A convite do Ministério da Cidadania, tive a oportunidade de participar, há duas semanas, do júri do Prêmio Camões que, anualmente, premia um escritor de expressão portuguesa de Portugal, Brasil ou dos países de expressão portuguesa de África e/ou Ásia. Por um acordo tácito, este ano era dedicado a um autor brasileiro. O escolhido, como o leitor mais bem informado já sabe, foi Chico Buarque de Hollanda.
Por que Chico? Por que um músico? Por que um homem de esquerda num governo conservador?
Quanto à última pergunta, nada a dizer além do fato de que, ao ser escolhido, ninguém me disse como votar, até porque, em caso contrário, eu declinaria do convite. É bom lembrar que o prêmio é dado pelos Estados português e brasileiro, que rateiam a quantia de cem mil euros, e pelas demais nações de expressão portuguesa de África e de Ásia que, porém, não possuem o ônus deste pagamento, por motivos óbvios. O governo, bem se sabe, é uma realidade transitória, ao contrário do Estado.
Algumas outras questões básicas: o prêmio destaca um escritor pelo conjunto de sua obra, ou seja, não se espera a premiação a um jovem. Mais que isso, ao envolver países diversos, deve-se levar em conta a possibilidade de circulação e de reconhecimento deste escritor entre todos os que promovem o prêmio.
Por fim, no caso específico, países como Brasil, Portugal ou jovens nações africanas, em que a aquisição e/ou leitura de um livro não é hábito cotidiano, a música pode servir como excelente veículo de difusão da poesia, por exemplo.
Isto já foi destacado, há muitos anos, pelo professor e crítico (e poeta, excelente, diga-se de passagem) Affonso Romano de SantAnna, no livro Poesia sobre poesia, provavelmente de maneira pioneira, ao mostrar a importância da música popular brasileira na difusão da poesia. Este foi um aspecto importante que eu, em especial, destaquei quanto à contribuição de Chico Buarque para a literatura brasileira. Tire-se a composição musical do verso de Chico, ainda fica a poesia. Leia-se Construção, por exemplo, composição rimada em proparoxítonas!!!
Mas Chico escreveu poesia (em música), textos dramáticos (para os quais também escreveu as trilhas sonoras) e romances. Não gosto tanto dos romances, mas quero aqui dar atenção à sua dramaturgia.
Desde o fato de, jovem estudante universitário, ter feito a trilha sonora de Morte e vida Severina, a partir dos versos de João Cabral, sua proximidade com o teatrão só aumentou. Roda viva foi o seu texto de estreia, em 1965. Saiu em livro em 1968 (editora Sabiá). Provocou espancamentos de seu elenco, inclusive em Porto Alegre, mas sobreviveu. É um texto ingênuo sobre a máquina triturante do show business sobre um jovem cantor (profético?), mas significativo. Calabar foi proibido um dia antes da estreia. Levou à falência do produtor Fernando Torres, marido da atriz Fernanda Montenegro. Discutia a falsa posição de se considerar Calabar como traidor. Tinha a colaboração do moçambicano Ruy Guerra.
Depois, veio Gota dágua, com a colaboração de Paulo Pontes. Bibi Ferreira estreou o trabalho, atualizando a tragédia de Medeia, transportada para uma favela carioca. O clássico grego se tornava popular e abrasileirado. Sobrevive até hoje, envolvendo a sobrevivência de um compositor de samba popular.
Ópera do malandro (1978) atualizava o John Gay de 1728 que havia inspirado o Bertolt Brecht de 1928 (duzentos anos mais 50 anos, tudo números redondos). De novo o abrasileiramento natural, que redunda numa profunda tradução do espírito brasileiro.
Com Naum Alves de Souza, Buarque assinou Suburbano coração, a história de uma empregada doméstica que, por meio do rádio, conhece um caminhoneiro. Quer coisa mais brasileira que isso?
Nós, do júri, consideramos que o prêmio Camões deve destacar quem é capaz de recriar a língua e redimensionar a cultura. Alguém tem dúvida que Chico Buarque fez exatamente isso e mereceu o prêmio?