De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) divulgados em 2017, 90% das empresas no Brasil seguem o modelo familiar. Conforme as instituições, são elas as responsáveis pela produção de 65% do Produto Interno Bruto (PIB) e dispõem de cerca de 75% da força de trabalho do País.
Porém, levantamento da consultoria PwC indica que 75% das empresas familiares fecham as portas depois de serem sucedidas pelos herdeiros. Além disso, 44% das companhias que seguem esse formato não possuem um plano de sucessão e 72,4% não contam com uma sucessão definida para cargos-chave, como o de diretoria, presidência, gerência e gestão.
Os dados revelam não só a importância das empresas familiares para a economia brasileira, mas também a necessidade de encontrar formas de se alcançar longevidade neste tipo de negócio. E a governança familiar aparece como ferramenta fundamental para atingir esse objetivo.
Segundo definição do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), governança familiar é o sistema pelo qual a família desenvolve suas relações e atividades empresariais, com base na sua identidade (valores familiares, propósito, princípios e missão) e no estabelecimento de regras, acordos e papéis.
Ainda de acordo com o instituto, a governança familiar acontece, na prática, por meio de estruturas e processos formais, cujo objetivo é obter informações mais seguras e mais qualidade na tomada de decisões, auxiliar na mitigação ou eliminação de conflitos de interesse, superar desafios e propiciar a longevidade dos negócios.
Entre as estruturas mais comuns aplicadas em companhias que adotam esse tipo de governança estão o conselho de família, a assembleia familiar, o family office e o conselho de sócios, sendo que cada uma conta com um papel específico.
O family office, por exemplo, trata do gerenciamento administrativo e financeiro do grupo familiar e seus objetivos empresariais. Todos, porém, devem estar alicerçados em alguns princípios básicos, que envolvem transparência, equidade, prestação de contas (accountability) e responsabilidade corporativa.
Além disso, a coordenadora-geral do capítulo Rio Grande do Sul do IBGC, Michelle Squeff, ressalta que as combinações e os ajustes envolvendo a governança familiar são muito particulares e variam de família para família.
“A quantidade de familiares, o número de gerações envolvidas, a forma de organização de cada um dos núcleos familiares, entre outros pontos, é o que define os contornos objetivos dessa governança. Assim, os valores e propósito da família, o perfil e a cultura, são o que preenchem o conteúdo subjetivo, dando corpo e alma a esse conjunto que chamamos de governança familiar”, explica.
Outro ponto importante neste tema é diferenciar governança familiar da governança corporativa que, embora dialoguem, possuem particularidades distintas. Enquanto a governança corporativa atua somente no âmbito dos negócios para buscar garantir a sustentabilidade, a proteção de ativos, a imagem da empresa e sua relação com as partes interessadas, a governança familiar age no âmbito da família, abordando a sua relação com seus membros, com a propriedade, com a empresa e com os stakeholders.
“Gosto de pontuar que a matriz de competência dos protagonistas da governança familiar e dos protagonistas da governança corporativa são bem diferentes, exigindo expertises e perfis distintos e ao mesmo tempo criando espaços para o surgimento de novas vozes e lideranças dentro das famílias empresárias”, ressalta Squeff.
Na mesma linha, os desafios das empresas familiares, em muitos aspectos, são os mesmos enfrentados por companhias de outros tipos. Mas há alguns problemas recorrentes e exclusivos de organizações formadas por famílias que devem ser encarados pela governança, como paternalismo, protecionismo, centralização e dificuldades em compartilhar o poder decisório, decisões de caráter emocional, além de confusão patrimonial e financeira.
Práticas ESG devem ganhar espaço entre empresas familiares, diz consultora do IBGC
Michelle Squeff é coordenadora-geral do Capítulo Rio Grande do Sul do IBGC
IBGC/DIVULGAÇÃO/JC
A pandemia do novo coronavírus foi uma prova de fogo que serviu para confirmar a resiliência das empresas familiares. Pesquisa da consultoria PwC revela que apenas 21% das empresas desse tipo dizem ter precisado de capital adicional em 2020, em um momento no qual as empresas levantaram o recorde de US$ 3,6 trilhões com investidores privados para garantir sua liquidez.
