Sem ver resultados esperados do primeiro ciclo de plantio de soja com regras mais rígidas no uso de herbicidas à base de 2,4-D, fruticultores e vitivinicultores buscam na Justiça a proibição do uso do princípio ativo no Rio Grande do Sul – ao menos até que o Estado consiga uma solução efetiva para o caso. Outra alternativa proposta é criar uma área de exclusão do uso do químico em lavouras próximas a culturas sensíveis ao produto.
VÍDEO: Parreira que sofreu a deriva do herbicida usado nas lavouras de soja
Com trâmite interrompido devido ao recesso judiciário, em 20 de dezembro do ano passado, a ação movida pela Associação Vinhos da Campanha Gaúcha e Associação Gaúcha dos Produtores de Maçã (Agapomi) deve ter prosseguimento em fevereiro, prazo para que o governo do Estado se manifeste.
"A medida seria necessária até que o Estado crie um sistema de monitoramento e fiscalização eficiente, seguro e efetivo que promova realmente a deriva zero", explica o advogado Diego Ruppenthal, que representa as duas associações no processo.
Em 2020, o máximo que o governo conseguiu foi a redução de 25% nos casos confirmados de deriva. Como os danos são grandes, assim como persistem as irregularidades no uso do produto, mesmo após anos de debates e programas e treinamentos implantados, Agapomi e vitivinicultores da Campanha decidiram buscar na Justiça uma forma de solucionar a questão.
Ao longo do ano passado, de acordo com a Secretaria da Agricultura, foram mais de 600 infrações feitas por problemas na aplicação e falta de notificação do uso em lavouras (como a data em que o produto foi utilizado, por exemplo), como exige as novas regras.
Sem ver a desejada deriva zero no Estado, mesmo após dois anos de um inquérito que tramita no Ministério Público que já soma cerca de 6 mil páginas, a Associação Vinhos da Campanha Gaúcha e Agapomi agora apostam no Poder Judiciário para interromper anos de perdas.
Ainda que existam outras fórmulas menos tóxicas de controlar a buva (planta daninha contra o qual o químico é usado), sojicultores optariam com mais frequência pelo componente em razão do preço. O que não é questionado pela associação, desde que seja aplicado corretamente e sem colocar em risco a atividade de produtores vizinhos.
“O uso incorreto ameaça a diversificação de culturas no Estado. Quando atinge um pomar, o 2,4-D mata plantas novas e atrofia as adultas, que não frutificam ou frutificam menos, em um problema que se repete há anos”, argumenta o presidente da Associação dos Vinhos da Campanha, Valter Pötter.
É fato que o governo, entidades como Senar e fabricantes, inclusive, promoveram treinamento de centenas de produtores e aplicadores e estão investindo em ações como 20 estações meteorológicas para melhorar a previsão de clima na hora das aplicações. A Secretaria de Agricultura contabiliza 485 processos relativos à deriva em tramitação.
O número de multas pagas até o momento, no entanto, é de apenas 17 – segundo a pasta porque há recursos e prazos que ainda estão em andamento, o que torna a efetivação da penalidade morosa. As multas podem ser de até R$ 24 mil, com agravantes que elevariam significativamente este valor, assegura Rafael Lima, chefe da Divisão de Insumos e Serviços Agropecuários da Secretaria.
“Nos casos de reincidentes, por exemplo, pode ser acrescido até 50% do valor de toda a nota fiscal que ele comprou de mercadoria para aplicar na lavoura. Mas, infelizmente, apesar de todos os nossos esforços, ainda há produtores pagando para ver no que vai dar. E já tivemos pelo menos um caso de produtor reincidente conduzido à delegacia e respondendo a inquérito policial”, assegura.
O número de processos criminais pela prática ilegal, no entanto, é uma incógnita. O MP assegura que já foram abertos vários processos por casos de deriva no Rio Grande do Sul, mas não sabe quantificar. Para o promotor do Meio Ambiente da Capital, Alexandre Saltz, o saldo até o momento é positivo e as reclamações pontuais.
“O mais relevante é que no curso do inquérito foram assinados acordos com empresas que produzem o 2,4-D para custearem melhorias no sistemas de fiscalização, inauguradas 20 estações meteorológicas e lavrados mais de 800 autos de infração e que produtores foram responsabilidades criminalmente. Quantos eu não sei”, diz Saltz.
Sem o peso das multas mais severas e sem um volume significativo de processos criminais abertos, as aplicações incorretas seguem arruinando finanças, levando à saída de produtores da atividade e causando indignação entre os afetados.
O ressarcimento dos danos nunca foi feito a nenhum produtor e são incalculáveis – mas passaria de R$ 200 milhões já consolidados. Isso sem contar as perdas perenes, já que o químico afeta parreiras e plantas em sua produtividade muito além de uma safra. José Sozo, presidente da Agapomi compara o descaso dos agricultores que fazem o uso incorreto com outro crime que assombra o campo, o abigeato.
Danos afetam, ano a ano, a produtividade de macieiras, parreirais, oliveiras e nogueiras, entre outras culturas. Foto: Agapomi/Divulgação
“Produtores que só pensam na sua lavoura, em detrimento do outro, cometem o que chamamos de abigeato verde. Roubam os pomares e videiras dos vizinhos, a produtividade e seus recursos. Isso ainda terá problemas maiores no campo. Há produtores que depois de duas derivas afetando a produção e com dívidas para pagar, já foram de arma em punho na casa de quem está matando o seu pomar dizendo que não haveria uma terceira.”, alerta Sozo.
