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"Não vou deixar de ser o catador"
Alex Cardoso, catador de recicláveis da Capital, conclui graduação e ingressará no mestrado
Com 42 anos de idade e a vida toda trabalhando como catador de materiais recicláveis (lixo), Alexandro Cardoso - Alex, como é conhecido - concluiu ontem a graduação em Ciências Sociais pela Ufrgs, após mais de duas décadas longe dos estudos formais. Atuante na defesa da categoria, Alex representa o Rio Grande do Sul no Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis e é delegado oficial representando a Aliança Global dos Catadores de Materiais Recicláveis (Globalrec) na Organização das Nações Unidas (ONU).
Parte dessa história está no livro "Do lixo a bixo", no qual conta sua trajetória pessoal. No trabalho de conclusão de curso, tratou da cultura social da reciclagem como um pesquisador ativo ao estudar sua própria categoria. A apresentação e aprovação em 1º de março - data em que se comemora o Dia Internacional dos Catadores - aconteceu no galpão da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada (Ascat), em Porto Alegre, da qual Alex faz parte. O próximo passo na trajetória acadêmica será o mestrado em Antropologia pela Ufrgs.
O catador concedeu uma entrevista ao Jornal do Comércio, confira a íntegra a seguir.
Jornal do Comércio – Qual a tua motivação em ter buscado o estudo formal?
Alexandro Cardoso – Primeiro de uma afirmação. A nossa sociedade vê as pessoas a partir do que elas aparentam ser. E a aparência vem muito com a lógica do diploma. Tu é a partir daquilo que tu apresenta. E, nos espaços que eu buscava, sempre era o último. Talvez numa mesa de discussão fosse a figura mais importante, mas era o menos importante na hora de fazer o anúncio. E também retornar aos estudos justamente para poder mostrar um caminho para outras pessoas, de que é possível, dar exemplo de que pessoas em quaisquer condições podem voltar a estudar, mostrar para os filhos, isso é extremamente importante. Tem aquela discussão que já foi vencida em outras famílias, mas na minha não: sou primeira pessoa a ir para a universidade. Tem todas essas quebras e construções que são feitas a partir dos estudos.
JC – A quais espaços você se refere e que tipo de debate aconteciam neles?
Alex – Um exemplo claro é a própria construção da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal Nº 12.305/2010), construída por um grupo técnico que fazia as várias discussões, mas tinha que se remeter a mim para perguntar se aquilo condizia com a realidade. E nos congressos, eventos, seminários, tanto nacionais quanto internacionais, as pessoas são colocadas na mesa conforme o seu título. E eu, que não tinha título nenhum, ficava na parte de trás. Mas os debates que circulavam eram justamente sobre aquela pessoa ali, aquele que estava atrás da mesa. Esses espaços tinham uma parte que invisibilizava a pessoa, porque não aparece, mas visibiliza pela importância daquilo que a pessoa tem a trazer, que é justamente o diferencial.
JC – O que se formar na Universidade representa para o meio em que você vive, entre catadores?
Alex – Representa essa possibilidade real. Porque (no meio) não se almeja de avançar realmente nos estudos. Geralmente a gente acaba trabalhando muito cedo e o trabalho ocupa espaço central na vida, tira esse espaço dos estudos, e acabamos não estudando justamente por causa disso. Não é uma escolha, é empurrado ao trabalho e o trabalho ocupa o espaço dos estudos. Por isso que o pobre acaba tendo um nível de escolaridade muito mais baixo. Outra questão é que estudar significa que tu vai ter que fazer, se empenhar, se concentrar para dar conta de toda a carga. E precisa de apoio, (porque) tem a família, o trabalho, o movimento. Todas essas funções juntas é que formam o caminho dessa possibilidade de dizer a outras e outros catadores e povos da periferia que podem voltar aos estudos.
JC – Você fala que a sua intenção com os estudos não é sair desse meio e sim permanecer nele com o conhecimento adquirido na universidade. O que significa isso?
