sua assessoria.
Os quadros no gabinete são Os barcos esperam e Paisagem de Ouro Preto, de Scliar, e Os músicos, um conjunto de cinco pinturas de Bianchetti. Fazem companhia obras de outros artistas como Di Cavalcanti e Alfredo Volpi. "Fiquei impressionada", disse Rusy Scliar, de 70 anos, irmã do artista, ao ficar sabendo que os quadros decoram o gabinete presidencial. "Mas não sei se admiram a arte dele ou estão preocupados com outras coisas. Espero que admirem", acrescentou.
A irmã de Scliar soube da escolha de Temer ao assistir ao documentário Grupo de Bagé, longa dirigido por Zeca Brito. O filme tem estreia prevista para agosto, no canal a cabo Curta. Não é coincidência que Brito, de 32 anos, tenha nascido em Bagé e seja gravurista, como o grupo.
O cineasta começou a fazer gravuras aos 10 anos porque, assim como aprender algum esporte, o ensino dessa técnica estava disponível e acessível aos moradores da cidade. "Sou herdeiro do Grupo de Bagé por ter nascido em uma cidade que respirava gravura ainda nos anos 1990 por causa deles. Existe uma força, artistas jovens fazendo gravura. Isso ainda está vivo lá. É por isso que eu fiz esse filme", explica.
Parece pouco provável que em uma cidade cuja principal atividade econômica vinha do campo, com a criação de gado, a arte tivesse tanta força. Há, porém, quem ouse tentar explicar de onde surgiu tamanha criatividade e talento segundo o ponto de vista de quem vive há muitos anos na localidade. "Bagé é como aquelas terras que têm tudo e não têm nada. A paisagem é um descampado, que vai longe. A cidade teve seu auge econômico com a pecuária e o patrimônio histórico reflete bem isso. Mas, de repente, começou a decadência. Desde aí, a cidade empobreceu demais. Entretanto, o que se observa é que as pessoas vivem em uma cidade em que acontece quase nada, mas dentro delas acontece muita coisa", opina Norma Vasconcellos, artista gaúcha radicada em Bagé há mais de 50 anos. "As pessoas aqui têm muito vida interior, são talentosas, é incrível. A causa dessa 'magia' eu não sei, mas a gente quer acreditar que é algo especial na paisagem, o inverno, o campo, a cor do céu e do sol quando vem o frio, essa luz outonal muito amarela", diz Norma.
São justamente as cores que fazem com que Norma eleja Glênio Bianchetti como o integrante mais admirado por ela. "Ele é um mago da cor. O que me fascina, além do tratamento, é que ele usa as figuras humanas um pouco abaixadas, como Portinari. Ele usa as cores com um contorno escuro e é como se fosse a alma da gente para fora", explica.
A capela Vila de Santa Thereza recebeu em 2011, no bicentenário de Bagé, a Via Sacra pintada por Bianchetti e presenteada pela Câmara dos Deputados à cidade.

Adolescência pacata no interior gaúcho

Série O tempo e o vento, de Glauco Rodrigues, um dos fundadores do Clube de Gravura de Bagé

Série O tempo e o vento, de Glauco Rodrigues, um dos fundadores do Clube de Gravura de Bagé

