Quem não fez planos lá no início da pandemia da Covid-19, quando foi anunciado o isolamento social e a necessidade do home office, de arrumar cada prateleira da casa e colocar no papel algum projeto que estava engavetado por falta de tempo? E quem não frustrou essas expectativas ao se deparar com uma rotina extremamente desgastante?
“O trabalho invadiu a nossa casa. Estamos trabalhando muito mais, o tempo passa mais rápido, não conseguimos fazer tudo e ficamos mais cansados”, admite o neurologista e neurocientista Jaderson Costa da Costa, diretor do Instituto do Cérebro da Pucrs e vice-reitor da universidade. Ele participou recentemente da Live do projeto
Mentes Transformadoras do Jornal do Comércio e contou que, quando iniciou o seu home office, pegou uma pilha de livros que estavam no seu escritório, colocou em uma mala e levou para casa. “Achei que ia colocar a leitura em dia, mas não li quase nenhum”, brinca.
Mercado Digital – Como a pandemia da Covid-19 está afetando o nosso cérebro?
Jaderson Costa da Costa – A Covid-19 trouxe o medo de pegarmos o vírus, o receio de como seremos atendidos caso a gente precise do sistema de saúde e o isolamento. Esses ingredientes criaram um somatório de fatores que afetam o nosso cérebro. Na primeira fase do isolamento, a sensação era de alívio, de estarmos protegidos em casa e talvez de termos a chance de ler aquele livro que tanto queríamos. Mas, gradativamente, dias muito parecidos, essa sensação de domingos sucessivos, fez com que o cérebro começasse a sentir que algo estava errado. Claro que o ele tem resiliência e vai se adaptando, mas nem todos conseguem e o resultado disso tem sido um aumento dos casos de ansiedade, tristeza e depressão.
Mercado Digital – Essa sensação de que estar em casa nos daria a chance de fazer o que antes não tínhamos tempo não se concretizou Como reagimos a isso?
Costa – Erramos no julgamento. Achávamos que trabalhando em casa teríamos mais tempo, e isso não aconteceu, gerando frustração. O paradoxo é que trabalhamos mais em home office porque eliminamos etapas que faziam parte do nosso dia, como o deslocamento até o local de trabalho, o momento do cafezinho, a conversa com alguém que recebíamos na nossa sala. Sem falar que quando essas situações em que paramos para tomar uma água ou levantamos o olho para conversar com alguém são muito importantes, inclusive, para a produtividade, pois nos dão agilidade mental e relaxamento. E isso não temos em home office.
Mercado Digital – A rotina do trabalho em casa e na tela é mais exaustiva?
Costa – Sim, e isso acontece porque o trabalho, neste momento, está invadindo o lar. Ao fazer uma reunião em vídeo, por exemplo, além de ter que manter o foco o tempo todo, temos que ter uma atenção periférica, ou seja, cuidar para ninguém passar atrás da câmera, para não sermos chamados em casa e para não ter barulho. Há ainda o desgaste da tela. A imagem é menor, o som não é perfeito, precisamos ficar mais atentos para captar tudo. Quando somos chamados para uma reunião digital, nunca sabemos quando seremos acionados a falar, então precisamos estar sempre em alerta. O ser humano tem a capacidade de manter atenção sustentada por um tempo, e quando entramos em fadiga em uma reunião presencial, lidamos com isso de várias formas para atenuar, como ao olhar para o lado, falar com alguém, se movimentar um pouco, responder uma mensagem no WhatsApp. Mas, se você fica focado, frente a frente com a câmera, é mais desgastante mesmo. O home office é como se fosse um programa ao vivo. Sempre no ar. Isso faz as pessoas se sentirem, sugadas, esvaziadas de energia e sentindo que está faltando tempo para fazer tudo que precisam.
Mercado Digital – Por que o isolamento nos dá essa sensação de estamos presos sempre na mesma rotina?
Costa – A gente levanta, toma café, trabalha, almoça, trabalha, toma banho e dorme. Antes era como se tivéssemos meia dúzia de arquivos; agora é como se a nossa rotina em casa estivesse vindo zipada. Isso nos faz perceber muito fortemente a nossa rotina. O simples fato de sair para o trabalho, procurar um lugar para estacionar, encontrar alguém no caminho e sair do trabalho e ir ao supermercado tirava a percepção de que fazemos tudo igual na nossa vida. Já quando estamos o tempo todo em casa, a rotina fica condensada e o cérebro não gosta porque começamos mentalmente a achar a vida pequena.
Mercado Digital – Como tentar evitar que isso aconteça?
Costa – Precisamos ser rígidos com a nossa agenda no sentido de não sair de uma reunião pelo computador e entrar imediatamente em outra. Tem que ter sempre um tempo para levantar um pouco, tomar um cafezinho, respirar, mudar de posição na cadeira. Olhar pela janela e respirar o ar, observar as pessoas nos dá o tempo de restabelecimento das nossas conexões, senão entramos em estafa. Outro caminho interessante é o da meditação, desenvolver a nossa capacidade de nos isolarmos da percepção sensorial, desse bombardeio de atividades e informações e ficar só para restabelecer a nossa energia mental.
Mercado Digital – O nosso cérebro está sendo mais exigido hoje em dia?
Costa – As exigências são diferentes. Há 40 anos, a gente tinha que saber latim e grego, estudava trigonometria, raiz cúbica, equações e decorava poemas. Isso ocupava espaço na nossa cabeça. Mas hoje mudamos o mindset. Agora o que interessa é a capacidade de resolvermos problemas. Não preciso saber a altura do Monte Everest, pois posso rapidamente entrar no Google e obter a resposta.
Mercado Digital – O quão desgastante é para o nosso cérebro lidar com o excesso de informações?
Costa – O cérebro tem algo maravilhoso que é o fato de não gravar tudo. Se duas pessoas estiverem escutando a mesma conversa, cada uma vai relatar de forma diferente, sem mentir. O sistema de busca do nosso cérebro é em cima de fragmentos. Quando a gente estabelece um limite, ou seja, que algo nos interessou, aí lemos o texto completo. Somos cada vez mais multitarefa, e ter que lidar com esses dois mundos, para as gerações que não são digitais, é realmente muito desgastante.
Mercado Digital – Quem ganha a batalha entre a inteligência humana e a artificial?
Costa – A capacidade de processamento cerebral ainda é superior, mas perdemos em velocidade e capacidade de armazenamento. A capacidade de um supercomputador realizar cálculos é maior que humana, mas isso não é surpresa. Há uma limitação do nosso corpo para realizar funções em volume, velocidade, força e quantidade. Por outro lado, somos imbatíveis na nossa capacidade de fazer associações e tomar decisões independentemente de conhecimento prévio. Outra capacidade fantástica nossa é a capacidade de errar. A máquina não pode errar, os algoritmos não permitem, e às vezes a sabedoria está no erro, que te leva a novas descobertas. A tendência é termos a coexistência destas duas inteligências.