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A atualidade de O rei da vela
Há uma evidente contradição nas atividades de fevereiro de 1922 que lançaram as raízes do chamado Modernismo brasileiro. Embora elas tenham ocorrido no Teatro Municipal de São Paulo, e tenham se constituído em verdadeiros espetáculos cênicos, com público apupando, com poetas e músicos ocupando o palco e a plateia da sala, aqueles três dias históricos da Semana de Arte Moderna não dedicaram qualquer atenção à dramaturgia, ao contrário do movimento que o Modernismo mais criticou, o Romantismo, que incluiu, em suas preocupações, a dramaturgia nacional, tanto que herdamos, pelo menos, uma figura ímpar como Martins Pena, ainda hoje, admirável e atual.
O rei da vela foi um texto dramático escrito por Oswald de Andrade em 1933 e publicada em 1937. Mais nada. Nunca foi encenada, nem em vida do autor, nem depois. Apenas em 1967 o Teatro Oficina, de São Paulo, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa apresentou uma montagem verdadeiramente revolucionária, em todos os sentidos, daquele texto, sob a perspectiva do que se chamaria, historicamente, de Tropicalismo ou Antropofagia, para citarmos aqui o interessante livro de David George "Teatro e Antropofagia" (Global, 1985). A antropofagia tira sua referência de um manifesto escrito pelo mesmo Oswald de Andrade, em 1928, portanto, cinco anos antes de a peça ser escrita. Neste documento, Oswald de Andrade, recuperando o acontecimento histórico do aprisionamento, morte e deglutição do bispo Pero Fernandes Sardinha pelos índios brasileiros, transforma o ato antropofágico indígena, parte da cultura milenar daqueles nativos, em um símbolo da transformação cultural que deveria ocorrer em território nacional: a cultura nacional deveria inspirar-se na cultura europeia para dela apropriar-se e transformá-la em "uma outra cultura".
A montagem de O rei da vela, pelo Oficina, não deixava de provocar, ele mesmo espetáculo, uma dupla antropofagia: aquela que o texto propunha, e a transformação que a leitura do texto sofria. Em sendo um texto eminentemente inspirado na teoria marxista da economia, ao mesmo tempo em que desenvolvia estas ideias apresentava-as numa encenação feérica, grandiloquente (à maneira da ópera italiana, devidamente combinada com a tradição da comédia de revistas francesa e do espetáculo de cabaret alemão), escrachado, irônico, que tanto dava saltos temáticos em suas cenas e obrigava o leitor/espectador a fazer as aproximações dos acontecimentos por sua conta a risco, à maneira da montagem cinematográfica, quanto recuperava a tradição dos entrudos e dos desfiles medievais carnavalescos, segundo bem compreendeu Mikhail Backhtin, misturando tudo com chocalhos nativos, máscaras africanas e regras impiedosas do capitalismo ocidental.
O chamado "rei da vela" é um agiota: empresta dinheiro a juros e, ao cobrar valores escorchantes, acaba por apropriar-se dos bens do devedor. Ele tem como auxiliar Abelardo II, que termina por casar-se com a filha do patrão, depois de traí-lo miseravelmente, sendo, porém, perdoado, pois seu patrão compreende que o empregado apenas seguira as regras do jogo.
O texto de Oswald de Andrade, de certo modo, é profético. O movimento de 1930 recém ocorrera: mais do que substituir a chamada política café com leite, o movimento revolucionário que entronizara o gaúcho Getúlio Vargas no poder abria caminhos para a chegada do capitalismo moderno no país, através da industrialização, da migração rural e da urbanização. Por isso, o Rio de Janeiro deixava de ser o centro político, econômico e cultural do país, perdendo seu espaço para São Paulo que, depois da queda da bolsa de Nova York e da falência generalizada dos grandes fazendeiros do café, via uma nova força econômica - e industrial - não mais agrícola - instaurar-se no poder. Abelardo I, bem como Abelardo II, seu êmulo, traduzem esta nova fase: estabelecem relações com o capital estrangeiro, vendem terras, ampliam a agricultura de exportação, importam usos e costumes europeus etc.
Em 1967, três anos depois do golpe de 1964, o Brasil atingia outro patamar do capitalismo, internacionalizando-o, virando as costas para as reformas de base e decretando o alijamento dos trabalhadores. Oswald/José Celso nunca haviam sido tão oportunos e contemporâneos. Daí a importância de O rei da vela, que, ainda hoje, mantém esta atualidade e esta pertinência, infelizmente, na medida em que aqueles problemas apontados em 1933 e retomados em 1967, permanecem nos dias atuais.