O 27º Porto Alegre em Cena, festival promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, terminou na semana passada e os grupos locais, que concorreram ao prêmio Braskem, já estão conhecidos e devem ter festejado seu reconhecimento. No entanto, há muito, anda, a se dizer e a escrever a respeito desta mostra que, neste ano, não apenas enfrentou e venceu os desafios provocados pela pandemia de Covid-19, quanto encontrou soluções cênicas variadas e criativas e que, por isso mesmo, independente de avaliações hierarquizantes, apenas, precisam ser discutidas e compreendidas no sentido da abertura de novos horizontes que propuseram.
Nesta coluna, quero me ocupar especificamente de dois espetáculos, e sua referência, um antes do outro, apenas respeita a ordem cronológica das próprias apresentações. Para mim, foram estes os espetáculos que melhor contribuição deram para o desenvolvimento presente e futuro das artes cênicas.
Começo falando de Tudo que coube numa VHS. Embora extremamente fragmentado, com postagens que mesclam os diferentes tempos em que os episódios ocorrem, o espectador é levado, através de diferentes plataformas e experiências sensoriais a remontar a história que, no fundo, é simples e emocionante: dois rapazes que se conhecem e estabelecem uma relação que se desenvolve com seus altos e baixos, como toda e qualquer relação entre duas pessoas, até o momento em que um deles, saindo atrasado para o serviço, acaba sofrendo um acidente.
O espetáculo começa pelo final. O primeiro momento é um vídeo em que um dos personagens alerta: se você está vendo este vídeo, é porque morri. O vídeo simula as precárias condições de gravação das antigas fitas VHS. Sabemos, pois, que estamos ouvindo um morto. Claro, a literatura já fez isso, por exemplo, com Memórias de Brás Cubas, de Machado de Assis, mas as tecnologias deste momento nos provocam um outro impacto. Ler é uma coisa, VER um morto, ouvir um morto, depois de sua morte, é outra bem diferente, sobretudo porque ele nos convida a entrar na sua cabeça e viajar pelo que então compreendemos serem suas memórias. Estas memórias estão desorganizadas, cronologicamente.
Talvez surjam conforme alguns influxos elétricos mais ou menos fortes (o dramaturgo Nelson Rodrigues valeu-se desta ideia soberbamente, em Valsa n. 6, uma obra-prima), mas é assim, através de gravações de WhatsApp, de fotografias, de gravações sonoras que remetem a festas e encontros vários, que o enredo vai sendo remontado, numa linguagem que, oralmente considerada, é profundamente cotidiana e por isso emociona, mas cujo requinte tecnológico pelo qual é apresentada ao espectador - que se torna, de certo modo, um voyeur - evidencia um requinte de concepção simplesmente admirável. Em apenas 30 minutos, e por isso mesmo, ficamos querendo mais. É impactante, inesquecível, uma obra que abre caminhos.
O outro espetáculo é bem diverso. É um grupo de dança, o Anti Status Quo, com direção de Luciana Lara. O espetáculo, que também não passa de 35 minutos, teve dramaturgia dela mesma, além dos bailarinos Déborah Alessandra, Jaqueline Silva, Leandro Rodrigues, Márcia Regina, Mônica Bernardes, Raoni Carricondo e Rebeca Damian, que também são seus intérpretes e animadores (este tipo de espetáculo dificulta o uso de uma nomenclatura tradicional para nos referirmos aos criadores e participantes). A trilha sonora, fundamental para o resultado final alcançado, é de Valeria Lahmann.
É um grupo de dança, reitero, e o debate a que pude assistir possibilitou um diálogo instrutivo, que evidenciou a maneira pela qual o grupo passou da dança fisicamente presente, para uma verdadeira coreografia que não usa mais o corpo todo, mas o detalhe do corpo, graças ao primeiro plano. De fato, assistimos a uma verdadeira obra que coreografou a imagem e os detalhes da imagem dos corpos dos bailarinos. Bem-humorada, inteligente, sensível, muito bem editada e montada para permitir o ritmo que o espetáculo exigia, Juntoseseparados 3 propõe novos e insuspeitáveis caminhos para a dança mediada por tecnologias. Ao revelar que até março de 2020 ela jamais trabalhara com tecnologias deste tipo, a coreógrafa Luciana Lara evidencia uma inteligência sensível absolutamente elogiável e absolutamente utópica. Em duas partes (a primeira reflete sobre a própria condição de interatividade tecnológica, e a segunda, discute a condição do corpo neste novo contexto), muda a cabeça e a nossa sensibilidade.