Cláudio Antônio Guerra, de 79 anos, ex-delegado a serviço da ditadura militar brasileira e hoje pastor evangélico, virou réu na Justiça Federal. Ele é acusado de destruir 12 cadáveres entre 1974 e 1975, incinerando-os em fornos de uma usina de açúcar desativada em Campos dos Goytacazes (RJ).
Guerra integrava, à época, o Departamento de Ordem Político Social (Dops). Em março, resumiu ao jornal Folha de S.Paulo o período em que, segundo ele próprio, matou ou ajudou a sumir com corpos de militantes de esquerda: "Fiz algumas coisas que não foram boas".
O pastor foi enquadrado por crime de ocultação de cadáver. O Ministério Público Federal foi notificado no dia 22 de outubro sobre a decisão da juíza Flávia Rocha Garcia, da 2ª Vara Federal de Campos, de acatar a denúncia feita pelo procurador Guilherme Virgílio. À reportagem, o réu disse que a Justiça tem todo o seu respeito e que acata "sua soberania", mas que "gostaria de registrar que não agia por conta própria, era um soldado cumprindo ordens superiores".
Guerra confessou os crimes em várias ocasiões. Em Pastor Cláudio, documentário lançado neste ano, ele comenta, ao ser questionado sobre nomes de desaparecidos durante o regime militar: "Esse aí eu matei", "esse eu incinerei".
Já havia feito o mesmo relato cinco anos atrás, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, e dois anos antes, em Memórias de uma guerra suja, livro com recordações sobre o que definiu como sua "época de bobo".
Pastor da Assembleia de Deus, Guerra contou como ele e colegas eram encarregados de queimar mortos despachados por militares. Às vezes, disse, abriam os sacos plásticos pretos para dar "uma espiadinha, por curiosidade".
Guerra diz que chegou a ver uma mulher com "sinais físicos" de estupro e um homem sem braço, que desconfiava ser José Roman, um corretor de imóveis do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão. Por WhatsApp, o ex-delegado afirmou à reportagem da Folha de S.Paulo que é preciso considerar que "se tem uma anistia que descriminaliza os atos para os dois lados".
Em Pastor Cláudio também é abordada a Operação Radar, da qual Guerra participou. Nessa operação, ele matou membros do Partido Comunista e incinerou corpos de outros militantes que foram assassinados dentro dessa operação.
Em sua decisão, a juíza federal também resgata a Lei da Anistia promulgada em 1979 pelo último presidente da ditadura militar (1964-1985), o general João Figueiredo. Flávia aponta que a legislatura que anistiava "crimes políticos ou conexos com estes" no período veio "antes do advento da Constituição Cidadã" e "certamente não é convencional, isto é, está em flagrante dissonância com tratados e convenções de direitos humanos que o Brasil se submeteu" na comunidade internacional.
A visão da magistrada se alinha à do Ministério Público, diz o procurador Virgílio. "O Brasil, ao editar a Lei de Anistia e deixar de julgar seriamente esses tipos de crime, deixa de proteger os direitos humanos da forma que deveria."
Em depoimento, Guerra narrou uma estratégia para dar sumiço nos corpos que acabavam não engolidos por chamas, mas jogados em águas: arrancar parte do abdômen das vítimas, para evitar que gases se formassem neles - desse jeito, o cadáver perigava emergir à superfície. Rios seriam uma opção melhor, já que, no mar, "a onda traz de volta".
O ex-agente disse que a ideia de usar a Usina Cambahyba, mais eficiente para eliminar rastros, surgiu porque ele já usava o local para desovar o corpo de criminosos comuns. Era, segundo ele, amigo do proprietário.
Parte dos cadáveres ele conta que apanhava na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), utilizada pela ditadura para assassinar opositores. Segundo Guerra, ele parava com o carro no portão e esperava militares entregarem defuntos ensacados. Na usina, o cheiro dos corpos não se destacava, porque, de acordo com o ex-delegado, o fedor do vinhoto (subproduto na produção de açúcar e etanol) era mais forte.
A Procuradoria pede, além da condenação pelos corpos ocultados, que a União cancele eventual aposentadoria ou benefício que o réu receba diante de sua atuação como agente público. O pastor disse à Folha de S.Paulo que recebe um salário-mínimo pelo INSS.
Guerra ainda é alvo de outras duas denúncias da Procuradoria: de participar do atentado do Riocentro (teria forjado evidências para culpar militantes antiditadura pela bomba) e pelo assassinato de um estudante de Geologia em 1973. Ronaldo Mouth Queiroz era vinculado à Aliança Nacional Libertadora, opositora aos militares.
Desde fevereiro, o ex-delegado cumpre prisão domiciliar, condenado pela morte de sua esposa e de sua cunhada, ambas encontradas em 1980 em um lixão com 19 e 11 tiros, respectivamente. Esse crime o pastor nega.