REPRODUção/JC
Em meados dos anos 1940, Bianchetti e Rodrigues eram adolescentes que estudavam no Ginásio Nossa Senhora Aparecida. Quando não estavam em aula, ficavam entediados com a vida pacata do Interior. Rodrigues começou a desenhar e pintar sem receber instrução formal artística. Bianchetti, por sua vez, recebeu noções básicas de pintura da mãe, aprendeu como usar cores primárias e a "pintar primeiro o fundo". Danúbio Gonçalves, ao contrário dos garotos, tinha uma família com posses, sendo trineto de Bento Gonçalves. Com recursos financeiros, estudou com Candido Portinari no Rio de Janeiro.
Os três se uniram em um ateliê coletivo. Estudavam formas humanas, liam livros de arte, desenhavam paisagens. "O dia estava bem dividido em duas etapas. A primeira dentro do ateliê e a segunda ao ar livre. No ateliê, muito limpo com as coisas nos seus lugares, disposto com bastante conforto, numa justa distribuição de dependências, iniciavam o trabalho num horário mais ou menos marcado, dedicando uma parte especial de tempo ao modelo vivo. (...) Aproveitavam certos momentos de folga para a leitura em voz alta de assuntos de interesse artístico e para debates. A fase ao ar livre concorria para um contato direto com a natureza, de onde resultou o legítimo sentido plástico", relembra o amigo e escritor Clóvis Assumpção no livro sobre a história do grupo, publicado em 1975. Com a chegada de Carlos Scliar a Bagé, eles passaram a se dedicar à gravura.
Nela, os artistas trabalham pacientemente no desenho de uma matriz que depois recebe uma camada de tinta para "carimbar" o papel. Foi por meio das gravuras que os artistas se popularizaram, exatamente como preconiza esse tipo de método que possibilita a reprodução das obras. Na Europa, Scliar conheceu Leopoldo Mendez, do Taller de Gráfica Popular, do México. Os artistas do Taller defendiam que a arte deveria se popularizar e carregar sentido político.
"Eles estavam imbuídos por um conceito de arte social e engajada. A gravura era uma forma de tornar a obra mais acessível para todos. Como as obras eram feitas em séries, poderiam ser um ótimo veiculador de ideias", explica Carmen Barros, da gestão dos museus da Urcamp (Universidade da Região da Campanha), que administra o Museu da Gravura Brasileira (MGB), em Bagé.
Além disso, também por influência de Scliar, que era militante do Partido Comunista, o grupo abriu espaço para o realismo socialista, retratando a vida dos trabalhadores das estâncias gaúchas. O Grupo de Bagé mostrava a realidade sem idealização de trabalhadores com corpos fortes e de porte heroico, mas em condição de exploração e sofrimento. Era uma subversão da doutrina do realismo socialista. A transgressão, todavia, era dupla. Porque naquele momento, o paradigma da arte brasileira era a arte moderna abstrata, tendência que não era seguida pelos quatro.
"Naquele momento, esse grupo sacudiu o marasmo em que se encontrava a arte, não só no plano mundial, mas principalmente entre nós. Todos sabem que a Segunda Guerra Mundial foi um terremoto social que abalou o Ocidente. As pessoas estavam num estado de estupefação e desânimo. Para onde tinham ido os valores morais e espirituais do Ocidente?", contextualiza o poeta e crítico de arte, Armindo Trevisan.

Um museu para a gravura

Pintura Bumba meu boi, de 1979, trabalho de Glênio Bianchetti

Pintura Bumba meu boi, de 1979, trabalho de Glênio Bianchetti

RUI FAQUINI/DIVULGAÇÃO/JC
Em 1976, por iniciativa de Scliar, o Grupo de Bagé retornou à cidade após dispersão dos integrantes em diferentes cidades do País. No ano seguinte, foi inaugurado o Museu da Gravura Brasileira (MGB), que segue em funcionamento e conta com 420 obras de autoria dos artistas do grupo. No acervo constam também trabalhos das "carreiras solo" dos artistas. "Os bules e naturezas mortas de Scliar, história do Brasil e pop art de Glauco, a série sobre balonismo de Danúbio, os barcos e figuras esquálidas de Glênio. São importantes gravuras que representam o Sul e o Brasil", explica a gestora Carmen Barros. Em Porto Alegre, obras dos artistas podem ser vistas na Galeria Duque (Duque de Caxias, 649). O local abrigou a última exposição de Danúbio Gonçalves, em 2013.
O Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs) -- Praça da Alfândega, s/n° - possui 310 trabalhos dos quatro artistas no acervo. Por sua vez, a Pinacoteca Aldo Locatelli (Paço dos Açorianos, Praça Montevidéu, 10) tem cerca de 50 obras dos quatro artistas.
Já a Pinacoteca Ruben Berta (rua Duque de Caxias 973) possui uma obra de Glênio Bianchetti. Conforme o diretor de acervo artístico da Secretaria de Cultura, Flávio Krawczyk, o espaço para exposição é limitado e as obras podem ser vistas por pesquisadores mediante agendamento.