Por outro lado, o estudo evidenciou alguns desafios que se mostram cada vez mais evidentes para as empresas familiares, como a pressão crescente para que demonstrem suas credenciais ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG, na sigla em inglês). Nesta entrevista concedida ao JC Contabilidade, a coordenadora-geral do capítulo Rio Grande do Sul do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Michelle Squeff, contextualiza pontos da governança familiar e destaca alguns dos novos desafios para empresas desse tipo.
JC Contabilidade - Quais práticas de governança que toda a empresa familiar deveria adotar?
Michelle Squeff - Uma boa comunicação ajuda a qualificar a governança, além de reforçar os laços familiares e a noção de que são todos parte integrante de um grupo. À medida que a família cresce, porém, torna-se cada vez mais difícil, senão impossível, sentar-se em volta da mesa para trocar informações ou discutir questões comuns. É preciso estabelecer regras claras para o ingresso e o crescimento profissional dos membros da família na empresa. Muitas exigem treinamento técnico ou educação formal altamente qualificada, outras estabelecem como pré-requisito que o membro da família ganhe experiência profissional fora da empresa familiar. Em algumas não é permitido criar vagas para familiares, e, quando uma se abre naturalmente, as qualificações do aspirante devem se encaixar no perfil desejado, como acontece com qualquer outro candidato. A responsabilidade corporativa reforça o comprometimento e a união dos familiares, além de contribuir para gerar uma boa imagem da família e aprofundar os laços desta com a comunidade. Projetos sociais são especialmente estimulantes para novas gerações: despertam e solidificam valores e ajudam a desenvolver habilidades profissionais. Instrumentos legais como testamentos, pactos antenupciais, doação com reserva de usufruto e outros documentos jurídicos civis, além da criação de holdings familiares, são apenas alguns exemplos para que a família possa contar com uma estrutura mínima de proteção jurídica e estabilidade, tanto no âmbito do planejamento tributário, quanto na longevidade familiar norteada pelo princípio da consanguinidade, geração por geração. Além disso, convém criar fóruns de discussão, desde pequenos grupos de trabalho até encontros anuais e verdadeiras assembleias de família para debater temas atinentes à relação da família com os negócios. Preservar símbolos, registrar histórias, feitos, conquistas, valorizar a ancestralidade e engajar novas gerações também pode contribuir para gerar o sentimento de pertencimento a essa família e o desejo de seguir investindo conjuntamente nos negócios familiares.
JC Contabilidade - Análise do próprio IBGC afirma que embora 90% dos negócios do Brasil encontram-se sob controle familiar, somente uma parcela, de 3% a 4%, sobrevive à terceira geração. Ao que isso se deve?
Squeff - O desaparecimento de empresas familiares está relacionado à falta de mecanismos para mediar e resolver os naturais conflitos de interesse dos familiares e à desatenção na preparação dos sucessores e sucedidos. Os desafios das empresas familiares são, em muitos aspectos, os mesmos enfrentados por qualquer tipo de empresa. Estratégia, planejamento, gestão e governança corporativa constituem itens tão importantes para as empresas familiares quanto para as não familiares. Nas empresas familiares, as substituições tendem a ser mais complexas quando os cargos de gestão são ocupados por membros da família (ou por pessoas próximas a ela). Alguns dos desafios das empresas familiares guardam relação com: paternalismo e protecionismo, ingerências indevidas, centralização e dificuldades em compartilhar o poder decisório, decisões de caráter emocional, confusão patrimonial e financeira, por exemplo. Em uma empresa familiar, o aspecto emocional pautado pelo parentesco e intimidade é também um desafio constante. Mantê-lo sob controle é fundamental e se torna mais fácil quando os familiares têm capacidade para se relacionar com os pares e entender o negócio. E, para além da governança, contamos também com a ausência de planejamento estratégico, a ausência de ferramentas de gesto que permitam a companhia pensar não apenas na geração do caixa mensal, mas também no médio e longo prazo dessa companhia. E a governança pode contribuir para que isso aconteça.
