Economista, professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV.
Depois da guerra de Troia, o vitorioso Ulisses, rei de Ítaca, iniciou, com seus marinheiros, uma viagem de volta para casa. O caminho envolvia a travessia por região habitada por sereias, cujo canto sedutor atraía e levava à morte todos os navegantes que por lá passavam. Ulisses - curioso, porém, prudente - não se furtou a escutar o canto das sereias, mas sabendo-se suscetível à tentação, traçou um plano: colocou cera no ouvido de seus marinheiros, se amarrou ao mastro e ordenou que ninguém o soltasse durante a travessia. Amarrado, Ulisses pediu aos gritos para ser solto, mas sua estratégia o permitiu escutar o belo canto das sereias e terminar a travessia com vida.
O teto dos gastos é como mastro e corda de Ulisses para o orçamento público, que amarra as mãos do governo e freia o seu ímpeto gastador.
Foi estabelecido porque sabemos que a expansão acelerada de gastos tem consequências negativas para a agenda social, trazendo instabilidade macroeconômica e dúvidas sobre a solvência da dívida pública, o que prejudica, justamente, os mais pobres. Como no caso de Ulisses, o teto nos obriga a enfrentar nossos demônios, impedindo agendas populistas e eleitorais que acompanham o ciclo político.
Por esse motivo, há pouco menos de cinco anos, nos amarramos ao mastro, e inscrevemos o teto em regra constitucional, para que ali permanecêssemos presos durante a travessia. Na semana passada, uma nova proposta de emenda à Constituição sugeriu desatar os nós que prendem o Orçamento ao mastro. Parece que nossos marinheiros se esqueceram do comando dado a eles ao início da travessia.
Em seu arcabouço original, o teto dos gastos permite que a trajetória de ajuste fiscal se dê de maneira suave, uma vez que se acredita que contenção de gastos permanecerá por muitos anos à frente. A ideia é estabelecer uma estratégia crível e previsível para a evolução do gasto público, se amarrar no mastro e seguir o plano.
Mas, para funcionar, o teto precisaria ter sido acompanhado de reformas mais profundas, já que quase não há espaço no Orçamento para acomodar as novas despesas ou demandas sociais que aparecem ao longo do caminho. Infelizmente, as reformas necessárias -como a administrativa e a tributária, ou mesmo uma ampla revisão de isenções fiscais e de políticas públicas pouco eficazes- não avançaram em sincronia.
No papel, a nova proposta mantém o teto de gastos, mas muda o plano original -a sua regra de reajuste- de forma casuística. O canto das sereias fala da necessária expansão da rede de proteção social, mas o novo espaço permite também contemplar emendas parlamentares, recursos para o fundo eleitoral, auxílio diesel para os caminhoneiros e prorrogação de renúncias fiscais seletivas -como a desoneração da folha para 17 setores.
E quais a implicações dessa mudança de plano no meio da travessia? Não apenas o teto fica descaracterizado como a âncora que garante solvência da dívida, como perde-se toda a credibilidade para qualquer ajuste fiscal anos à frente.
A nova PEC mostra que o que se escreve em texto constitucional não se lê, já que regras constitucionais podem ser modificadas com bastante facilidade, ao sabor do momento. O que nos garante que a nova regra não poderá, mais uma vez, ser modificada para acomodar mais gastos em futuro próximo?
Sem um planejamento fiscal crível, volta-se ao tempo em que todo novo gasto, para garantir a percepção de solvência, precisará vir acompanhado de um aumento de imposto ou um corte em outro gasto -este último aparentemente inaceitável para a classe política. E se ignorarmos essa necessidade de ajuste imediato? Teremos como consequência desequilíbrio macroeconômico inflação e recessão. Uma vez desamarrado, Ulisses fica vulnerável e exposto. Torna-se, para ele, irresistível sucumbir ao canto das sereias. Não foi à toa que Ulisses ordenou que permanecesse preso ao mastro.