Alex – A gente vive em mundos separados. No meu livro eu falo que não são bolhas sociais, são esferas, são camadas muito grossas, que a gente acaba não vendo, mas não consegue sair. E essa esfera é baseada na questão econômica principalmente. Quem tem grana, saberes e conhecimento acaba não se misturando com quem não tem. A academia tem uma forma de traduzir o mundo. Principalmente nas (ciências) sociais, estuda os excluídos, os mais pobres, o negro, o povo da periferia, a mulher – essa gama de pessoas e povos excluídos. A academia vai traduzir isso em conhecimento científico, a partir do uso teorias. Mas isso não reflete num conhecimento para o povo que foi estudado. Tanto que esse povo é trabalhado como um outro. E, no meu caso, a ideia é justamente fazer a ligação entre esses mundos, essas esferas que são completamente diferentes e antagônicas, muitas vezes. Poder levar o conhecimento que os catadores e as catadoras têm de, mesmo vivendo com menos de um salário, tem uma alta empatia e solidariedade, apoio mútuo, olhar para as crianças como filhos coletivos, cuidado com a sua comunidade, a lógica do mutirão... Eu não sei se a gente conseguiria fazer um mutirão com os banqueiros. Mas com o povo que é mais pobre se consegue. Então, como é que a gente consegue traduzir isso para mostrar o exemplo para o mundo? O exemplo de organização social e econômica, cuidado com os outros, cuidado com a natureza, está dentro do galpão de reciclagem. Não está lá na academia de fato. Na academia pelo contrário, às vezes um quer derrubar o outro, ser melhor. Tem muitas lógicas que precisam ser transformadas e a forma é traduzir para o conhecimento que é real, que pulsa, vive, resiste e todos os dias se desenvolve.
JC – O título do teu TCC é “O Eu catador”. Quem é o Alex catador?
Alex – Quis dar o título “O Eu catador” justamente para não ter essa separação. Não dá para separar, não acredito que a gente se torne alguma coisa melhor e se apague o caminho que foi para chegar nesse melhor. Se é que pode ser considerado algo melhor. Em alguns casos, olho para os “doutores” e não quero ser aquilo, não sei se aquilo é o melhor. “O Eu catador” tem a questão de afirmação dessa identidade. Não vou deixar de ser o catador, vou ser o catador e antropólogo, é uma outra identidade que estou assumindo. Mas que é bem curta. Talvez possa nem estar exercendo. Mas essa aqui, de olhar para esse mundo e conseguir compreender, traduzir, trazer processos novos e organizar as pessoas e suas ideias para melhorar suas vidas, aqui é o meu caminho. O estudo é justamente para buscar “pra cá”, e não levar daqui “pra lá” como sempre aconteceu. É trazer esse conhecimento, se puder contribuir, para compartilhar com as pessoas que aqui precisam. Onde que precisa realmente conhecimento? Eles residem em vários lugares, mas tem “os que valem” e “os que não valem”. O daqui (galpão) é desconsiderado. Existe, mas é desconsiderado. Tanto que o que acontece aqui é muito melhor em geral, é um exemplo, mas isso não reflete lá fora.
"Não acredito que a gente se torne alguma coisa melhor e se apague o caminho", avalia Alex
JC – O que deveria ser considerado pela sociedade em relação ao trabalho dos catadores?
Alex – A sociedade toda deveria ser “catadora”. Ser uma geradora de resíduo, que é seu, é algo muito pernicioso, de uma arrogância consigo mesmo, de produzir uma coisa que faz mal ao outro e tu sabe disso, porque hoje não tem não saber que isso polui, degrada, destrói. E largar isso como se fosse problema de outra pessoa ou como se fosse problema dos pobres... Que é gerar resíduo, dar para os pobres catar e jurar que aquilo é uma boa ação. A primeira coisa que eu diria para a sociedade é essa, se fossem todos catadores e catadoras, teria um planeta 100% preservado, cuidado, reciclado. A segunda questão é que uma pessoa tem que ter muito ódio para consumir e descartar, fazer parte dessa terra, desse planeta por um tempo muito curto, perto do que é toda a vida do planeta, e deixar uma marca para sempre, que é o processo dessa pegada ambiental, desse custo ambiental que a gente deixa. Colocar a mão na cabeça e dizer que quer preservar a sua própria vida. A vida é muito pequena para pensar só no nós, no agora, sendo que somos frutos de várias gerações, da arte, da cultura, da política construída e dessa organização social milenar. E como que a gente chega agora e quer destruir isso, nos últimos 50 anos? Quem sabe mais 50 se acabe mesmo...
JC – Em termos de poder público, o que precisa e deve fazer para que a categoria, além de ser reconhecida, seja valorizada e de fato valha a pena o trabalho?