JC Contabilidade - Qual a importância do planejamento sucessório?
Squeff - O processo sucessório das empresas familiares é contínuo e ocorre nos círculos de família, propriedade e gestão. A sucessão é um dos processos mais determinantes e complexos das empresas de controle familiar. É o momento em que a família empresária se vê frente a frente com suas ambiguidades, tendo de lidar, de um lado, com aspectos financeiros e estruturas legais; de outro, com fatores emocionais, vínculos e cultura familiares. A transição pode oferecer oportunidades de crescimento, mas também ocasionar desconforto. Para enfrentar esses desafios, tanto a alta cúpula do negócio quanto a família devem se preparar e se alinhar aos modelos de governança estabelecidos. Um processo sucessório bem planejado e bem executado contribui para a longevidade do negócio, o crescimento sustentável da empresa e a continuidade do legado da família. Quanto mais inclusivo e consensual for o processo sucessório, melhor. Quanto mais informações, treinamento e interação entre os membros da família, melhor. Quanto mais todos conhecerem seus pares, direitos e deveres, bens, objetivos e estratégias do negócio comum, tanto mais tranquila será a transição. Na falta de um sucessor familiar que preencha os requisitos estabelecidos ou se for interesse do grupo trazer um profissional externo para a empresa, a família empresária pode buscar um gestor não familiar. Essa pessoa pode ser recrutada dentro da própria empresa ou no mercado, dependendo do momento e dos objetivos da família empresária.
JC - O que deve pautar o futuro da governança familiar?
Squeff - Queria ressaltar um novo aspecto que vem ganhando força no âmbito da empresa familiar, que é o investimento em negócios de impacto social positivo e a valorização do propósito. Temos observado famílias empresárias buscando a ressignificação do seu portfólio, realizando investimentos em empresas que tenham práticas ESG consolidadas e certificações que confiram diferenciais de mercado. Além disso, estamos testemunhando um posicionamento das novas gerações, que busca empreender, investir e, como consumidoras, adquirir produtos e serviços que tenham conexões com seus propósitos de vida. Vejo, nesse aspecto, um grande mercado de oportunidade para as empresas familiares que, com sua identidade e força de valores já acentuados, podem ter vantagens competitivas para uma atuação direcionada pelo equilíbrio de propósito com resultados financeiros de longo prazo.
Encontro de empresas familiares será realizado em Gramado
Nos dias 8 a 10 de junho, acontecerá em Gramado a quarta edição do Encontro de Empresas Familiares (Enef 2022), evento criado com o objetivo de reunir famílias empresárias para compartilhar suas experiências sobre os eixos família, sociedade e empresa.
Já está confirmada a participação de cases de empresas gaúchas, como Fruki e Randon. Os cases internacionais serão da Lestido, empresa com mais de 70 anos de representação exclusiva da Wolkswagen no Uruguai, e a Kärcher, empresa alemã pioneira em produtos de tecnologia de aquecimento, fundada em 1935. As apresentações são realizadas por integrantes das famílias participantes.
Para o idealizador do encontro Werner Bornholdt, voltar a realizar o presencialmente contribuirá para debater os desafios oriundos dos impactos do isolamento social ocorrido no ambiente empresarial nos últimos dois anos. "Estamos numa transição de uma pandemia na qual ficamos reclusos trabalhando online, assim como numa caverna. Trabalhamos com muitas ferramentas e recursos tecnológicos. Agora estamos retomando o convívio com pessoas. A pergunta central é: com o arsenal de recursos tecnológicos, como mantemos o contato com as pessoas e como fazemos a integração na gestão, na transição e na sucessão nas empresas?", indaga.