Aprovação do amigo Jorge Amado

Série Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves, retrata a dureza do trabalho no campo

Série Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves, retrata a dureza do trabalho no campo

/MARGS/DIVULGAÇÃO/JC
Do período em que atuaram juntos, criando tanto o Clube de Gravura de Bagé quanto o Clube de Gravura de Porto Alegre, os quatro tinham em comum uma temática humanista das obras e a defesa da paz em uma conjuntura geopolítica de guerra. Scliar foi impactado pelo período em que combateu na Itália junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB). Diante dos horrores da guerra, voltou ao Brasil decidido a fazer uma arte menos "elitista".
"Antes de ele ser um artista, foi uma grande figura humana. Passou por experiências na guerra e tentou mostrar nas obras tudo o que ele sentia em relação às injustiças sociais. Ele sempre dizia que poderia transmitir esses valores através da pintura de objetos simples. Acho que isso é uma grande escola, poder transmitir esse legado, essa era a intenção dele. Além disso, foi uma pessoa muito generosa com todos que se interessavam por arte", conta a irmã do artista, Rusy Scliar.
Em 1952, foi publicado o livro Gravura Gaúcha com o prefácio de autoria do escritor baiano Jorge Amado, amigo de Scliar. "Os gravadores gaúchos, reunidos nos Clubes de Gravura de Porto Alegre e Bagé, destacam-se em meio às ridículas e pobres exaltações modernistas, abstracionistas, surrealistas e outras aberrações, provando mais uma vez que a arte para ser válida deve refletir os problemas e anseios do povo. Verdade tão verdadeira que não mereceria sequer discussão se não fosse a ânsia de um mundo e uma gente agonizante em negá-la em tentar reduzir a arte a alguma coisa fora da realidade, de todo o meio ambiente, de toda a dramática vida do nosso povo, de toda a ampla perspectiva nascida da luta em que ele se empenha para sair da miséria e do obscurantismo. As gravuras reunidas neste álbum valem como uma tomada de posição contra a decadência da arte, o cosmopolitismo, a imitação servil de uma pseudoarte, o formalismo sem conteúdo, contra uma arte desligada da vida, do homem e do futuro", escreveu Amado. O prefácio do escritor expressa o conflito entre a arte abstrata e o realismo do Grupo de Bagé.
Da fase das gravuras, a série Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves, é uma das mais celebradas pela crítica especializada. "Danúbio privilegiou uma expressão simples e direta, de fácil acesso mental e estético. Mergulhou numa das realidades mais duras da vida do campeiro. Que fez ele? Fez um retrato sem retoques, sem jogos de luz e sombra dessa gente", explica Armindo Trevisan.
Segundo ele, a contemplação daqueles homens e animais nos matadouros evoca, indiretamente, inclusive os matadouros humanos dos campos de extermínio. "Se é verdade que nos deixamos impressionar pelos rabiscos dos pré-históricos nas cavernas de Altamaira e Lascaux, é também verdade que nas gravuras de Danúbio temos acesso a cavernas dos habitantes dos campos gaúchos. Danúbio não se interessa pelos monarcas das coxilhas, pelos heróis farroupilhas (ele próprio era descendente do general Bento Gonçalves) mas pela memória dos anônimos, criadores de um substrato econômico que desmoronou, que acabou sendo a herança destroçado do gaúcho a pé", completa Trevisan.
Filha de Danúbio, Sandra Gonçalves, de 60 anos, lamenta o descaso com a obra do pai. De acordo com ela, o mural em frente ao Mercado Público precisa de restauro e manutenção. Além disso, o acervo do artista é mantido na sua casa, já que a residência do pai está abandonada porque faz parte do inventário de tombamento de construções do bairro Petrópolis, o que dificulta, segundo a filha, a venda do imóvel.
 

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