Alex – Primeiro o poder público tem que se desencastelar, lembrar que é um poder público, que é para todas e todos, tem que ter um governo para a maioria. Por que vai ter governo se não for para governar para os pobres? Não consigo entender essa lógica de ter governo que vai governar inclusive favorecendo os que já tem. Porque a própria lógica de Estado e cuidado que teria já morre aí. A gente vê a corrupção no governo não é quando rouba, é quando governa para uns e não para a maioria, e não cria políticas para trazer uma igualdade entre as pessoas. A segunda é fazer a sua parte. O Estado no mínimo tem que respeitar as próprias leis que criou. Não posso separar o Estado da Justiça, por exemplo. Se temos os catadores na rua, se tem desvalorização, miséria, e (ao mesmo tempo) tem muita riqueza, é justamente porque o Estado e a Justiça não funcionam. São duas estruturas que permanecem no mesmo lado, o “lado de lá” e vão esquecer completamente o “lado de cá”. Cumprir a lei é uma questão fundamental e é papel deles, não precisaria a gente estar cobrando. Outra seria fazer ações para transformar a vida dessas pessoas. Pensar numa questão prática. Não posso chegar num grupo de catadores aqui da vila, por exemplo, que estão na rua – são uns 20 – e dizer “tá aqui R$ 300 mil para organizar, comprar um caminhão e trabalharem juntos” e virar as costas, porque ao invés de ajudar, pioro. É preciso dar condições para essas pessoas melhorarem, atuar na linha do conhecimento, da formação, enfim, da construção de identidade, da identidade coletiva. Por incrível que pareça, aqui em Porto Alegre temos as cooperativas e as associações (de catadores de materiais recicláveis) há 32 anos. Ou seja, os governos passaram e a gente permanece. Quem tem mais conteúdo sobre esse processo e que realmente consegue dominar de ponta a ponta são os próprios catadores. Então o governo tem que repassar isso para quem consegue realmente encaminhar e governar, trazer a governabilidade do resíduo para quem tem mais competência e mais qualidade, interesse... E que não tem o interesse meramente econômico.
JC – Vocês estão esperando ser chamados a participar mais ativamente?
Alex – Não estamos esperando, nós lutamos desde o início para que tenha, por exemplo, o próprio pagamento por serviço ambiental, a coleta seletiva solidária, para que tenha pagamento diferenciado para os serviços... Não dá para a pessoa pagar R$300, R$400 de IPTU e naquilo ali está embutida a tal da taxa do lixo, que vai ser de R$100 num ano inteiro, menos de R$10 por mês, para ela não separar o resíduo. E quando separa, jurar que já está fazendo a parte dela. Não paga a conta, não paga a conta do planeta, da vida, não tô dizendo de uma empresa, do governo...
JC – Muito menos o trabalho dos catadores.
Alex – Muito menos o trabalho dos catadores, justamente. E não estou dizendo trabalho para enriquecer, nada a ver. Só minimamente para a garantia da subsistência, conseguir ter uma alimentação adequada, acesso à saúde, quebrar esse paradigma das pessoas não conseguirem acessar a universidade. Tem várias questões que são umbilicadas e que tem a ver com recurso. A nossa sociedade funciona em torno do dinheiro, mas na hora que é para pagar quem trabalha, não pagam. E aqui é que reside o principal problema de porque o pobre é pobre. Não é porque não trabalha. Na cooperativa a galera trabalha mais ou menos em torno de 8 a 9 horas por dia aqui dentro. Mas a função de pensar a cooperativa é o tempo todo. Estávamos agora há pouco, ao meio-dia, conversando aqui sobre rendimento (de produção), isso é trabalho. Essa galera é a que coordena a cooperativa. São como os ditos empresários, e que não tem descanso, porque entende que isso aqui é o seu sustento, seu meio de sobreviver, e que precisa melhorar, então o tempo todo está pensando sobre isso. E a jornada de trabalho acaba sendo de 10 horas, 12 horas. E faz um trabalho extremamente importante. Mas a renda é menos de um salário-mínimo. Aqui a gente vê a discrepância. Ambientalmente é importante, mas as pessoas, quando reconhecem, dão um tapa nas costas. Isso não ajuda a pagar a cesta básica no final do mês. Não dá para chegar no posto ou no mercado e dizer “gente, eu sou catador, ajudo a natureza, então agora me dá a cesta básica de grátis”. Não, tem que pagar. Essa lógica também precisa ser empregada aqui dentro. O trabalho de dentro da cooperativa precisa ser pago. Dizem que envolve muitas mulheres, que ajuda a comunidade por trazer uma consciência... e tem que pagar também. Tudo isso são produtos, digamos, que potencializam a periferia, a comunidade, que trazem uma série de benefícios e que lá de cima lucram e ganham muito com isso. Tanto as empresas pelo serviço quanto os geradores, que somos todos, principalmente os mais ricos e que gozam de mais recursos.
JC – Tem um estigma social de que precisa “tirar” a pessoa dessa condição (de catar materiais recicláveis). O pagamento pelo serviço ambiental seria um caminho de valorização do que é feito?
