A estreia de Elas, na semana passada, na Sala Álvaro Moreyra, para uma temporada mais longa do espetáculo, propicia-nos um trabalho autoral destacado e cuidadosamente concretizado. Everson Silva assina a dramaturgia e a direção do espetáculo, de cerca de 50 minutos de duração, a partir de poemas de Fernanda Bastos, com inventiva e sugestiva cenografia de Jony Pereira, iluminação eficiente de Veridiana Mendes (fundamental para as passagens de clima), trilha sonora original de Maninho Melo, figurinos muito bonitos e, sobretudo, pensados como elemento integrador da narrativa da obra, de Letícia Brochier. Elas tem assessoria de imprensa de Sílvia Abreu, que caprichou na preparação do material. Como é um trabalho autoral, foi fundamental que recebêssemos o roteiro do espetáculo, que ajuda muito para uma avaliação final do trabalho e responde, inclusive, por uma compreensão mais ampla do processo de criação.
Elas é um espetáculo altamente poético e sensível mas, ao mesmo tempo, amplamente crítico. A partir dos poemas de Fernanda Bastos, o dramaturgo e diretor propôs exercícios às suas atrizes que improvisaram cenas. Depois disso, houve uma seleção deste material e a fixação do roteiro final, que redunda no espetáculo a que assistimos.
O espaço da Sala Álvaro Moreyra, que é relativamente pequeno, propicia uma grande proximidade com as intérpretes, o que poderia resultar num aspecto negativo para a sua performance. Ao contrário, isso abriu um leque de comunicabilidade entre cada uma das figuras em cena e o público que é quase como se cada uma conversasse individualmente conosco. Esta intimidade criada e mantida, ao longo de todo o espetáculo, resulta numa emoção contínua, ainda que controlada, que nos leva a uma identificação com as personagens.
Há uma simbiose muito positiva entre dramaturgia, direção, cenografia, figurino e iluminação. Nos primeiros momentos do espetáculo (era a noite de estreia), era provável que o nervosismo tenha provocado alguns momentos de desafinação nas interpretações musicais. À medida em que o espetáculo avança, contudo - e significativamente, vai ficando mais difícil de ser trabalhado - firma-se o ritmo e a proximidade emocional se afirma. Mesclando erotismo e dramaticidade, emoção e raciocínio, o espetáculo tanto se inspira em momentos subjetivos quanto em episódios objetivos, recentes, em que mulheres são desrespeitadas e, pior, agredidas ou mesmo assassinadas, como no caso da vereadora carioca Marielle Franco. O diretor Everson Silva conseguiu um equilíbrio sempre delicado entre a interpretação em terceira pessoa que a atriz faz de uma personagem e o envolvimento pessoal de cada uma das atrizes com suas próprias experiências. Kacau Soares, Letícia Kleemann, Paula Cardoso, Raquel Tessari e Val Barcellos, cada uma a seu modo e de seu jeito, trazem para a cena depoimentos e emoções que deixam de ser individuais para se tornarem experiências de todos nós, público, inclusive dos homens (talvez até com maior responsabilidade deles, já que somos em geral os que mais agredimos às mulheres em nossa sociedade) historicamente machista e patriarcal, preconceituosa e marginalizadora. Neste sentido, embora o diálogo do espetáculo esteja mais diretamente dirigido às mulheres, ele deve ser tomado com extrema seriedade e oportunidade pelos homens: afinal, a sociedade é composta por ambos e do equilíbrio e do respeito entre ambos é que se constrói a cidadania e a democracia.
Depois da escassez de programação, à exceção da agenda do Porto Verão Alegre, abril chegou com muita força: numa mesma semana, tivemos dois grandes grupos de dança, a espanhola de Antonio Gades e a brasileira de Deborah Colker, além da estreia de cinco espetáculos locais. Elas fica em cartaz durante todo o mês e deve ser assistido, obrigatoriamente.