Limitar ou impedir o uso do herbicida no Rio Grande do Sul antes do início do próximo ciclo de preparação da 2021/2022 não é um impeditivo para a cultura da soja, explicam Pötter e Sozo. Isso porque outros químicos disponíveis no mercado podem ser usados, preservaria outras culturas e evitaria o agravamento do cenário. O custo extra para usar opções menos tóxicas encareceria o cultivo no equivalente a entre 0,5 e 1 saca por hectare, em uma colheita de 65 sacas por hectare, em média.
De acordo com a Farsul, o tema é uma “questão delicada, constrangedora e cara”, diz o coordenador da Comissão de Meio Ambiente da entidade, Domingos Lopes. Segundo ele, são “produtores tendo problemas com produtores”. Proibir o uso do produto, no entanto, não é visto por Domingos como uma alternativa, já que é aprovado pela Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura e o problema é no uso incorreto, não no químico.
“Tendo registro, o produto deve estar disponível. O que se deve fazer é bem aplicá-lo. Sabemos que o problema é grave, que envolve vizinhos normalmente, e onde ocorre tem perdas de até 100%. Temos é que seguir pela educação chegar no índice quase zero. Há alternativas ao 2,4-D, sim, mas é uma questão comercial e não podemos fazer a defesa de uma ou outra empresa”, explica Lopes.
Jaguari é um símbolo do problema histórico
Em Jaguari, produtores têm perdas de até 100% nos parreirais e cultura pode acabar na cidade
Agrária São José/Divulgação
Um pequeno município da Região Central do Estado é um dos símbolos dos danos da deriva e de que como o Rio Grande do Sul pouco avançou no tema na última década. Com problemas enfrentados há cerca de sete anos, quando os pomares e videiras do município passaram, ano a ano, produzir menos, Jaguari amarga perdas mesmo com uma lei municipal proibindo o uso do químico em lavouras dentro do seu perímetro. Em 2020, 21 propriedades tiveram perdas pela contaminação com o químico e produtores estão colocando pomares abaixo e desistindo da cultura.
“Aqui não se usa o produto desde 2017 e ainda assim nossos vinhedos estão morrendo. Se seguir neste ritmo, em três anos essa cultura acabará no município. Já tivemos colheitas de mais de um milhão de toneladas. Neste ano não deve passar de 430”, lamenta o presidente da Cooperativa Agrária São José, João Alberto Minuzzi.
Ele conta que em 2014, quando a produção caiu para 830 toneladas, com perdas de produtividade generalizada, inicialmente se pensou que era alguma doença atacando os parreiras. Testes químicos comprovaram depois a contaminação generalizada das plantas pelo 2,4-D. “Hoje, o problema é que nos municípios vizinhos segue sendo mal aplicado e estamos no limite de cidades que têm regras simplificadas de aplicação, porque o Estado regulamentou normas rígidas em apenas 24 cidades”, critica Minuzzi.
Com esse princípio ativo é extremante volátil, diz o agricultor, aplicações mal feitas em lavouras no entorno avançam sobre os pomares e videiras de Jaguari constantemente, carregado pelo vento e mesmo aproveitando-se de correntes de ar quente em dias de tempo seco. “Temos certeza que o produto tem alcance de pelo menos 20 quilômetros. Neste ano tivemos três ocorrências em uma única safra, retorcendo parreiras e folhas em 21 propriedades. O governo e o Ministério Público dizem que é pouco, que são apenas 89 propriedades. Mas para quem perdeu, isso é muito”, critica Minuzzi.
O produtor avalia que o número é maior, mas que por descrédito nas ações públicas e nas punições, e por problemas na coleta de amostras, o número é bem maior do que as 89 propriedades registradas até agora. “Teve coleta da Secretaria de Agricultura que chegou a demorar uma semana para ser feita, o que mascara o dano e leva o resultado a apontar negativo. E não é por descaso dos fiscais, é porque são poucos mesmo”, opina Minuzzi.
Estado precisa ampliar número de fiscais, diz Afagro
Em um 2020 afetado pela pandemia, com elevada demanda de trabalho gerada pelo agronegócio e até mesmo tumultuado por gafanhotos, os servidores da Secretaria da Agricultura enfrentaram dificuldades extras para ações direcionadas à deriva zero. Beatriz Scalzilli, vice-presidente da Associação dos Fiscais Agropecuários do Rio Grande do Sul (Afagro), diz que é imprescindível a realização de um novo concurso público para acompanhar as demandas, que teriam aumentaram muito nos últimos anos.
“Cabe destacar a necessidade de acompanhamento e vigilância de ocorrência de novas pragas, as derivas de agrotóxicos hormonais, a inspeção de vinhos e derivados, a fiscalização do comércio de insumos, entre outras da área vegetal”, acrescenta Beatriz. A isso tudo, diz a representante da Afagro, se soma à mudança do status sanitário do Rio Grande do Sul para livre de febre aftosa sem vacinação, que fez aumentar a demanda também da área animal.
“O último concurso foi realizado em 2013 e, desde então, só vemos o quadro diminuir em função das aposentadorias e saída de colegas para outros órgãos ou mesmo instituições privadas, já que neste período não recebemos qualquer aumento de salário, nem a reposição de inflação há seis anos, tornando a função pouco atrativa apesar de sua extrema importância para a sociedade e economia do Estado”, argumenta Beatriz.
Rafael Lima, chefe da Divisão de Insumos e Serviços Agropecuários da Secretaria, admite que há carência de profissionais e que isso será ainda maior no próximo ciclo de plantio de grãos, quando as regras mais de uso e aplicação serão mais rígidas valerão em todo o Estado.