Alex – Uma questão importante de colocar: 90% da reciclagem é feita pelos catadores e pelas catadoras (por meio da triagem manual dos materiais recicláveis). Quanto mais catadores e catadoras, maior é a reciclagem. Então não dá para pensar em projetos para melhorar a reciclagem, tem que pensar em projetos para melhorar os catadores e aí os catadores melhoram a reciclagem. Ponto. Inverte essa lógica. Quer investir na reciclagem, investe nos catadores. Vamos pensar que aqui (na cooperativa), a gente vai olhar para o cesto e ver que está quase no fim (do material). Tem 20 pessoas nesse galpão, que tem capacidade para 50 pessoas trabalharem. Por que não tem 50? Porque não tem material, então não vai ter catador (na cooperativa). Se estivesse cheio de material, estaria cheio de catador e ia ter mais reciclagem na cidade. Mais reciclagem significa uma coisa melhor para todo mundo. Para os catadores ficarem nas cooperativas, precisam ter um rendimento para que consigam sobreviver. Precisa ter uma renda mínima e a gente estabeleceu que seria o salário-mínimo. Acho que tinha é que ter que ter um salário máximo, a pessoa não pode ganhar acima de 100 salários, ia dar uma redistribuída na riqueza. Precisa pagar pelo trabalho que essas pessoas (catadores) fazem, uma parte que é o trabalho ambiental, tem a ver com a natureza. Outra questão é da própria inclusão social. Tem uma diferença entre a empresa privada e a cooperativa. A empresa privada quer trabalhador que tenha bastante sangue para produzir cada vez mais. E quem tem pouco sangue ela expulsa. Pois as pessoas vão viver onde? Aqui na cooperativa. Precisamos também ter uma forma de receber recursos para garantir a inclusão dessas pessoas, que não estão aqui só porque produzem, estão porque são pessoas que precisam sobreviver e produzir alguma coisa. E aqui ninguém está pedindo nada, estamos cobrando por algo que a gente já faz. Outro é o pagamento pelo custeio, pela operação do sistema. Precisa ter EPI (equipamento de proteção individual), pagar água, luz. Isso é um prédio industrial, é R$ 1,2 mil a conta de luz no mês, comprar EPI para 20 pessoas custa R$4,5 mil reais e a cada três meses precisa repor, porque o desgaste é grande. Precisa garantir que tenha tecnologias. Todo mundo avança, todo mês avança um celular novo diferente. Por que a catação tem que ser uma forma arcaica? A gente olha o Chiffonnier (fotografia do francês Eugène Atget, com data entre 1899 e 1901, que retrata o equivalente a um catador de rua dos dias de hoje) e uma foto da atualidade e vemos o mesmo catador, com a mesma ferramenta, a mesma coisa. Não se evolui. Justamente porque vive das sobas, do resto, daquilo que ninguém, quer olhar, que é invisível e que não serve. As poucas pessoas que têm capacidade, intelecto de poder olhar para os benefícios que traz (a reciclagem), valorizam, mas em geral não são as que poluem. A gente precisa equacionar isso. E organizar uma cooperativa que tenha uma renda boa para os catadores, que consiga garantir direitos para que possam gozar da vida, para conseguir mostrar um caminho para os que estão na rua. Mas caso contrário, como os que estão na rua vão querer se organizar sendo que eles olham para dentro (da cooperativa) e veem que a galera não ganha nem para conseguir sobreviver, que precisa de cesta básica. Estamos no ano 2022, as pessoas são profissionais há 20 anos trabalhando e precisam pedir cesta básica, trabalhando dez horas por dia e pedindo cesta básica para conseguir sobreviver. A culpa é de quem?
JC – E socialmente se desestrutura. A prefeitura cobra do catador da rua e...
Alex – E não valoriza o que está na cooperativa. Como se não fosse um dinheiro coletivo, de todos, que o governo não tivesse que contribuir com a reciclagem... O índice de reciclagem em Porto Alegre hoje é de 1,92%, metade de índice do brasil. E Porto Alegre é uma capital. A lógica de “vamos educar as crianças...”, pois as crianças dos anos 1990 são os adultos de hoje. A mesma lógica é parar de multar o (não uso do) cinco de segurança. As pessoas vão continuar usando? Precisa ter uma organização, uma parte ser cobrada, inclusive financeiramente de quem não cumpre, porque é um crime jogar uma latinha ou uma garrafa pet no Guaíba, e tem gente que faz. Ou dentro do container, ou no chão. Temos o código municipal de limpeza urbana que prevê multa para quem joga papel no chão. Não sei quem recebeu.