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Rio ou lago: o Guaíba é o quê?
De uma forma ou de outra, o Guaíba é parte da vida de milhares de gaúchos - em especial, dos porto-alegrenses
Passeios românticos no Cisne Branco, domingos com a família em Itapuã, rodas de chimarrão no Gasômetro, caminhadas na avenida Beira-Rio... De uma forma ou de outra, o Guaíba é parte da vida de milhares de gaúchos - em especial, dos porto-alegrenses, que fazem questão de enaltecer o pôr do sol visto de suas margens como o "mais lindo do mundo". Bairrismos à parte, não há dúvidas sobre a exuberância do Guaíba. E são essas qualidades que, a partir desta sexta-feira, serão tema da nova seção semanal do Jornal do Comércio, "De frente para o Guaíba".
Porém, ainda persistem incertezas sobre o principal cartão-postal de Porto Alegre, e elas são de ordem científica. Afinal, o Guaíba é um rio ou um lago? Alguns pesquisadores defendem a primeira denominação (que também é a consagrada pelo uso popular), mas outros alegam que erros históricos levaram a ela. A classificação oficial adotada tanto pelo Estado quanto pelo município é de que o Guaíba é um lago. E é essa denominação que o JC irá seguir.
A questão das margens e a especulação imobiliária
Há quem diga que o conceito de lago, estabelecido por decreto, foi adotado para burlar a legislação ambiental: de acordo com o Código Florestal, a área de preservação permanente de um rio é de 500 metros em relação à margem; a de um lago, de 30 metros. Ou seja, uma classificação favoreceria a especulação imobiliária, enquanto a outra garantiria a proteção da única fonte de abastecimento da Capital.
"Esse é um ardil no qual não devemos cair. Se a ciência me favorece, a reconheço, e se não (no caso de considerar que o Guaíba não seja um rio), devo ignorá-la?", indaga o geólogo Rualdo Menegat. "O que deveria mudar é a lei, já que lagos são muito mais vulneráveis, por manter a água e os sedimentos em seu reservatório."
Já o geólogo Elírio Ernestino Toldo Júnior utiliza o exemplo de um rio europeu para questionar possíveis interesses do poder público em definir o Guaíba como lago. "O Tejo, em Lisboa, tem uma semelhança muito grande com o Guaíba em sua desembocadura, mas não é motivo de polêmica. A questão das margens é o motivo que levou, na minha opinião, a suscitar essa polêmica mais recentemente. Não é um motivo científico, mas comercial", lamenta.
Entusiasta do assunto, o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Estado e ex-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil - RS, Tiago Holzmann da Silva, defendeu em um artigo que o Guaíba é, legalmente, um rio, mesmo concordando com ambas as teorias. "O problema é misturar essas duas discussões, a científica e a legal, porque a científica, involuntariamente, está mascarando um objetivo, que é o de urbanizar onde não deveria ser urbanizado. A denominação de rio me parece mais coerente com o desenvolvimento sustentável. Temos grandes vazios urbanos, não precisamos ocupar áreas que ainda têm uma qualidade ambiental", avalia.
Escoamento de lago
Coordenador-geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre (Ufrgs Editora, 1998), o geólogo Rualdo Menegat tem posição firme nessa polêmica. O título do livro que publicou em parceria com o engenheiro de Minas Clovis Carlos Carro não deixa margem para dúvidas: Manual para saber por que o Guaíba é um lago (Armazém Digital, 2009).
No Guaíba, as margens são definidas por enseadas vegetadas basicamente por matas de restinga. Outras características - como a retenção das águas no reservatório, a ausência de um canal hidroviário e o tipo de depósito sedimentar encontrado nas margens - são de um corpo lacustre, segundo o geólogo.
"Rios e lagos são claros em suas definições. O rio é um curso d'água cuja região próxima da nascente é mais elevada do que a para onde se dirige a corrente. A água não oferece resistência ao escoamento por ação gravitacional, está sempre atritando o leito. Por isso que o rio tem suas margens paralelas. O lago não tem esse escoamento gravitacional - isso não quer dizer que não tenha escoamento, mas é diferente. Se ele encher suas bordas, vai extravasar", observa Menegat, que é docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Descarga de rio
Também geólogo e professor da Ufrgs, Elírio Ernestino Toldo Júnior tem uma posição bem diferente. Para ele, o Guaíba é um rio. "Trabalhamos com medições, sistematicamente, desde 2005. Portanto, são conclusões relativamente novas. Não se trata de uma visão geral de paisagem; o critério deve ser hidrodinâmico e incluir a morfologia de fundo. A partir desse trabalho, verificamos a descarga do rio, o que não se conhecia até então", explica.
Toldo destaca que a correnteza é um dos elementos importantes para embasar tal definição. A vazão média do Guaíba, de mais de mil metros cúbicos por segundo, é típica de uma descarga de rio. "Como se manteria uma descarga significativa dessas em um corpo d'água represado? E aí vem outro dado importante: essa descarga renova as águas do rio. Apesar da poluição, o Guaíba tem uma alta taxa de renovação de suas águas por causa da descarga fluvial para a Lagoa dos Patos."
Outra novidade trazida pelas medições é a detecção do volume de sedimentos exportado - o que, ressalta o geólogo, é um critério fundamental para determinar que não se trata de um lago. "O Guaíba exporta uma brutal quantidade de sedimentos, mais de 1 milhão de toneladas por ano são transferidas para a Lagoa dos Patos. E lagos não exportam sedimentos. Pelo contrário, são importadores", reforça.
Um lago
- Os rios que nele desembocam formam um delta. Esse tipo de depósito sedimentar ocorre quando um volume de água confinado por canais se encontra com um grande corpo de água;
- Cerca de 85% da água do Guaíba fica retida no reservatório por um grande período de tempo;
- Seu escoamento é bidimensional, formando áreas com velocidades diferenciadas;
- Os depósitos sedimentares das margens têm geometria e estrutura características de sistema lacustre;
- A vegetação da margem é de matas de restinga.
Fonte: Atlas Ambiental de Porto Alegre
Um rio
- Possui um canal natural, com mais de 70km de comprimento;
- As águas não ficam retidas na bacia. O Guaíba apresenta vazões médias superiores a 1,3 mil m3/s, com valores máximos que excedem 14 mil m3/s;
- O Guaíba possui área superior a 500km2, com vazão média suficiente para renovar todo o volume d'água em uma média de nove dias;
- Imagens de satélite e sondagens do fundo apontam que o Guaíba exporta sedimentos para a Lagoa dos Patos em um volume superior a 1 milhão de toneladas ao ano;
- O tipo de vegetação das margens depende da região e do clima nos quais um rio ou lago se desenvolve. Assim, independe do padrão de circulação das águas.
Fonte: Laboratório de Oceanografia e Geofísica Marinha do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica da Ufrgs